12/04/2008

Interpretando a Lei

Num dos últimos textos brinquei sobre a jurisprudência como repositório de julgados em que o advogado poderá buscar apoio em favor da tese que abraçar num processo, mesmo que em outro tivesse que usar de tese contrária, também respaldada na jurisprudência. Disse então que a interpretação gramatical da lei é a pior de todas

As multas aplicadas por pardais e caetanos muitas vezes pegam os condutores que apenas momentaneamente estão infringindo uma regra de trânsito, sem perigo nenhum à incolumidade pública.

Eu, por exemplo, sofri uma multa em julho de 2001 porque trafegava a 48 km por hora na frente de um colégio. Acontece que era sábado à tarde, no período de férias, não havia ninguém no colégio e eu ia sozinho por uma rua pouco movimentada... Mesmo assim, contra os princípios da lógica e do bom senso, o pardal estava funcionando para flagrar motoristas distraídos que hipoteticamente poderiam atropelar alunos de uma escola em férias num sábado à tarde.

Os pardais foram introduzidos em Porto Alegre pelo PT. Entende-se: a maioria de seus membros sofreu perseguições na época da Ditadura e não tem muita simpatia por militares. Por isto substituíram a polícia militar que atuava no trânsito por pardais, lombadas, estreitamento de pistas, rótulas mal feitas e outras armadilhas. Eu, por via das dúvidas, cada vez que passo por um pardal ou por uma lombada eletrônica bato uma reverente continência. Nunca se sabe.

Em Porto Alegre a administração popular criou também um exército de agentes municipais de trânsito, chamados de azuizinhos pela cor do uniforme que usam. São encarregados de, num acidente de trânsito sem vítima, fazer levantamentos técnicos e atrapalhar o tráfego no local. Já vi acidentes com 4 ou 5 azuizinhos borboleteando em volta dos veículos sinistrados como baratas tontas, nenhum se dignando a orientar o trânsito daqueles não envolvidos e cuja pretensão era simplesmente chegar em casa.

Mas no fundo, pardais e policiais militares (aqui eles são chamados de brigadianos) interpretam a lei mecanicamente, ou eletronicamente, de modo que não adianta discutir. Quando fui multado por aquele pardal logo percebi, parei o carro e tentei argumentar com ele, mas ele permaneceu impassível. Dono absoluto da verdade, olhando de cima prá baixo, fez de que conta que não me ouvia.

Fui embora quando começou a juntar gente e ouvi alguém dizer que ia chamar uma ambulância do Hospital São Pedro (o manicômio daqui). Acho que era para o pardal, mas não quis ficar para comprovar.

Os brigadianos faziam o mesmo. Há muito tempo, há muito tempo mesmo, quando ainda havia brigadianos nas ruas, num domingo, fomos almoçar no centro e estacionei o carro, sabiamente orientado por um flanelinha, num ponto de ônibus executivo. Esses microônibus não circulam nos finais de semana e o meu carro, ali, não atrapalharia nada nem ninguém.

Quando saí do restaurante um brigadiano estava aplicando uma multa. Expliquei a situação, mas ele apontava a placa que indicava a parada dos ônibus especiais e indagava:

– O senhor está vendo a placa aí? Aqui é um ponto-de-ônibus e é proibido estacionar.

Não adiantou argumentar. Apelei para o bom senso, para a ausência de prejuízo de minha atitude (estava até facilitando o acesso de outros veículos à praça), mas cada vez que eu terminava minha pregação ele apontava a placa e dizia:

– O senhor está vendo a placa aí? Aqui é um ponto-de-ônibus e é proibido estacionar.

Esta é a interpretação brigadiana. O bom senso, o lógico, o óbvio sucumbem diante de um símbolo pintado numa placa. É como você ser multado por ter estacionado defronte à própria garagem e tentar explicar isto ao guarda... O flanelinha foi mais sábio. Bem que o procurei para me auxiliar a convencer o guarda, mas ele, demonstrando toda sua sabedoria, tinha se afastado solertemente do local.

Não insisti com o guarda: uma discussão acadêmica seria inútil. Além disto, na sua bitolada visão, ele estava certo. Eu era o errado por acreditar na lógica e no bom senso.

Por isto todos devem ser complacentes com os juízes e não baixarem a lenha quando dizem que a água é vinho e que vinho é água. Eles também fazem milagres interpretativos.



Texto publicado originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 14/03/2005,
sob o título A INTERPRETAÇÃO BRIGADIANA (OU GRAMATICAL) DA LEI.
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10/04/2008

Assim Virei Carnívoro

Eu converso com as flores. Aliás, já conversei. Pelo menos uma delas já conversou comigo. Nada demais. Jayme Caetano Braun dialogava com as estrelas e ele mesmo disse, assim:

“Quando as estrelas se acendem
Eu converso com as estrelas
Porque aprendi a compreendê-las
E elas também me compreendem”.

Então não tem nada demais eu conversar com flores, que estão bem próximas e têm vida própria, embora vegetais.

O meu diálogo ocorreu num dia em que eu estava desanimado, triste, e resolvi passear pelos caminhos secretos do jardim procurando algum duende.

De repente o jardim ficou grande demais ou me senti pequeno diante da beleza das flores, do verde e suas múltiplas tonalidades, da projeção do sol entre as folhas formando fachos de luz irisados que iluminavam cutículas de orvalho, pólen e partículas imponderáveis que se sustentavam em teias-de-aranha, evoluindo como formosas trapezistas e acrobatas dotadas de poderes especiais.

Parece que alguns se transferiram para mim.

Deitei num cantinho entre as folhagens, mas não gostei da experiência. A beleza visual contrastava com a realidade: mosquitos, mosquinhas, formigas, abelhas, marimbondos começaram a me atacar tentando me expulsar dali.

Jardins são lindos desde que você não deitar neles. São mais bonitos numa foto, numa pintura ou por detrás de uma janela. A não ser que você goste de se coçar.

Havia uma flor mais saliente e, instintivamente, sem sentido porque tenho muitos acessos de idiotice, perguntei-lhe:

– Putz! Por que vocês estão querendo me expulsar daqui se eu só vim deitar um pouco em busca de descanso?

Não é que ela me respondeu! Fiquei um tanto assustado e incrédulo mas não tive dúvidas. Aquela flor, cujo nome em nem sabia, falou comigo:

– Porque, além de gordo e pesado, você é muito maldoso.

– Como assim?

– Deitando aí você machuca a grama. Ou você acha que isto não dói? Deixe uma jamanta passar por cima de você para sentir como é.

– Sim, mas não faço isto por maldade. Apenas queria descansar. Eu não sabia que isto machucava as gramíneas.

– Então você é um ignorante. Só não mando você pastar porque seria ainda pior. Mas por que você acha que sou assim bela e a grama tão viçosa e verdinha? Porque temos vida, ora bolas. Você não sabe que temos vida, precisamos de ar e de água para viver e a única coisa que não podemos fazer é nos movimentar? Aliás, nunca vi você regando as flores, só sua esposa. Somos presas no chão pelas nossas raízes que permitem a circulação da seiva que nos alimenta e água faz bem, principalmente neste tempo de seca.

– Sim, não sou assim tão burro. Isto eu sei.

– Então porque você nos arranca e nos enfia num vaso, colocando um pouco de água apenas para estender nossa agonia? Nós morremos quando arrancadas do solo e entramos em coma quando colocadas num vaso... Daí nos transformamos vegetais em vida verdadeiramente vegetativa! E nós temos sentimentos também, mas você não respeita os nossos sentimentos.

Ela demonstrou algum dengo, mas se recompôs e continuou:

– Você está vendo a hortinha lá? Aqueles pés de alface mais bonitos estão em pânico, preocupados, porque sabem que logo vão ser arrancados, cortados com aquela enorme faca serrilhada da cozinha, lavados e comidos por você. O pior: alguns só servem de decoração e depois são jogados no lixo.

– Eu nunca tinha pensado nisto.

– É bom que pense. É bom que pense também que somos indefesas. Não temos como reagir. Somos simplesmente arrancadas de nosso habitat para encher o bucho de vocês. Os bois, de quem não gostamos nem um pouco porque vivem nos arrancando a dentadas como o Mike Tyson fez com a orelha do Hollyfield, por exemplo, têm chifres que podem usar como armas para se defender. Só que o boi é um bicho burro, não sabe a força que tem, e não se defende porque não quer. Nós não! Nós não nos defendemos porque não podemos.

– É verdade.

– O que adianta dizer que é verdade? Tem uns aí que reclamam que a carne não presta porque são aplicados muito hormônios nos frangos e no gado, mas o que dizer dos agrotóxicos que aplicam nas verduras e legumes e do estrume (eks!) que jogam como única opção para a gente se alimentar?

– ...

– Só porque não mugimos nem nos esganiçamos como um porco quando nos arrancam do solo não quer dizer que não sentimos que nos matam por puro interesse alimentar. Dizem que nossas fibras limpam os intestinos de vocês. Ora bolas! Vão plantar batatas e não se esqueçam de regá-las. Você acha agradável a gente servir de saponáceo para os intestinos de vocês? Vai limpar esgoto do lado de dentro todos os dias para ver o que que é bom.

Eu só ouvia, ruborizado, sem saber para onde olhar.

– Por isto não gostamos da raça humana em nossos domínios. Temos um contrato com insetos de todas as espécies e tamanhos para azucrinar vocês quando vêm aqui. Você tem sorte que estamos longe do rio, senão ia sofrer alguns dias com as picadas dos borrachudos. E aqueles mosquitinhos que ficam querendo entrar na sua boca, na sua orelha, zunindo ao seu redor, sabe onde vivem? Principalmente debaixo dos rabos dos cachorros abandonados e sujos e são nossos principais aliados. Ah! Ah! Ah! Quantos você já engoliu?

A conversa estava ficando chata de modos que me acordei, fui tomar um banho e descansar no meu recanto dentro de casa, fechado, com o ar condicionado ligado na frente de um computador e de uma tevê. Ah, que sensação de bem estar!

Já não lhe aconteceu de alguém lhe dizer certas verdades, nuas e cruas, e você não gostar, achar a pessoa pedante, mas depois, bem pensando e sem confessar a ela, concluir que estava certa? Assim ocorreu comigo. Achei que aquela flor, embora chatérrima, tinha suas razões. Por isto, nunca mais comi salada.

Foi assim que me tornei um carnívoro inveterado.


Publicada originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 28/04/2005.
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