18/10/2007

Aniversário do Francisco


Um dia, há exatos 20 anos(*), um ET baixou em nossa casa, fazendo alarde, a cavalo num cagaço que a Medicina pregou no pai: problemas anestésicos provocaram uma parada respiratória na Ieda e o guri quase que nasceu órfão.

Por algumas horas, eu me senti viúvo. Fugi para telefonar para o meu amigo Tonico Raymundi, médico de Taió, que me tranqüilizou. Na maternidade só me assustavam. Mas tudo se resolveu de forma boa.

O nome era para ser Tito Lívio. Mas na última hora, pela emoção, foi decidido que homenagearíamos os dois avós. E ficou tudo isso aí, que ele já abreviou.

O piá foi crescendo mas não se alimentava direito. A Ieda se animava quando ele comia pelo menos uma colher de papinha. Prevíamos que seria nanico e magrela. Quando dissemos ao Dr. Renato, pediatra, que o achávamos exageradamente magro, ele apontou uma foto de seus filhos sobre a mesa e fomos obrigados a nos conformar. Hoje é o maior da família: mede 1,76 m, o que não é muita vantagem. Não é o mais gordo porque este privilégio é do pai como o foi, por algum tempo, o de usar os cabelos mais compridos. O passar dos anos e a inadaptação a perucas fulminou esse direito.

Enviei, depois, uma carta ao mesmo médico Raymundi, que é gaúcho, dizendo: “Nossa vida mudou muito depois que nasceu o piá. Todos os nossos conceitos e princípios sobre educação de filhos foram por água abaixo. Mas acho que a culpa é minha. Ninguém mandou botar tantos “ff” no nome dele. F.F.F.D. É f(*)da”.

Nasceu meio de guampa torta, como diz o gaúcho querendo expressar destemor, pois se mostrou desafiador. Certo dia, em 1987, eu estava no escritório brigando com o meu primeiro micro, um Expert MSX da Gradiente, daqueles que nem disquete possuía.

Eu gravava uma sentença enorme numa fita K-7 – alguém lembra desse sofrimento? – e isto demorava um século. Acho que estava de joelhos, rezando para que não travasse. Mas a luz oscilou, o micro desligou e perdi a sentença. Dei uma porrada na mesa, disse um palavrão, e abaixei a cabeça, desanimado. Teria que começar tudo de novo.

Percebi um arrastar de chinelos se aproximando e na porta surgiu ele. Com a autoridade de seus 3 anos, calçando meus chinelos, e me olhando de cenho franzido (ele já nasceu de cenho franzido), indagou:

– Pu quê que tu pode dizê fidaputa e eu não?

Liberei geral:

– Podes dizer quando tu quiseres também e pronto!

Saiu de fininho.

Em tudo o que se meteu foi bem sucedido. Venceu torneios de karatê (quebrou a quina de uma parede de alvenaria e uma janela para mostrar seus progressos) e foi campeão de kart (de prêmio, ganhou um Fiat Uno que amenizou os gastos do paitrocinador). Sofreu um acidente sério, mas aqui também foi só um susto: o capacete rachou mas a cabeça permaneceu íntegra. Depois elegeu o piano, alçou-o à categoria de sua projeção profissional, e tem sido muito elogiado. Sobre isto sou suspeito e não falo. Há coisas que pertencem ao Futuro.

Recebeu apoio integral quando se dedicou à Música. Fiz comparações sobre a vida de um juiz, que lida com aquilo que há de socialmente pior, e a de um artista, que sobrevoa essas misérias e se fixa num patamar moralmente superior, longe da degradação dos homens.

Não é bem assim. Descobri que há indignidade no mundo artístico também. Por exemplo: colocar lâminas de gilete entre as teclas do piano para prejudicar um candidato em concurso...

Cuida, filho, com as pedras e as giletes do caminho, mas siga em frente.

Quando estás sentado ao piano, tocando, tu te envolves apenas com transcendências e o mundo é teu. O resto é circunstancial.




Texto publicado originalmente no Jus Sperniandi, em 18/10/2004.


(*) Hoje o Francisco está completando 23 anos.