14/12/2007

SE...

de Rudyard Kipling
(tradução de Alcântara Machado)




Se puderes guardar o sangue frio diante
de quem fora de si te acusar; e, no instante
em que duvidem do teu ânimo e firmeza,
tu puderes ter fé na própria fortaleza,
sem desprezar contudo a desconfiança alheia...

Se tu puderes não odiar a quem te odeia
nem pagar com a calúnia a quem te calunia,
sem que tires daí motivos de ufania;
sonhar, sem permitir que o sonho te domine;
pensar, sem que em pensar tua ambição se confirme;
e esperar sempre e sempre, infatigavelmente...

Se com o mesmo sereno olhar indiferente
puderes encarar a Derrota e a Vitória,
como embustes que são da fortuna ilusória;
e estóico suportar que intrigas e mentiras
deturpem a palavra honesta que profiras...

Se puderes, ao ver em pedaços destruída
pela sorte maldosa, a obra de tua vida,
tomar de novo a ferramenta desgastada
e sem queixumes vãos, recomeçar do nada...

Se, tendo loucamente arriscado e perdido
tudo o quanto era teu, num só lance atrevido,
tu puderes voltar à faina ingrata e dura,
sem aludir jamais à sinistra aventura...

Se tu puderes coração, músculos, nervos,
reduzir da Vontade à condição de servos,
que, embora exaustos, lhe obedeçam ao comando...

Se, andando a par dos reis e com os grandes lidando,
puderes conservar a naturalidade,
e no meio da turba a personalidade;
impávido afrontar adulações, engodos,
opressões; merecer a confiança de todos,
sem que possas contar, todavia, contigo,
incondicionalmente o teu melhor amigo...

Se, de cada minuto os sessenta segundos,
tu puderes tornar com o teu suor fecundos...
a Terra será tua, e os bens que se não somem,
e, o que é melhor, meu filho, então serás um Homem!


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09/12/2007

MERAS CASUALIDADES...

Há certos detalhes da vida que fazem, ou pelo menos permitem, pensar e sorrir. Há alguma coisa assim no casamento da Ieda e meu. Ou dela comigo, ou o contrário. Acho que é dela comigo, porque quando eu apenas iniciava falar de namoro — levei uns dois meses para conquistá-la — ela, que sempre foi muito objetiva e prática, já pensava em casamento e filhos... Quando percebi estava casado. Mas esta é outra história.

É claro que, para o sucedido, tem muita importância o fato de sermos originários de uma cidade, Taió, que naquela época era ainda menor que hoje. Todo mundo se conhecia.

Nos tempos da juventude de nossos pais era ainda menor, mas menor do que aquilo é quase impossível admitir que pudesse ser, embora não estivéssemos lá para conferir.

Mas em determinadas épocas da vida deles, antes de se casarem, meu pai namorou a mãe da Ieda e o pai da Ieda, por sua vez, namorou minha mãe. Todos eram meio dançadores — naquele tempo quem não o fosse tinha chances enormes de permanecer solteiro — e havia bailes e domingueiras nos quais os jovens se encontravam. Desses encontros surgiam esses namoricos.

Não foram namoros daqueles que prenunciavam a superveniência de um casamento até que a morte os separasse, mas apenas flertes, bem mais comportados e comedidos do que os ficar de hoje. Naquele tempo flertes e namoros eram — digamos — mais respeitosos, para usar termo da época.

Mas houve alguma coisa entre eles, alguma química — já usando um termo mais atual — que provocou esses namoros de través.

Há outra circunstância também interessante.

Minha mãe trabalhava com um tio meu, casado com uma de suas irmãs mais velhas, num pequeno negócio de secos e molhados que ele mantinha na parte frontal da residência. Foi lá que meu pai conheceu minha mãe, depois namoraram e casaram.

Anos mais tarde os pais da Ieda moraram naquela casa, por pouco tempo, mas o suficiente para que eu a conhecesse e passasse a namorar com ela. Então, na mesma casa em que meu pai conheceu minha mãe eu conheci a Ieda...

Haverá algum desígnio enigmaticamente superior que dirigiu aqueles pontos de luz (nossos pais) e suas linhas de vida em intersecções atravessadas que depois se desfizeram, se refizeram nos limites dos dois casais que casaram e geraram, entre outros, dois filhos que um dia se encontraram, casaram, e tiveram seus próprios filhos?

Seria isto uma continuidade da química afetiva que uma vez os atraiu, primeiro provisoriamente, depois, alterados os sujeitos da relação, com definitividade, ou são detalhes que podem ser jogados na vala comum do acaso?

Eu não sei explicar essas casualidades. Talvez a
Giorgia... Sou bastante cético e acho mais simples crer que foi mera coincidência.

Pode não ser nada transcendental, mas pelo menos é um tema agradável a ser discutido numa roda de amigos quando, depois de esgotados os assuntos fúteis, aquele silêncio constrangedor cai estrondosamente no ambiente e as mentes, obliteradas pelo vinho, a censura de guarda baixa, permitem falar de coisas sérias.

E se aquela casa em que a gente se conheceu ainda estivesse lá eu a compraria. Ah, compraria! Desde que, antes, ganhasse na mega-sena.

Mas ela foi demolida e ergueram no local um posto de gasolina. Não poderia ser mais desestimulante. Só o combustível me interessaria. O posto não.




Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 11/10/2004.