29/08/2022

Dona Augusta

(Ilton Carlos Dellandréa)

Nos artigos e incisos

da lei caridosa,

o exercício formal

da justiça pomposa.

 

 O termo é preciso.

a coação, moral,

 a crise de autoridade

 no fato banal.

 

A toga é negra,

 a peruca é branca,

 a caneta de ouro,

 mas a mente é manca.

 

A inicial inepta

 do advogado inapto.

 Cliente: a estranha

 sensação de pato.

 

Processo que vai,

processo que vem,

o som do chicote

na bunda da lei.


20/05/2022

O MEU VERSO

Ilton Carlos Dellandréa

Ilton Carlos Dellandréa

 O meu verso não deve ser interpretado.

É vasto o mundo, o verbo é largo,

mas o que digo é limitado.

 

Não busquem no que escrevo soluções.

Do que o meu verso rude, seco, manco,

melhor lhes servirá, por certo,

uma folha em branco.

 

Não procurem no meu verso um ombro amigo

nem alegria.

É lerdo, tosco, sem requinte,

nem sei se é poesia.

 

Não esperem no que escrevo um novo rumo

nem a solução da encruzilhada.

Canto sozinho, para mim, e basta:

Cada um que faça a sua própria estrada.

 

Sou o ferreiro que trabalha o ferro velho.

Se crio, se creio,

nada em mim de novo descortina.

Lidar com o belo e o feio

é remendar ruínas.

 

Façam como eu ou façam nada,

mas siga cada um o seu caminho.

Não levo ninguém,

ninguém me leva.

Eu vou sozinho.

 

Taquara, 24 de novembro de 1.987.

29/04/2022

A SOMBRA DE STÁLIN


POESIA RECITADA NO FILME A SOMBRA DE STÁLIN, cuja autoria não ficou esclarecida.

Quem souber, favor informar. 


Monumento à Holodomor 


Stalin sentado no trono
Tocando violino.
Ele olha para baixo
E franze a testa
Para nosso país
Que doa pão.
Ó, violino feito de noz
E arco de arruda,
Quando ele dá as ordens
Nós as ouvimos
Por todo o país.
Tão forte ele tocou,
Tão forte ele tocou,
Tão forte ele tocou
Que rebentou as cordas.
Muitos morreram,
Poucos sobreviveram.
A fome e o frio
Estão em nossa casa
Sem nada para comer,
Sem lugar para dormir.
E nosso vizinho
Enlouqueceu
E comeu
os próprios filhos.

 

Clicando aqui você pode assistir uma resenha do filme no site Sagrado Suspense, apresentada por Natália.

Vale à pena ser visto. Tanto o filme quanto a resenha.

25/10/2021

APALPADELAS MÉDICAS


Sem preocupação com o politicamente correto: você se sente bem após uma consulta médica hoje? Falo de uma consulta normal com um médico normal. Enxoto, preventivamente, o exame de próstata, da questão.

Nestes tempos em que tudo é diagnosticado por sofisticados exames de raios de todas as espécies, ultrassonografias e ressonâncias magnéticas, essa não é definitivamente uma consulta normal. Para examinar suas coronárias enfiam um cateter que chega ao coração e, se preciso, imediatamente instalam “stents” para corrigir obstruções. Para examinar sua próstata enfiam prosaicamente o dedo naquilo que é torto mas chamam de reto para sentir se está macia ou encaroçada...

Volto à pergunta e respondo: não gosto das consultas, hoje em dia. O diagnóstico depende sempre de uma constelação de exames de todos os naipes, alguns demoram dias, e há médicos que requisitam outros, depois, para confirmação.

Há alguns anos, era diferente. Você relatava os sintomas, o doutor Pascoal, que foi médico em Taió, fazia as perguntas clássicas para tentar enquadrá-los, auscultava seu coração, seus pulmões, depois o deitava numa maca e apalpava minuciosamente seu abdômen. Espalmava a mão sobre seu estômago e fígado e tamborilava sobre ela com o dedo médio, procurando algum som estranho. Examinava seus ouvidos e garganta, mesmo que você tivesse ido lá apenas para tratar de uma unha encravada.

Hoje não. Você vai ao gastroenterologista com uma dorzinha na “boca do estômago”, espera uma apalpadela – uma piedosa apalpadela – para ele identificar o local exato da dor, mas é inútil.

O último que consultei nem tinha maca no consultório. Perguntei se deveria deitar na escrivaninha, apesar de ocupada com papéis, canetas e o micro. Ele disse que não precisava e me chamou de brincalhão. E eu estava falando sério...

Saí de lá com uma requisição para endoscopia e outra para ecografia abdominal alta... Senti-me reduzido a uma coisa infundada, sem registro nos dicionários.

O médico é a única pessoa que pode apalpar você sem receio de comprometimento emocional e isto vale para ambas as partes, em situação normal. Senão a consulta parece incompleta e você sai do consultório mais inseguro do que quando entrou.

Exceto, como ressalvei, no caso de consulta urológica. E falo de cadeira porque já passei dos 70. Dos 70 anos, não dos 70 exames. Se fosse dos 70 exames teria que começar a desconfiar de mim mesmo.  

 

11/07/2021

JOINVILLE

 

Joinville, Joinville,
O que fizeram de ti?
Perderam-me teus caminhos
– não fui eu que me perdi.
 
Nas esquinas, os teus passos,
Teus abraços, teu florir,
Perderam-se em manotaços.
– O que fizeram de ti?
 
Não sei mais andar por ti
De procurar-te-me cansei:
“Vou embora pra Pasárgada,
Lá sou amigo do rei”.
 
Se te perco, se me perdes
– não fui eu que me perdi –
Joinville, Joinville,
O que fizeram de ti?


Julho 2021

18/05/2021

E FOI ASSIM...

 

O dia 27/03/1971 também foi um sábado. A Ieda e eu começáramos nossas faculdades em Florianópolis e naquele dia saímos cedo, rumo a Taió. Nosso casamento estava marcado para as 17,00 horas na igreja matriz, com celebração pelo padre Moacir.

Por volta do meio-dia chegamos em Rio do Sul e fomos comprar passagens na Taioense. Surpresa: não havia ônibus. A região estava sob enchente e o trânsito para Taió fora interrompido. E agora? Só faltava o casamento não se realizar por falta dos noivos.

Meu irmão Celito morava em Rio do Sul e trabalhava na oficina Volkswagen de Antônio Círico. Fomos lá e expomos a situação. O seu Antônio não pensou muito e se dispôs a nos levar e logo embarcamos num fusquinha 62 (“pé-de-boi”) rumo ao nosso destino. O pai dele, Aquilino Círico, estava de jipe, ia para Salete e nos escoltou. No fusca ia o motorista, o filho dele, Billy, meu irmão e, naturalmente, os noivos.

Fomos por Pouso Redondo. Ir por Rio d’Oeste – naquela época o caminho normal – nem pensar. A BR-470 estava sendo construída e aproveitamos alguns trechos. 

Cada vez que o fusquinha atravessava a água da pista, o motor morria. Não adiantava ficar com o pé no fundo do acelerador. Nem o fato de o Billy, meu irmão e eu sairmos para empurrar. Só a Ieda ficava no interior, acocorada do banco traseiro, para não se molhar.

Era um trabalhão. Só secar o distribuidor com estopa não adiantava, tínhamos que esperar até que secasse sozinho, “no âmago”, e aguardar que se dispusesse a conduzir a faísca. 

Numa dessas paradas percebemos que o seu Aquilino não nos acompanhava. Ele cortou caminho e o vimos, a solavancos, trafegando sobre os trilhos da ferrovia que ia a Trombudo Central. Ele se mandou.

Naquele tempo não havia o acesso atual e tivemos que subir e pegar a estrada da Paleta. As cabeceiras da ponte da Paleta haviam desbarrancado mas já havia uma máquina arrumando. Depois de uns quinze minutos, seguimos em frente. 

O pior trecho estava por vir: a baixada antes do Caça e Tiro. Para evitar mais uma travessia, voltamos um pouco e cortamos caminho por pastos, abrindo e fechando porteiras, até sairmos nas proximidades da igreja. Nossos relógios marcavam umas 19,00 horas e os convidados já se dirigiam à churrascaria para comemorar sem os noivos. Fomos falar com o padre Moacir para ver se ele nos casaria, mesmo fora do horário combinado.

O padre Eduardo – que estava doente e acamado na casa paroquial – o proibiu de nos casar naquele horário, porque “daí em diante todo mundo iria querer casar de noite e isto seria incômodo”. Mas ele disse que nos casaria, mediante o compromisso de o quanto antes casarmos no civil. É que escrivão Edmundo Ern tinha ido para sua fazendola antes da enchente e não pôde voltar (casamos no civil no dia 1º de maio, dia do trabalho). Como se não bastassem os percalços já enfrentados.

Mas ainda tínhamos que nos arrumar: a Ieda na casa de Horst Hormann – os pais dela moravam em Joinville – e eu na minha casa, para onde foram também os demais tripulantes do fusca. 

Quando cheguei na igreja a Ieda já estava lá, esperando, na Kombi do Horst, há uns quinze ou vinte minutos. O noivo é que se atrasou.

Na hora da comunhão tomei dois goles de vinho, o que foi motivo de gozação dos convidados pelo resto da noite. Na hora das alianças também surgiram uns probleminhas: elas foram compradas antes, por meu pai (casamos sem nunca termos noivado), e a da Ieda ficou muito frouxa e a minha muito apertada. Mas nada que não se resolvesse. 

Algumas mulheres, disfarçadamente mas nem tanto, olhavam para a barriga da Ieda para ver se descobriam alguma protuberância de gravidez. Achavam que nosso casamento fora muito rápido, mas se decepcionaram. Nossa filha só nasceu uns sete anos depois.

O que importa é que casamos. Hoje faz 50 anos... Pelo que sabemos fomos o primeiro casal a casar à noite na igreja católica de Taió. 

Só não podemos comemorar porque a China de Xi Jinping e seus asseclas nos enviaram o coronavírus. Não poderia ser mais desanimador.

27/02/2021

BEETHOVEN - GÊNIO GENIOSO TAMBÉM BRINCA


                    Um dia o gênio cansou-se de compor coisas pesadas e foi brincar.

E compôs a 8.ª Sinfonia.

Para mostrar como é que um velho surdo sabe ensinar como se faz uma bela orquestração.

Como se combina os sons.

Como se brinca com os metais, com os sopros e com os violinos.

Os uníssonos e as progressões abusadas do primeiro movimento.

Os violinos e o pizzicatto dos violoncelos no segundo.

O pungente trio do minueto.

Um dia o gênio bravo e ranzinza deixou de trabalhar sério.

E brincou com a música.

Afinal, se Mozart, nas suas amarguras, compunha músicas alegres, porque ele não poderia fazer o mesmo?

E ensinou orquestração.

E chutou a bola para longe.

E desagradou aos críticos.

Ainda bem!

Foram cruéis com suas línguas de chicote.

Não perderam por esperar.

Daí veio a Nona e eles ficaram calados para sempre.

Ninguém nem sabe mais quem são. 

02/11/2020

VIVA LA MUERTE!

Há algum tempo vi um filme em preto e branco em que os personagens acabam no México, em pleno carnaval. Bem, carnaval era o que eu pensava. Havia música, desfile, fantasias (que achei um tanto macabras), mas o desenrolar me esclareceu que se comemorava el dia de los muertos.

Os mexicanos, principalmente os nativos, entre o fim de outubro e início de novembro recebem seus parentes e amigos falecidos que voltam à terra para confraternizar. Não sei como se dá, exatamente, esse encontro mas, em todos os casos, revela uma faceta peculiar de se encarar a Velha-da-Foice que está numa das esquinas, aí pela frente, esperando cada um de nós para o seu rebanho.

O escritor mexicano, Nobel de Literatura, Octavio Paz disse: A morte não nos assusta porque a vida já nos curou dos medos. E: A confusão incongruente de atos, arrependimentos e esperanças, que é a vida de cada um de nós, encontra na morte não sentido ou explicação, mas um fim.

Essa tradição pré-hispânica não tem origens claras e perdeu genuinidade com a intervenção da Igreja Católica, sempre pronta a impor sua crença a ferro e fogo e muita morte, não tão bem humorada. Houve necessárias adaptações.

Simone Andréa Carvalho da Silva, coletando dados para sua tese de doutorado, escreveu interessante artigo numa revista Planeta:

A familiaridade com que o mexicano trata a morte não o isenta de temê-la, mas o ajuda a conviver e sobreviver a esse medo. Desde cedo as crianças devoram avidamente as caveirinhas feitas de açúcar, bala de goma, chocolate ou amaranto, pães dos mortos e todo tipo de guloseimas servido a um fausto banquete de vivos e mortos. Assim, acostumam-se ao contato com uma morte brincalhona e companheira, personificada em bonecos-caveiras de papel machê.

A vinda dos mortos é disciplinada. No dia 30/10 voltam os suicidas, no dia 31, os acidentados, em 1.º de novembro as crianças e dia 2 os adultos. Coloca-se uma jarra de água e uma tolha na entrada da casa para o morto se refrescar de sua longa viagem ao mundo dos vivos. Nos banquetes, os falecidos têm preferência e se servem primeiro.

Há dança, música, representações teatrais, concursos de altares, comilança e beberagem. E um costume que acho que seria aplicável com muita propriedade no Brasil: as calaveras políticas, tradição que consiste em escrever epitáfios humorísticos de políticos e pessoas públicas.

Não me contive e escrevi alguns. Lula: Foi presidente do Brasil e nunca soube. Zé Dirceu: Morreu antes de ter morrido. Olívio Dutra: Aqui se espraiam os restos da minha cidadania. Teria outros, mas o espaço é curto.

No final do fandango os mortos voltam a seus lugares. Os vivos os acompanham para evitar que fiquem vagando para sempre neste mundo cruel ao qual, certamente, não mais se adaptariam. Pois, como dizem lá: ao vivo, tudo lhe falta; ao morto, tudo lhe sobra.



Publicado no blog antigo em 02/11/2005

 

08/07/2020

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Ilton Carlos Dellandréa      

Protestos estudantis no mundo inteiro.
A Revolução dos Jovens!
hoje velhos conformados.
O caos, a mudança, uma nova ordem
tão arcaica quanto a primeira
  e os sonhos inacabados.

Martin Luther King:
a noite ficou mais brilhante,
mais uma estrela no céu
e um diamante na fronte.

A Primavera de Praga:
os tanques pisando em flores,
as ruas silenciosas
redesenhadas sem cores.

Vietnã do Norte:
o engodo apoteótico da vida
capitulando à morte.

Tropicalismo e AI-5!
Inconformismo dualista
de um país de verdades-mentiras
que se convergem nas mentes:
mesmos felinos traiçoeiros,
de olhos ruins,
de bocas tortas,
ron-ros-nando,
arreganhando dentes.

Nunca perdoarei Zuenir!

Ah! as precipitações insondáveis
dos que não escrevem o amor,
dos que se levam a sério
e esquecem das verdades simples.

As coisas grandes da vida
são coisas pequenas na Arte:
1968 não terminou
simplesmente porque tu partiste.
E nunca voltaste.

04/04/2020

EM BRASÍLIA SEM LULA, MAS COM GLAUCO E FAMILIARES


Definitivamente, estive em Brasília e saí do aeroporto. A imagem aí em cima é prova cabal disto. Quem não vai ao Bar Brasília nem come as trufas da dona Cirônia jamais poderá dizer que esteve lá. Mesmo que encontre Lula e todo o seu staff, o secreto e o visível.
Fomos recebidos – a Ieda e eu – pelo Glauco e por meu genro. Este levou nossas malas para o apartamento e o Glauco levou as outras, digo, levou-nos a um tour pela Capital no seu carro especialmente preparado para nos receber, reluzente a ponto de produzir nas nuvens da cidade o reflexo iridescente captado abaixo.  Aliás, o céu de Brasília é de um azul magnífico, daqueles que você não precisa regular a máquina fotográfica para ele parecer realmente azul.
Visitamos o memorial JK, passamos pela Esplanada dos Mistérios – onde se enfileiram os enigmáticos ministérios criados para resolver nada, exceto aquilo que se resolve sem intervenção governamental – e, finalmente, a Praça dos Três Poderes. Peguei no cabo da espada da Themis e o Glauco me fotografou para que meus descendentes tenham uma prova de que fui magistrado. 
A Themis – para quem não lembra, a deusa grega símbolo da Justiça, com venda nos olhos e segurando uma balança na mão esquerda e uma espada na direita – me pareceu tristonha e aflita: está sentada e com a espada estendida no colo, sem demonstrar intenção de usá-la adequadamente. A balança, ao que consta, foi furtada. Acho que aí reside a principal causa da impunidade no Brasil.
Depois, com meu genro, fomos ao Bar Brasília, do luminoso lá em cima. Foi desenhado pelo Ziraldo. Petiscamos e, logo em seguida, partimos para o que foi a principal e mais aconchegante atividade do dia.
Gosto de encontros pessoais mais do que de lugares. Por isto, cientificado que depois conheceríamos a mãe do Glauco e sua irmã, suportei com satisfação o passeio pela cidade.
Fomos à casa do Glauco para a sobremesa. Foi uma recepção calorosa. Lídia Valéria, a mãe dele, é uma senhora agradabilíssima. Nem havíamos entrado na residência e já nos sentíamos íntimos, no bom sentido. Sua irmã, Stella, que é médica renomada no ramo da Eletrocardiografia, chegou logo depois e me senti mais tranqüilo (ela é muito bonita e mais, por discrição, não digo).
Ofereceram-nos os doces da dona Cirônia, entre eles trufas generosas e lindíssimas. Fui polidamente mal-educado recusando prová-las porque evito, à noite, alimentos estimulantes, como o chocolate. Mas experimentei outros doces. Minha má educação aumentou quando o Glauco preparou, na hora, taças de um café expresso que me pareceu muito saboroso. A Ieda e meu genro confirmaram. Mas consegui me recuperar da falta de educação, sendo mais mal-educado ainda: aceitei algumas trufas, levei-as para o apartamento à moda farnel, e provei-as no dia seguinte. Caso contrário, não poderia atestar sua excelente qualidade. 
Lula não encontrei, apesar de o Glauco ter comentado o contrário no post anterior. Intriga! Ele deve ter um sentimento latente de simpatia pelo Lula e está tentando transferir responsabilidades.
O Glauco fez uma observação muito adequada quando estávamos na Praça dos Três Poderes: quem vê a beleza peculiar de Brasília chega a esquecer as trampolinagens que lá acontecem. É algo que nem o PT conseguiu estragar.
Foi bom não ter encontrado Lula. Nada estragou o meu dia, ou meio-dia, como queiram, que foi maravilhoso do jeito que foi. Ele não estava em Brasília, mas num de seus comícios no Rio. O que confirma o que é voz corrente por lá: se você quiser encontrar o presidente, fique na sua cidade que mais hora menos hora ele aparece.
Estou pensando em transferir residência para Brasília...



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 28/02/2008

08/03/2020

PARABÉNS, MULHERES!


Hoje é o dia de vocês, assim como foi ontem e como será amanhã. Mas hoje é diferente: hoje se comemora o dia de vocês.
Bem feito! Quem precisa de um dia comemorativo é porque nos outros dias é esquecido.
Não! Não é bem assim, é assim só um pouco. Como o dia das Mães. Como o Natal. Como a Páscoa. Como o dia dos pobres, isto é, dos aposentados.
O dia dos aposentados existe. Não se criou até hoje um dia dos pobres, especialmente dedicado a eles (o dos aposentados não supre a omissão), por falta de perspectiva de retorno financeiro. Qual é o rico que vai comprar presentes para dar aos pobres? Rico não paga nem salário decente às empregadas domésticas ou aos empregados de suas empresas, quando mais dar um extra no dia dos pobres.
Dia dos ricos também não existe. Como um rico iria comemorar um dia só deles? Só se fizessem demonstrações públicas de riso à toa! Eles não precisam disto. Já têm tudo o que nós, mortais comuns, julgamos necessidades básicas e não básicas, e riem à toa, vivem de férias, e se incomodam, é claro. Mas eu trocaria a metade dos incômodos de um Bill Gates, por exemplo, pelo dobro de sua fortuna. Sem pensar duas vezes.
Os ricos, principalmente os da indústria e comércio, precisam de datas comemorativas de todo mundo para faturar ainda mais.
Mas como sou muito comum e sem criatividade vou embarcar nessa onda comercialista e deixar aqui um beijo homenageando todas as mulheres do mundo, mesmo aquelas que não têm nada com isto.
Peço que cada uma, no seu íntimo, receba este cumprimento de acordo com suas crenças, seus sentimentos e o que pensa disto tudo. Estou fazendo de conta que todas aniversariam hoje. O aniversário é uma data legítima para parabenizar alguém.
Então, além do beijo, meus parabéns pelo Dia Internacional da Mulher. Que ele se repita todos os dias! Tenham certeza de que vocês merecem muito mais do que isto.

28/02/2020

UM MONGE

Ilton Carlos Dellandréa





Ontem, quando te vi,
na Praça da Matriz,
com tua roupa branca,
teus cabelos brancos e reluzentes
puxados para trás,
teus dedos brancos
e sapatos enormes, pretos,
tive pena de ti.

Tua batina branca colada ao corpo branco
e magro,
larga demais e engomada:
não sei se eras anjo
ou alma penada.

Tive pena de ti,
pelos cinquenta anos que passaste
longe da vida profana.

Tristonho como um avô sem netos,
os olhos macios, os passos retos,
lentos e firmes,
não sei se eras mundano
ou sublime.

Ontem, quando te vi,
na Praça da Matriz,
branco em tudo, menos nos sapatos,
tive inveja de ti,
pelo meio século que passaste na serenidade
da tua vida sacerdotal.

Não sei se és santo,
ou anormal.

Nem se nos espera a mesma Eternidade. 



 (Porto Alegre, 02 de abril de 1982).
 (Taquara, 25 de novembro de 1987)

24/02/2020

EM ALGUM LUGAR DO NORTE DISTANTE E SELVAGEM








O que aconteceu com o riso,
Com as fogueiras que as moças acendiam às vésperas
das celebrações de verão?
Onde estão os vilarejos ucranianos
E os pomares de frutas das residências? 
Tudo desapareceu num fogo voraz
Mães devoram os filhos;
Loucos andam vendendo carne humana
Nos mercados.



Oleksa Veretenchenko,
“Somewhere in the Distant Wild North”, da série de poemas 1933,
publicada em Nova Ukraïna entre 1942 e 1943,
traduzida pelo Congresso Canadense-Ucraniano, Filial de Toronto.


Extraído do livro de Applebaum, Anne. 
A Fome Vermelha: A Guerra de Stalin na Ucrânia. 
Record. Edição do Kindle.


17/02/2020

A CRUZ

Mykola Rudenko



O milho começa a madurar
Mas — e seu cabelo se eriça na extremidade —
Poucos sobreviveram
Para ver a nova safra.
Ele não vai pegar no sono até amanhecer...
Então sua mãe se aproxima
E diz com tristeza
“Meu filho, hora de acordar,
O sol já se levantou sobre os campos
Não podemos ficar em paz em nossas sepulturas
A nós, os mortos, não cabe descansar.
Quem vai cuidar dos preciosos cabelos das espigas
Nos campos, querido filho?” 




Mykola Rudenko, “The Cross” [A cruz], 1976 trad. Marco Carynnyk,
em Wasyl Hryshko, The Ukrainian Holocaust of 1933
(Toronto: Bahriany Foundation, 1983), 135-36. 

Transcrito do livro de Applebaum, Anne,
A Fome Vermelha: A Guerra de Stalin na Ucrânia. Record. Edição do Kindle.

31/08/2010

Olhar desperto

Alberto Cohen


Desejo ser ladrão ou justiceiro,
de algum jeito total, definitivo,
de bom, de mau, mas que me faça inteiro,
um monstro, um santo, que inda está bem vivo.
E ver as coisas que podem ser minhas,
e as minhas coisas que há muito não vejo,
todas aquelas coisas que sozinhas
esperam ser roubadas para um beijo,
ou apenas notadas tão vizinhas.
Desejo ser a vida observando
tudo, tudo que o mundo nos oferta,
um ladrão que somente vai roubando,
ou santo cujo olhar enfim desperta.
 
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