02/11/2020

VIVA LA MUERTE!

Há algum tempo vi um filme em preto e branco em que os personagens acabam no México, em pleno carnaval. Bem, carnaval era o que eu pensava. Havia música, desfile, fantasias (que achei um tanto macabras), mas o desenrolar me esclareceu que se comemorava el dia de los muertos.

Os mexicanos, principalmente os nativos, entre o fim de outubro e início de novembro recebem seus parentes e amigos falecidos que voltam à terra para confraternizar. Não sei como se dá, exatamente, esse encontro mas, em todos os casos, revela uma faceta peculiar de se encarar a Velha-da-Foice que está numa das esquinas, aí pela frente, esperando cada um de nós para o seu rebanho.

O escritor mexicano, Nobel de Literatura, Octavio Paz disse: A morte não nos assusta porque a vida já nos curou dos medos. E: A confusão incongruente de atos, arrependimentos e esperanças, que é a vida de cada um de nós, encontra na morte não sentido ou explicação, mas um fim.

Essa tradição pré-hispânica não tem origens claras e perdeu genuinidade com a intervenção da Igreja Católica, sempre pronta a impor sua crença a ferro e fogo e muita morte, não tão bem humorada. Houve necessárias adaptações.

Simone Andréa Carvalho da Silva, coletando dados para sua tese de doutorado, escreveu interessante artigo numa revista Planeta:

A familiaridade com que o mexicano trata a morte não o isenta de temê-la, mas o ajuda a conviver e sobreviver a esse medo. Desde cedo as crianças devoram avidamente as caveirinhas feitas de açúcar, bala de goma, chocolate ou amaranto, pães dos mortos e todo tipo de guloseimas servido a um fausto banquete de vivos e mortos. Assim, acostumam-se ao contato com uma morte brincalhona e companheira, personificada em bonecos-caveiras de papel machê.

A vinda dos mortos é disciplinada. No dia 30/10 voltam os suicidas, no dia 31, os acidentados, em 1.º de novembro as crianças e dia 2 os adultos. Coloca-se uma jarra de água e uma tolha na entrada da casa para o morto se refrescar de sua longa viagem ao mundo dos vivos. Nos banquetes, os falecidos têm preferência e se servem primeiro.

Há dança, música, representações teatrais, concursos de altares, comilança e beberagem. E um costume que acho que seria aplicável com muita propriedade no Brasil: as calaveras políticas, tradição que consiste em escrever epitáfios humorísticos de políticos e pessoas públicas.

Não me contive e escrevi alguns. Lula: Foi presidente do Brasil e nunca soube. Zé Dirceu: Morreu antes de ter morrido. Olívio Dutra: Aqui se espraiam os restos da minha cidadania. Teria outros, mas o espaço é curto.

No final do fandango os mortos voltam a seus lugares. Os vivos os acompanham para evitar que fiquem vagando para sempre neste mundo cruel ao qual, certamente, não mais se adaptariam. Pois, como dizem lá: ao vivo, tudo lhe falta; ao morto, tudo lhe sobra.



Publicado no blog antigo em 02/11/2005