17/12/2004

ALÉM DA LINHA VERMELHA - Filme

Quando assisti Além da Linha Vermelha (no original, A Tênue Linha Vermelha) pela primeira vez não cheguei ao final. Senti deslocadas as colocações filosóficas sobre a vida, sobre o sentido de viver, sobre as lutas da Natureza que o narrador faz já no início. Afinal, é um filme de guerra.
Depois achei que deveria vê-lo com mais vagar e admirei tanto o filme que o coloquei na minha lista de prediletos.


O título em Português foi dado por quem não viu o filme ou não o entendeu. A “linha vermelha” nada tem a ver com linha de batalha ou linha física, mas é aquele tênue e nebuloso limite entre a sanidade e a loucura que o filme aborda com extrema propriedade.

A fotografia é esmerada. As tomadas são calmas e tranqüilas, não muito ao estilo de Hollywood – exceto as de batalha.

O elenco é de primeira. Atores que fazem papéis secundários depois se destacaram em filmes maiores. O diretor Terrence Malick é um perfeccionista que até por isto faz poucos filmes.

A ação transcorre na II Guerra, na batalha do Pacífico. A famosa Companhia Charlie é enviada a conquistar uma posição japonesa em Guadalcanal (um campo de pouso que serviria de apoio logístico nas comunicações entre Austrália e América). Já se sabe quem vence, mas o final não é propriamente hollywoodiano.

Sobressai o ego inescrupuloso do coronel interpretado por Nick Nolte, que objetiva agradar superiores. Como contraponto, o capitão que se sente responsável por seus soldados, que reluta em mandá-los para a morte e que se nega a cumprir uma ordem suicida.

Não é um filme que possa ser entendido numa única vez. Há flashbacks aparentemente inócuos, mas que se encaixam no roteiro quebrando a dureza da guerra com cenas de poesia e tranqüilidade, lembrando que em outros lugares há vida. Há cortes para cenas da natureza, como que a dizer que esta segue seu ciclo normalmente, apesar das guerras e batalhas que os homens travam sobre a terra.

Os soldados de Malick têm medo e cólicas, rezam, vomitam e enlouquecem. Não morrem de repente. Agonizam como seres humanos. Alguns estão ali não para guerrear, mas por obrigação. Nada parecidos com os heróis de O Resgate do Soldado Ryan.

Foi retratada de maneira muito crível a dominação dos japoneses e sua humilhação. Não a humilhação imposta pelo vencedor, mas a sentida pela perda da batalha (embora haja quem critique essa versão dizendo que os japoneses jamais se renderiam).

O personagem Witt (James Caviezel) é um soldado sem alma de soldado, bondoso, contemplativo e superior. A vida simples e afetuosa dos nativos, com quem conviveu antes de ser resgatado para a guerra, o marcou profundamente, a ponto de qualificá-la como “outra vida”. Não é entendido por seu desafeto, o Sargento Welsh (Sean Penn), que acolhe a assertiva metafisicamente.

A indiferença inicial dos nativos em relação à guerra que transcorre ao seu lado é bem explorada, principalmente numa cena em que o exército americano se dirige ao seu objetivo e encontra um deles que segue imperturbável. Os soldados o olham surpresos.

Witt, no final, retorna ao vilarejo e percebe, perplexo, que a guerra corrompeu os nativos que discutem entre si. Crianças com quem antes brincava foram contaminadas por doenças e fogem dele:

“Nós éramos uma família. Como foi se desfazer, de tal maneira que nos viramos uns contra os outros, uns prejudicando os outros? Como fomos perder a bondade que nos foi dada, como a deixamos escapar, estilhaçando-a ao invés de cultivá-la? O que nos impede de crescer e alcançar a glória?”

O pior é constatar que muitos dos lugares comuns utilizados são atuais porque expressam princípios universais.

04/08/2004

A PRECE DE UM JUIZ - O Autor

O autor da oração postada abaixo, Dr. João Alfredo Medeiros Vieira, foi Juiz da Direito em Santa Catarina.


“A PRECE DE UM JUIZ”, hoje equiparada à Oração da Mestra, de Gabriela Mistral, e ao “Retrato de Mãe”, de D. Ramon Angel Jara, foi publicada inicialmente pela Prefeitura Municipal de Joaçaba, em junho de 1973; depois, em opúsculo, pelo Tribunal de Alçada Criminal do Estado do São Paulo e oferecida a todos os juízes no Natal de 1973; reproduzida, em fevereiro de 1974, por ocasião do Centenário do Tribunal de Justiça do Estado São Paulo, no livrete da Celebração Eucarística de Ação de Graças e lida na Catedral da Sé;publicada pelos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e da Bahia, oferecida a todos os juizes; vertida para o Alemão, Inglês, Francês, Italiano, Espanhol. Árabe, Holandês e Hebraico; reproduzida em diversas obras e antologias, inclusive “Cristo Branco” de José Augusto Fontes Rico (Ed. Paulinas, SP, 1975); no anuário “Serra Post Kalender” (100.000 exemplares em língua alemã); na Revista Adventista, outubro 1974; e publicada em mais de duas centenas de jornais, revistas, suplementos literários como o de o Estado de São Paulo), programas, sessões artístico-religiosas da vários credos, opúsculos, folhetos e publicações de diversos países.

A PRECE DE UM JUIZ - Oração

A PRECE DE UM JUIZ - JOÃO ALFREDO MEDEIROS VIEIRA


SENHOR? Eu sou o único ser na terra a quem Tu deste uma parcela da Tua Onipotência: o poder de condenar ou absolver meus semelhantes.

Diante de mim as pessoas se inclinam; à minha voz acorrem, à minha palavra obedecem, ao meu mandado se entregam, ao meu gesto se unem, ou se separam, ou se despojam. Ao meu aceno as portas das prisões se fecham nas costas do condenado ou se lhe abrem, um dia, para a liberdade. O meu veredicto pode transformar a pobreza em abastança, e a riqueza em miséria. Da minha decisão depende o destino de muitas vidas. Sábios e ignorantes, ricos e pobres, homens e mulheres, os nascituros, as crianças, os jovens, os loucos e os moribundos, todos estão sujeitos, desde o nascimento até a morte, à LEI, que eu represento, e à JUSTIÇA, que eu simbolizo.

Quão pesado e terrível é o fardo que puseste nos meus ombros! Ajuda-me, Senhor! Faze com que eu seja digno desta excelsa missão! Que não me seduza a vaidade do cargo, não me invada o orgulho, não me atraia a tentação do Mal, não me fascinem as honrarias, não me exalcem as glórias vãs. Unge as minhas mãos, cinge a minha fronte, bafeja o meu espírito, a fim de que eu seja um sacerdote do Direito, que Tu criaste para a Sociedade Humana. Faze da minha Toga um manto incorruptível. E da minha pena não o estilete que fere, mas a seta que assinala a trajetória da Lei no caminho da Justiça.

AJUDA-ME, SENHOR a ser justo e firme, honesto e puro, comedido e magnânimo, sereno e humilde. Que eu seja implacável com o erro, mas compreensivo com os que erraram. Amigo da Verdade e guia dos que a procuram. Aplicador da Lei, mas antes de tudo cumpridor da mesma. Não permitas, jamais, que eu lave as mãos como Pilatos diante do inocente, nem atire, como Herodes, sobre os ombros do oprimido, a túnica do opróbrio. Que eu não tema César e nem, por temor dele, pergunte ao poviléu, se ele prefere "Barrabás ou Jesus”...

Que o meu veredicto não seja o anátema candente e sim a mensagem que regenera, a voz que conforta, a luz que clareia, a água que purifica, a semente que germina, a flor que nasce no azedume do coração humano. Que a minha sentença possa levar consolo ao atribulado e alento ao perseguido. Que ela possa enxugar as lágrimas da viúva e o pranto dos órfãos. E quando diante da cátedra em que me assento desfilarem os andrajosos, os miseráveis, os párias sem fé e sem esperança nos homens, espezinhados, escorraçados, pisoteados e cujas bocas salivam sem ter pão e cujos rostos são lavados nas lágrimas da dor, da humilhação e do desprezo, AJUDA-ME, SENHOR, a saciar a sua fome e sede de Justiça!

AJUDA-ME SENHOR!

Quando as minhas horas se povoarem de sombras; quando as urzes e os cardos do caminho me ferirem os pés; quando for grande a maldade dos homens; quando as labaredas do ódio crepitarem e os punhos se erguerem; quando o maquiavelismo e a solércia se insinuarem nos caminhos do Bem e inverterem as regras da Razão; quando o tentador ofuscar a minha mente e perturbar os meus sentidos, AJUDA-ME, SENHOR!

Quando me atormentar a dúvida, ilumina o meu espírito; quando eu vacilar, alenta a minha alma; quando eu esmorecer, conforta-me; quando eu tropeçar, ampara-me.

E QUANDO UM DIA, finalmente, eu sucumbir e já então como réu, comparecer à Tua Augusta Presença para o último Juízo, olha compassivo para mim. Dita, Senhor, a Tua sentença.

Julga-me como um Deus.
Eu julguei como homem.

03/08/2004

A REALIDADE DA VIDA - Curiosidade

Extraído de uma revista antiga, num consultório médico, há mais de 20 anos:


Deus criou o Burro e disse:
— Obedecerás ao Homem, carregarás fardos pesados nas costas e viverás 30 anos. Serás Burro.
O Burro virou-se para Deus e disse:
— Senhor! Ser Burro, obedecer ao Homem, carregar fardos nas costas e viver 30 anos? É muito Senhor! Bastam-me apenas dez.




Deus criou o cachorro e disse:
— Comerás o osso que te jogarem no chão, tomarás conta da casa do Homem e viverás 20 anos. Serás Cachorro.
O Cachorro virou-se para Deus e disse:
— Senhor! Tomar conta da casa do Homem, comer o que jogarem ao chão e viver 20 anos? É muito Senhor. Bastam-¬me dez.


Deus criou o macaco e disse:
— Pularás de galho em galho, farás macaquices e viverás 30 anos. Serás Macaco.
O Macaco virou-se para Deu, e disse:
— Senhor! Pular de galho em galho, fazer macaquices e viver 30 anos? É muito, Senhor! Bastam-me vinte.


E Deus fez o Homem e disse.
— Serás o Rei dos Animais, dominarás o Mundo, serás inteligente e viverás 30 anos.



O Homem virou-se para Deus e disse:
— Senhor! Ser Rei dos Animais, dominar o Mundo, ser inteligente e viver 30 anos? É pouco, Senhor! Vinte anos que o Burro não quis, 10 anos que o Cachorro recusou e 10 anos que o Macaco não está querendo, dai-me a mim Senhor, para que eu viva pelo menos 70 anos.

E Deus atendeu ao Homem. Até os 30 anos o Homem vive a vida que Deus lhe deu. É Homem.
Dos 30 aos 50 anos, o Homem casa e carrega os fardos nas costas para sustentar a família. É Burro.
Dos 50 aos 60, já cansado, ele passa a tomar conta da casa. É Cachorro.
Dos 60 aos 70, mais cansado ainda, ele passa a viver aqui e ali, na casa de um filho ou de outro e faz gracinhas para as crianças rirem. É Macaco.

NOTA: Esta é a realidade da vida. De nada adianta o Dinheiro, o Orgulho e a Vaidade se todos nós teremos que passar por esta fases...

02/08/2004

A EXCÊNTRICA FAMÍLIA DE ANTONIA - Filme

É muito prazeroso descobrir coisas belas ao acaso.

Foi assim, por exemplo, com Carl Orf. Entrei em contato com sua música através de um disco numa loja que nem lembro qual. E o fiz não através de sua obra mais conhecida, Carmina Burana, mas de outra, menos divulgada, Catulli Carmina.

Foi também enorme a alegria que senti ao ouvir, pela primeira vez, Spozalisio, de Liszt, interpretada por meu filho. Não conhecia a obra antes de nenhuma fonte. Acho que é uma de suas melhores peças curtas.

Logo que descubro alguma novidade ataca-me a compulsão de indicar minha descoberta a todos tentando impingir-lhes o meu gosto e convencê-los de que devem apreciar aquilo que aprecio porque o que aprecio é bom e é o melhor para eles. Neste aspecto, sou meio petista.

Minha última descoberta casual foi A Excêntrica Família de Antonia (no original holandês apenas Antonia) que me propiciou momentos de alegria, tristeza, satisfação e melancolia. Mas com um deleite que há muito não experimentava num filme.

Não o conhecia, o que não significa que não seja famoso. Pelo contrário, é multipremiado: Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1996, Melhor Filme do Festival de Toronto, Melhor Roteiro no International Film Festival de Chicago e Melhor Diretor no Hamptons Film Festival. Devo penitenciar-me por ser tão mal informado.

É um filme peculiar. A diretora Marleen Gorris soube dosar momentos de alegrias, tristezas, tragédias e superação de modo eficiente e integrado.

Retrata primordialmente mulheres que, em princípio, não precisam de homens. Ou deles necessitam apenas para a procriação, embora a própria Antonia acabe por sucumbir, não na forma tradicional, aos apelos afetivos de um pretendente. A preferência sexual das personagens é exposta com alguma concisão num único trecho do filme, numa seqüência-resumo não apelativa e plasticamente bem feita.

O filme inicia com Antonia voltando ao vilarejo onde nasceu para enterrar sua mãe, logo após a II Guerra. O primeiro susto: a mãe se ergue, diz alguns impropérios de cunho admoestador à filha e à neta e volta à sua imobilidade mortuária. Logo se percebe que é apenas a materialização do inconsciente de Antonia, usado depois em outras seqüências.

O filme valoriza a vida em comunidade mais que a familiar. Politemático, passa por discussões sobre a Vida e a Morte, Filosofia, Matemática, Religião, especialmente através de um excêntrico habitante do lugar que se dedica a estudar Schopenhauer e Nietzsche.

Aliás, os personagens, em sua maioria, seriam excluídos sociais em qualquer lugar do planeta: um casal de retardados mentais (ela fora estuprada pelo próprio irmão), uma mulher solitária que uiva para a lua cheia e seu vizinho do andar inferior que camufla sentimentos de amor por ela, outra cujo maior prazer é procriar e que, surpreendentemente, morre no parto... Mas ali, naquele lugar, conseguem viver em relativa harmonia, como uma orquestra desafinada que, em alguns compassos, consegue performance adequada. Esse amálgama de caracteres, por incrível que pareça, acaba por projetar um resultado interessante e surpreendente.

As palavras finais revelam a honestidade da intenção da diretora: “E assim, tanto quanto esta crônica, nada se conclui”.

Uma crônica com tendência surrealista, às vezes divertida, às vezes trágica, quase sempre paradoxal, de retalhos de vidas que se encontram, confraternizam, brigam e se chocam no resumo do mundo que é o vilarejo rural onde moram e necessariamente se cruzam.

18/07/2004

NAS ASAS DO QUETZAL - Comentário


Há algum tempo deixei de ler romances. Troquei o gênero por biografias e por relatos de fatos reais. São mais confiáveis, exceto as autobiografias: nestas, inconscientemente (ou não) os autores minimizam suas fraquezas e exaltam seus acertos.
Os romances me desencantaram, muitos por sua inverossimilhança, muitos por sua artificialidade e também por erros históricos ou do próprio entrecho.
A vida real sempre é mais interessante. Os dramas, sofrimentos, alegrias e desenganos são autênticos, sem que o autor tenha que se contorcer visando dar credibilidade a fatos psicológicos que não experimentou.
Li muito sobre compositores, principalmente Mozart, cuja vida é peculiar. Nenhum romancista, por mais imaginativo que fosse, poderia criar aquele enredo sofrido e doloroso cujo personagem, mesmo assim, nos deixou obras alegres e vivas, numa contradição psicologicamente difícil de entender. Algum dia vou me deter mais sobre o assunto.
Depois me dediquei a leituras sobre a conquista do Everest. Li inclusive as insinuações um tanto maliciosas de Jon Krakauer (No Ar Rarefeito) contra o alpinista russo Anatoly Boukreev e a resposta deste, mais convincente (A Escalada), em relação à tragédia de maio 1996. Vi o dvd Morte no Everest, baseado no livro do primeiro.
Depois me envolvi com as conquistas dos pólos e o trágico desfecho da incursão do capitão Scott, sobrepujado pelo norueguês Amundsen na chegada ao Pólo Sul, em obras baseadas em relatos dos próprios personagens e em outros. Devorei mais de 5000 páginas a respeito.
Recentemente li um livro de um porto-alegrense que refoge às características épicas desses últimos.
América Central nas asas do Quetzal, de Eduardo Soares Batista, narra as peripécias e descobertas de uma viagem de cinco meses por países da América Central (Belize, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá), quase sempre via terrestre para reforçar o contato direto com lugares e pessoas. O próprio autor sai advertindo que “o principal personagem do livro é a região, não é o viajante”.
Eduardo é um mochileiro esclarecido formado em Economia e Engenharia Química e atualmente cursa História da Unisinos. Nas suas andanças pelo mundo “já exerceu a função de engenheiro na França, foi garçom na Grécia, agricultor em Israel e professor de Inglês em Porto Alegre”.
Não se trata de um épico nem o autor saiu a subjugar píncaros ou lugares inacessíveis ou inalcançados nem quis ser um pioneiro e conquistar cidadelas inexpugnáveis. Também não o motivou o espírito “heróico” e oportunista de outros que, seguros em cápsulas e bem patrocinados, saem mundo afora estimulados pelo prazer da aventura e do desafio às vezes gratuito e sem sentido.
Antes traça um perfil sobre a incomum e peculiar civilização Maia, cujo povo se dispersou como que cumprindo um acordo tácito por motivos ainda não esclarecidos e passou, de uma forma ou de outra, a enriquecer a cultura e a formação dos países visitados.
Destes, extrai verdades históricas, geográficas, sociais e econômicas, algumas que sequer supomos pudessem existir tão relativamente perto de nós. Outras, como a pobreza, tão familiar porque comum a todos os povoeiros dessas américas que até no globo terrestre situam-se em posição inferior.
Só o contato direto e estreito, pessoal, tête-à-tête, poderia revelar alguns desses mistérios de nós desconhecidos. Pois, como adverte o autor, “as vestimentas coloridas dos indígenas podem ofuscar nossos olhos e mascarar a sua realidade que pode ser preta e cinza”.
Nessas revelações reside a força principal da obra.

17/07/2004

A IGREJA DE OURO DE TAIÓ

Em Taió tem uma igreja de ouro.

A primeira coisa que eu me lembro é que nela levei um tapa na cara de uma freira velha. Tão velha que hoje deve estar dando trompaços no Diabo, com o qual tanto nos amedrontava.

Tomei ali a primeira comunhão com um padre que depois virou bispo e curandeiro e hoje é aposentado. Mas é muito considerado, não sei se por um motivo ou por outro.

Eu passava mal nos domingos de manhã por causa do jejum de três horas. Depois reduziram para uma, mas a fome era a de uma noite inteira: quem iria se levantar uma hora mais cedo aos domingos? A missa não acabava nunca...

O padre Eduardo, que xingava mulheres e cachorros, esticava no final com mais três Ave-Marias, um Pai-Nosso e uma Salve-Rainha. Decerto pecávamos demais.

Mas as missas se tornaram mais agradáveis depois, nos sábados à noite. Eu, adolescente garboso e desajeitado – os adolescentões podem ser uma e outra coisa ao mesmo tempo –, ia ver as gurias. Uma, principalmente, que partiu e me partiu no dia 05 de junho do ano que não acabou.

Depois me recompus e, ainda estudante universitário, voltei a Taió para me casar na igreja de ouro. Sou casado até hoje. Com a mesma mulher!
Batizei lá meu primeiro afilhado, depois velei minha mãe e mais tarde batizei minha filha. Dois irmãos casaram-se nela e estão casados até hoje. Com as mesmas respectivas mulheres. Alguns de seus filhos também foram batizados naquela igreja.

Sempre, daí, o Padre Moacir, um padre com estampa de santo.
Sinto-me feliz porque tive oportunidade de lhe escrever uma carta dizendo exatamente isto. Ele não deu a mínima importância.
Mais tarde, em 1999 ele morreu, ainda moço, porque não tinha tempo de ir ao dentista. Um dia infeccionou-lhe um dente e resolveu fazer um tratamento nada ortodoxo com o próprio canivete. Septicemia. Fulminante.

No dia 25 de abril de 1984 – “diretas já!” e aniversário da Revolução Portuguesa – ali velei meu pai.

Depois, no mesmo ano, nasceu meu filho. Foi ainda o Padre Moacir que o batizou. Mas não naquela igreja.

Alguns ciclos se quebram por vontade nossa. Outros, naturalmente.


É bom, para que não se tornem viciados.



10/07/2004

A BUSCA DO TEMPO ANTERIOR - Canto III - Poesia

(Canto III: modo antico, adagio lamentoso)


Amarga é a saudade de quem espera reencontrar
quem nunca encontrou!

Sou eu a revisitar a quem nunca visitei,
a quem esqueci de esquecer e me esqueceu,
alguém que eu não perdi mas nunca achei.

Sou eu a recantar uma canção que nunca cantei,
a reescrever este verso que nunca escrevi,
a dialogar com fantasmas que exorcizei...
...a abraçar um vazio pleno de ti...

(Ah! que equação irracional
a despedida assim, sem se despedir:
partir sem sair do lugar;
ficar, e ao mesmo tempo, partir).

Saíste da minha vida sem sair
que nem sei como algum dia voltarás.

Busco em mim e só encontro a ti,
a mim procuro e não encontro nada
(não sei aonde foi que me perdi).

Talvez um dia eu encontre em ti
fragmentos da minha alma espedaçada!

02/07/2004

MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA - Filme

Hollywood é uma fábrica de filmes. De lá saem verdadeiras obras-primas e também filmecos descategorizados. A celulose que se gasta com besteiras em Los Angeles, num ano, seria suficiente para fazer cinema no Brasil durante uns dez.

Mas há bons e ótimos filmes gerados nas mentes e engenhos hollywoodianos. Afinal, sua especialidade é exatamente essa, e se não é obrigada a produzir obras-primas todos os dias também não se dá ao desleixo de lançar apenas bombas, como se dizia na minha infância.

Esta – a minha infância – me inspira a abordar um gênero prosaico e nostálgico, que apreciava então (se dissesse que não aprecio mais, estaria mentindo): o faroeste. Aliás, gosto de todo o tipo de filme, desde que seja bom, é claro. Dizer o óbvio não custa nada!

Meu Ódio Será sua Herança, de Sam Peckimpah, é imperdível para quem gosta do gênero. Diríamos, naquele tempo, que é um farvestão (embora fôssemos ao cinema mais para ver tiros, duelos e brigas do que para analisar as qualidades intrínsecas e extrínsecas da fita).


Como quase sempre, a tradução do título não foi feliz. O filme não esclarece quem herda o ódio de quem e o nome deve ter sido pensado mais como uma hipérbole mal acabada e por seu impacto sonoro do que em razão do enredo. The Wild Bunch, o original, significa algo como O Bando Selvagem, o que também não diz muito, pois imprecisamente genérico.

O filme narra a saga de um grupo de bandoleiros em fim de carreira que, no início do século XX, tenta dar um último e lucrativo golpe e se aposentar: roubar um carregamento de armas do Exército americano e contrabandeá-lo para o general mexicano Mapache. Mas tem em seu encalço implacável um ex-comparsa, anteriormente preso, do lado da lei em parte por chantagem, contratado para caçá-lo, e que vai fazer de tudo para impedir o sucesso.

O final megalômano, ao gosto americano (quatro ou cinco bandoleiros conseguem quase dizimar o exército mexicano rebelde antes de serem mortos), não compromete o resultado final.

Foi muito elogiada a estruturação inovadora, principalmente o uso de câmera lenta e do freqüente zoom circunstancial, mas este tipo de análise fica ao encargo de técnicos. Em qualquer site especializado essas inovações vêm bem explicadinhas. Para mim, o importante, são outros aspectos, que me impressionam pessoalmente e, por isto, não se deve acreditar incondicionalmente no que escrevo.

O filme evidencia preocupação com o social ao retratar um povoado mexicano de extrema pobreza, assaltado tanto por governistas quanto por rebeldes. Os homens estão na guerra e ali permanecem apenas mulheres, crianças e velhos sem ter como prover suas necessidades. É mostrada, também, a tentativa européia de estender para a região o seu imperialismo tardio, já próximo à I Guerra Mundial: o general Mapache é assessorado por integrantes do Exército Imperial Alemão na luta contra os seguidores de Pancho Villa.

Há cenas insólitas, como a da negociação do general com o bando, durante um banquete suntuoso, enquanto entre as mesas passa o cortejo fúnebre de uma mulher cujo corpo é carregado por velhas senhoras rezando em voz alta.

Uma das mais tocantes é retratada quando o bando sai do povoado, onde se refugiara após um frustrado assalto. Um dos bandoleiros é um jovem mexicano, que parte com dúplice objetivo: ajudar os demais e buscar a mulher que o abandonara para seguir o general Mapache. Depois, durante a jornada, resolve desviar parte das armas para sua vila. Estes dois fatos acabam por influir definitivamente na sorte da empreitada.

Quando os bandoleiros se retiram, a mãe do mexicano se aproxima e entrega ao filho, já montado, um embrulho, talvez com alguma provisão de última hora, daquelas que só as mães sabem que poderão fazer falta ao filho que parte, pobremente envolto em um pano branco. Antes, um americano recebera uma flor e outro um sombrero, de duas moçoilas. Enquanto isto os povoeiros, formando um corredor por onde vão passando os cavaleiros, entoam, melancolicamente, a pungente La Golondrina.

Para mim, vale o filme.

30/06/2004

O que Mozart tem a ver com Kartismo?

À primeira vista, para o mundo em geral, absolutamente nada. Na época do compositor sequer se poderia imaginar que algum dia um americano meio louco transformasse seu cortador de grama em um aparato para disputar corridas com amigos a uns 3 cm do solo.

Mas aqui, no âmbito de nossa cidadela familiar, que já passou por várias fases, inclusive a kartiana (não confundir com cartesiana), houve uma relação, ainda que meramente nominal e restrita, entre o gênio musical e o kartismo (não confundir com kantismo).

Meu filho, aos 11 anos de idade, era piloto de kart. Foi campeão da Copa Balestro e do Campeonato Citadino e vice-campeão da Copa Cidade de Porto Alegre, em 1995.



Acabou conquistando um prêmio excepcional: um Fiat Uno, doado pela revendedora Zen, de Lajeado, pela Copa Balestro.

Sua categoria era a hoje extinta Cadete, de 85 cc, condizente com sua faixa etária, e não tão potente quanto a de 125 cc, dos marmanjos (na qual ele chegou a competir, no ano seguinte, e foi novamente campeão citadino e vice-campeão do Campeonato da Serra, na subcategoria novatos).

Tínhamos dois motores, um para treinos leves e outro para corridas.

O que usávamos nos treinos, batizamos de Haydn. O das corridas era o Mozart, em homenagem ao compositor austríaco, cujas obras sempre foram por nós muito apreciadas. Era um motor afinado, suave e harmonioso, mas despejava seus rompantes estritamente necessários e eficientes quando as circunstâncias o exigiam.



Depois que um piloto da subcategoria graduados perdeu a falange distal do indicador da mão esquerda numa corrida em Farroupilha, meu filho, que já estudava piano havia uns três anos, aos poucos foi pendurando as chuteiras, digo, o capacete, as luvas e o macacão.
Com isto foi-se a esperança de que poderia vir a ser um bem sucedido piloto de Fórmula 1 e enriquecer a família inteira e mais alguns agregados.

O kart e o motor Mozart continuam na garagem. A fase kartiana passou, para alívio da Ieda, que sofria muito, principalmente após um acidente formidável (nos sentidos moderno e obsoleto), mas sem conseqüências graves. Ficou naquele limite tênue e acinzentado entre a vídeo-cassetada e a tragédia.

Meu filho ainda estuda piano, na Faculdade de Música da UFRGS. Talvez não enriqueça a família nem aparentados. Mas ninguém retira de um pai o orgulho e o prazer indescritível que é ouvir uma obra desconhecida pela primeira vez ao vivo e não através da frieza de uma gravação eletrônica. E, o que é mais importante, interpretada pelo próprio filho.

Mozart, portanto, continua em nossa cidadela, só que agora com muito maior pertinência.

25/06/2004

PIACO - Poesia de Cordel

Publicada no Caderno de Literatura n.º 9, do Projeto DivulgaArte, da AJURIS, em agosto de 2001.

A derradeira passagem do bandido Piaco no baile de pixurum de Amândio Alves de Jesus,apóstolo santo.

Com o perdão dos nordestinos, um sulino pede permissão para, no estilo da literatura de cordel, contar a história.

Ou, como uma bala de revólver saiu e entrou pelo cano.

E o metido a poeta mata a cobra e mostra o pau, ainda que meio desconfiado.


Este caso aconteceu
há muitos anos atrás
numa cidade pequena
no interior de Goiás.
Vou contar o que eu vi,
nem de menos nem de mais:
um bandido arrebatado
por homem de boa paz.

Disse que foi em Goiás
por uma questão de rima.
O Estado em que sucedeu
não foi no mapa lá em cima,
foi mais para baixo, aqui,
perto, em Santa Catarina.
(O nome é grande demais,
melhor que fora em Goiás).

Num baile de pixurum
– chamam também de arrelia –
na casa do Amândio Alves,
de Jesus, José e Maria,
surgiu Piaco bandido
– té a alma me arrepia.
O baile quase acabou,
tanto o gaiteiro tremia.

Daí por diante as mocinhas
só dançavam meio tortas
evitando olhar Piaco
– olhar de bandido corta –
e o povo todo queria
dançar mais perto da porta.
Até dona Joana Papuda
se aquietou surda-muda.

Piaco era valentão,
perigoso e destemido,
dormia longe do povo
pelos capões escondido,
não tinha medo de nada
nem vivia arrependido.
Nem muriçoca o picava
– sangue azedo o de bandido.

Matara quarenta e quatro
até uma semana antes,
depois é difícil dizer,
não fiz as contas bastante,
muita água em sete dias
rola debaixo da ponte.
Até delegado matou,
depois despiu e capou.

Era metido a valente
mas também era covarde
porque em Pouso Redondo
num domingo, pela tarde,
acabou com uma missa
aos tiros, fazendo alarde:
tirou as roupas das freiras
e a batina do padre.

Pai João Maria dissera
que no baile ia dar morte,
por isto a Velha-da-Foice
foi afiando seu corte:
ia morrer o mais fraco,
porém morreu o mais forte.
Nunca se viu na colheita
uma coisa mais bem feita

Também disseram que a morte
fora mesmo encomendada
por uma questão de terra
nem hoje bem explicada:
o João Safado queria
do Amândio uma invernada,
uma légua de sesmaria
lá perto do fim da estrada.

E nestas coisas de posses
quem muito tem mais petisca
e o João Safado, esse um,
tinha a se perder de vista,
mas queria mais um naco
para aumentar sua crista:
prá quem é dono de tudo
não custa embolsar o mundo.

Piaco trazia na cinta
um canhão de cano grosso,
um trinta-e-oito medonho
limpinho que era um colosso;
também tinha a Santa Cruz
pendurada no pescoço.
Vinha bem apetrechado
prá fazer nó em caroço.

Amândio, coitado, esse um,
quase sem nenhuma tença,
tinha um canivete na mão
e uma marca de nascença
e um trinta-e-doizinho de bosta
sem a mínima presença,
só servia, sujo e gasto,
prá matar grilo no pasto.

Se encostou pela porta
trabalhando um empalhado,
o trinta-e-dois num dos bolsos
do paletó ensebado
cuidando do movimento,
muito desassossegado.
Mais sério e desconfiado
do que cabrito embarcado

Lá pelo meio do baile
Piaco veio gritando:
"É hoje! É hoje! É hoje!"
e do canhão foi puxando.
O povo saiu num raio,
a mulherada berrando.
Só João Mudo não gritava
porque não dava, não dava!

Amândio deu só dois tiros
com o trinta-e-doizinho de bosta:
o segundo pegou na veia
Piaco tombou de costa,
nunca mais se levantou,
nunca mais fez uma aposta,
nunca mais fez mira fina,
nunca mais fez mira grossa.

É meio difícil explicar
o rumo do tiro primeiro.
Já passei por mentiroso,
afetado e balaqueiro,
mas juro que vou contar
aquilo que é verdadeiro.
Quem não credita em visão
que busque outra conclusão.

A bala do trinta-e-dois,
pequena mas de tutano,
zumbiu abelhuda e feia,
um corisco de bom plano,
e foi se ajeitar no revólver
do Piaco, bem no cano.
O trinta-e-oito medonho,
morreu ele e mais o dono.

Eu sei que é muito difícil
de cristão acreditar
nesta história que contei
sem receio de enganar.
Mas pode crer, é verdade,
e se não se conformar,
vá no Fórum de Taió
que a bala deve estar lá.

A bala do trinta-e-dois
está bem encavalada
naquela que ia ser
a solução da enrolada,
por causa daquela terra
lá perto do fim da estrada.
Dizem que o João Safado
pagou o caixão do finado.

O Amândio enfrentou júri:
sete a zero, absolvido,
com baita elogio do Juiz,
um exemplo a ser seguido.
Era tempo de eleição
no meu Estado querido;
permitam que eu quebre o verso
e o escreva mais comprido,
para caber o final
deste caso desconfiado:
num jeito muito sabido
o governador do Estado
nomeou o Amândio Alves
como nosso Delegado.

23/06/2004

O auto da NAU CATARINETA

Extraído do site RITMOS DO NORDESTE DANÇAS FOLCLÓRICAS


NAU CATARINETA

A Nau Catarineta é um episódio épico que lembra a Odisséia. É uma ode romanceada que pelo fascínio do seu enredo dramático e pelos mirabolantes efeitos pictóricos da coreografia, se transforma em um bailado. A história desenvolve-se a bordo de um navio que parte do Recife para Lisboa, na época das conquistas marítimas (1565), e que depois de cruentos combates e lutas dolorosas, chega, afinal, a um porto seguro.
Indumentária: característica de navegadores.

Coreografia: O auto da Nau Catarineta divide-se em três partes:

1.ª parte: Surge um navio sobre rodas, arrastado pelos marujos. Formam-se em filas, de braços dados, e balançam o corpo, como se estivessem a bordo. O Comandante da nau avista o emissário do navio dos mouros, que lhe traz intimação para que se renda. Recusa-se. Travam-se combate entre os dois navios. Vencem os cristãos e exigem que o filho do Sultão se converta ao Catolicismo, sob pena de morte. Ele, para não morrer, concorda em mudar de religião. Eis que chega o sultão e desespera-se ao saber que o filho se converteu. Amaldiçoa-o e suicida-se em seguida. Seu corpo é atirado ao mar.

2.ª parte: Esgotam-se os víveres da Nau Catarineta e grassa a fome entre a tripulação. O Capitão resolve tirar a sorte para decidir quem deverá ser comido, e o seu próprio nome é sorteado. Preparam-se para a execução e o Capitão manda o gajeiro, (que é o diabo, em figura de gente), ver se avista terra. O gajeiro galga o mastro, mas da primeira vez só avista sete espadas para matar o seu superior; este insiste, e finalmente o gajeiro informa:

"Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!
Também vejo três meninas
Debaixo dum laranjal."

O comandante declara que são as suas próprias filhas e as oferece a ele se se salvar. O gajeiro entretanto, exige como recompensa a Nau Catarineta. O outro responde que lhe dá todas as 3 filhas, suas terras, todo o seu ouro e prata, menos a Nau, demonstrando que é uma parte de si mesmo, como se fosse sua alma. Então, o gajeiro exige sua alma para levar para o inferno. O Comandante diz que sua alma pertence a Deus, e atira-se ao mar. Três anjos o salvam.

3.ª parte: Os marujos consertam as velas e realizam outras tarefas normais de bordo, enquanto cantam melodias ligadas às suas vidas aventureiras, de almas errantes. Sobrevem uma tempestade e a Nau quase vai a pique, mas é salva pela arrojada tripulação. Trava-se uma discussão entre o capitão e o piloto, lutam, e o último ferido, desfalece. Pedem a prisão do responsável. Mas, quando o Capelão vem para ministrar os sacramentos grita que ele ainda vive. A viagem continua e, afinal, a Nau Catarineta alcança seu destino. No desembarque, descobrem um contrabando dos guardas-marinhas que são presos e a mercadoria apreendida. Os marinheiros cantam alegres e felizes, com o fim da jornada, depois das peripécias, nas quais a vida parecia chegar ao fim.


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22/06/2004

UM ANJO

Esta poesia foi homenagem à minha querida blogueira ANJA AZUL.



Anjos, eu vi alguns,
de asas brancas ou multicores;
sempre na minha infância,
nos meus delírios,
nos meus amores.
De olhos verdes, azuis celestes,
jabuticabas, ou cor de mel
(como os olhos do amor primeiro
quando era puro e virginal).
Conheci anjos de pés descalços,
bundas de fora, rosadas, frias,
asas quebradas, sem pinto ou xota,
velando nichos de santos velhos,
de olhar caído e desanimado:
deve ser triste um anjo assim,
recém-nascido... e já castrado.
Existe um anjo que eu não conheço,
asas azuis, setas certeiras.
Todas as noites passo por ela
de olhar trocista, que não me vê:
sei lá, passei, passou, não sei...
decerto é um anjo a vingar um outro,
que algum dia, por desencontro,
em algum canto a chorar deixei.

Zagallo e o nº 13

(Crônica escrita em 25/06/2005)


Ontem vi o Zagallo dando uma entrevista após receber alta do hospital em que se submeteu a uma cirurgia de reconstituição do estômago.

Mais magro, depauperado, não deixou de avocar o n.º 13 como sendo seu número de sorte. O nome do médico que o operou, José de Ribamar, é formado por 13 letras – fez questão de ressaltar.

Estou cansado de ver o Zagallo fazer essa relação com o n.º 13 como se ele fosse dotado poderes mágicos. Não sou cabalista nem supersticioso e acho que os números não têm influência nenhuma sobre nossa vida – me perdoem os que acreditam.

O n.º 13 é comumente relacionado ao azar e há prédios nos Estados Unidos em que ele não existe: do 12 passa-se diretamente ao 14, o que é o cúmulo da imbecilidade. O andar n.º 13 existe fisicamente, só que é apelidado de 14. Ou 12-A.

Lembra a história, corrente nos meios jurídicos, do cara que atingiu a maioridade e quis trocar de nome porque não gostava dele. Nem poderia gostar: chamava-se João Bosta. Foi falar com o Promotor – naquele tempo os promotores podiam ajuizar determinados tipos de ação – e expôs a situação. Anotados os fatos para justificar o pedido, o promotor perguntou o nome que João Bosta queria adotar. Ele foi rápido: Pedro Bosta. Quer dizer, o problema não era o sobrenome era o prenome. No caso do edifício o problema não é a colocação física do andar, mas o indicativo numeral de sua (falsa) posição.

Eu não acredito que o n.º 13 dê azar embora esteja digitando, agora, só com a mão esquerda (é difícil digitar com a direita quando se faz figa com ela).

Pelo contrário, embora sem lhe dar maior importância da que dou a outros números, gosto dele: foi num dia 13 que nasceu minha filha. Tenho um irmão que nasceu também num dia 13. E a minha sogra, idem. Ops! Se vocês a conhecessem não estariam com esse sorriso de ironia na cara (pelo menos não na frente dela)... O único prêmio que ganhei numa rifa até hoje foi com o n.º 13, numa festa de igreja: uma daquelas bolas de vidro com água e uma rosa de plástico vermelha no interior. Como era muito grande para jogar boco, e além disto tinha um pedestal e não rolava direito, dei para minha mãe.

Mas com respeito ao Zagallo, se o n.º 13 lhe fosse tão dadivoso, a copa de 1974 seria nossa. Ele, o 13, não teria jogado do lado do adversário, como jogou.

O Brasil foi desclassificado pela Holanda por um gol marcado por Neeskens, o n.º 13 deles, aos 6 minutos do primeiro tempo e outro por Cruiyff, aos 20 minutos do segundo tempo. Seis mais 20 = 26. Foram dois gols. Então, 26 ÷ 2 = 13. Neskeens foi substituído por Israel aos 39 minutos do segundo tempo. Como já usamos o 2 da divisão anterior, vamos implementá-lo de um, pois foi apenas uma divisão: 39 ÷ 3 = 13. As seis letras de BRASIL e as sete de HOLANDA – uma comparação que o Zagallo gosta muito de fazer – somam 13.

Então, se você quiser, e com um pouco de esforço de pesquisa e paciência para cotejar e relacionar dados vai encontrar muita coisa a seu redor relacionada ao n.º 13. Ou ao 12. Ou ao 20. Ou a qualquer um. Basta se dispor a coletar dados e fazer continhas simples.

Essa mania do Zagallo só demonstra que muitas de nossas conquistas futebolísticas, na ótica de alguns técnicos, repousam mais no empirismo supersticioso do que em princípios táticos e estratégicos do esporte.
Em suma: a grande maioria dos técnicos é enganadora mesmo e os nossos louros se devem principalmente à excelência dos jogadores.

Não sei se você reparou, mas o título deste post tem 13 sinais gráficos...

ANISTIA - Poesia

A poesia abaixo talvez não tenha valor como arte. O tema, em si, é difícil de ser tratado em forma poética. Mas reflete um modo de encarar esse tipo de infâmia. Foi publicada no Caderno de Literatura n.º 3, do Projeto DivulgaArte, da AJURIS, de agosto de 1998.



ANISTIA

Eu entendo a dor dos torturados,
mas não a motivação intrínseca
do torturador.
A necessidade de mostrar que é macho?
a vontade de mostrar que é forte?
ou a fraqueza de sua própria dor?

Qual a dignidade dos que ferem
quem está dominado
e não tem meios reagir?
A obediência ao superior hierárquico?
A visão de um mundo (de que?) libertado?
A coação irresistível do dever a cumprir?

Que coragem é esta de matar um morto,
de castigar alguém que é menos que uma criança?
É mesmo coragem,
É mesmo dignidade,
ou o mais lídimo exemplo da desesperança?

Tu, que torturaste há 30 anos,
o que estás sentindo agora?
A morte cada vez mais perto,
a vida caminhando embora.

Tens pelo menos a capacidade do remorso?
Mas como terás a consciência calma?
A anistia que recebeste um dia
Não alforria a tua própria alma!

A FILHA PREFERIDA - Conto

(Publicado na ANTOLOGIA DE CONTOS DA ASES - Associação dos Escritores de Bragança Paulista SP) - em 1999

Nem mais no espelho se olha, o tão coitadinho, des que lá dentro viu o próprio diabo vomitando sangue e fogo de gelo misturados, arrepiante e retorcido. Medão sentiu, que cristão se encagaça quando vê a consciência.

De muita aflição o caso desse um, Zé Cristóvão vulgo, de completa assinatura José Cristóvão de Jesus. Não lhe condiz o sobrenome, é coisa séria. Se precavera, sim, mas quem é mais forte, o bem ou o mal?

Foi a filha primeira, depois sete mais se seguiram, conta verdadeira do mentiroso. O nome Rosa escolheu, existe então neste mundo mais bonito nome? Transtornou-se a sogra, nome de gente não é Rosa, que gente não é flor, nome de gente é Adelaide. Adelaide, querença mais tansa. Mais foi a valia: Adelaide Cristóvão de Jesus, assim batizada por Padre Januário.

Mas não ficou aí a embirração da sogra, pois nunca. Viu que Adelaide vingava linda de se ver, coisa rica e preferida, e para criá-la reclamou a menina. Pois onde é que se já viu? Não era aleijado, saúde tinha e vontade também e era o pai. Quem melhor poderia criá-la? Pelo mundo não ia seus filhos jogar por ser pobre. Sem esperneio nem discussão nem muita prosa que fosse a sogra arranjar filho nas capoeiras. De Adelaide, só o nome não era dele...

Entesou-se a cobra, embrabou e rogou praga: “Vai acontecer coisa triste prá essa menina, pode esperar”. Nas fuças dela riu Zé e a mandou tomar nas pregas. Medo de nada tinha. Praticante católico, São Bom Jesus o guardaria – tirava o chapéu e se benzia.

Medo de nada de boca afora só. Por dentro se encagaçava pela fama da velha. Ameaços ela fizera, era respeitada bruxa e coisa ruim fazia melhor que o demo. Então não vira na barriga de um sapo ela costurar uma fotografia do seu Júlio? E quando o sapo morreu, dias depois, e quando o retrato feneceu, não saiu seu Júlio de mão com a Velha-da-Foice? Se cuidassem com ela que rosas costuradas com linha preta, cabeças de cobra, ratos de couro e outros mistérios fazia aparecer nos travesseiros. Só para trás iria na vida com quem acontecesse isto.

Baita preocupação. Mas se tinha precatado: São Bom Jesus – benzia-se – era mais forte do que coisa feita. E também pai João Maria, santo milagreiro, fora contratado para o serviço desmanchar. Desenvolvia-se bem a rapariga, influída no trabalho, educadinha. Muito engraçadinha, também, pena que seu nome não era Rosa.

Pai João Maria tinha providências tomado. Homem bom, santo, honesto, feitiços não fazia: só trabalhos para quebrá-los. Zeca Avelino disse que também pai João Maria embruxava no duro, não era lá essas coisas. Mas Zeca Avelino, sabe como é: queimador de campo com chuva, velhaco, borrachão e ainda burro por cima. Até chegou a dizer que os americanos já foram prá lua. Coisa besta esta. Pois se o homem chegar na lua ela vai vivar uma sangueira só e findou-se o mundo. A lua vai despencar do céu, vai dar guerra e muita morte. Zeca Avelino tinha ido prá cidade e lá eles tinham pregado uma baita conversa nele. Ninguém mandou ser burro!

Precavido contra as sujeiras da sogra tratou com pai João Maria trabalho bom, coisa bastante, nem direito ele entendia. Mal a Adelaide, rapaz que fizesse, três dias depois iria perder o instrumento de orgulho, de podre caído. Já pior desgraça se viu? Doenças, mau olhado, desastres, contra tudo quanto é desgraça investira o milagreiro.

Sofria assim mesmo Zé Cristóvão, com pensão na praga. Aquilo não saía nunca da cabeça. Nunca. Contrapensava: feitiço para pai João Maria é coisa pouca e São Bom Jesus – benzia-se – era um bom ajutório.

Velha desgraçada! Bruxa ruim! Tem no inferno lugar prá ela. Sempre no inferno tem um lugar prá quem ao próximo malfaz, Padre Januário falou no sermão. Ele culpa não tinha nem antes teve qualquer desejo. Jura que foi a primeira vez e de supetão. Muito da filha gostava, prá lá de muito, mal nunca iria lhe fazer. Foi puro feitiço, pois nem a mulher e os filhos outros se guardavam em casa naquele desgracento dia – só ele, o nenê e Adelaide. Só eles. Isto então não é coisa preparada?

Adelaide achegou o nenê no caixote para dormir, o barriguinha-de-bicha. Abaixou-se ela e ele viu as coxas grossas de fora, da cor do porongo curtido, firmes como tarumã e duma lindeza cabocla. A mão passou-lhe, arrepiou-se Adelaide que nem galinha despenada... os peitos desbicados de menina-moça anjo ainda... o sexo inocente, novinho quase-sem-pêlo... tenro cabaço de 13 anos tal mais madura cortiça... cabelo perfumado de flor de marcela... No chão, ali mesmo, quarto-cozinha-sala, a filha desgraçou: “Não pai, não pai, não pai!” – mas cada vez mais gostosura, nunca sentiram, nem ele nem ela. Gozou só ele, ela não, pobrezinha. E se abraçaram depois, chorando – dois loucos desesperados – mais o nenê que chorava também – um trio de vozes danadas... Que mais fazer que chorar?

Condena braba pegou Zé Cristóvão. Contou tudinho ao juiz, honesto e direito, mas quem acredita em pobre? Sua sogra nem foi chamada à Justiça – ela sim que devia ser processada. A culpa não foi dela então ao rogar a praga?

Na cadeia cismando a tristeza. Ingrato São Bom Jesus – nem mais se benzia. Pai João Maria – se lembrava de seus feitos e para seu próprio pau de podre cair rezava, castigo mais merecido... Pai João Maria, esse um milagreiro à-toa, de bonito se desculpara: certinho fizera tudo, menos contra Zé Cristóvão, da menina o pai. Nem santo pode imaginar que o próprio pai desgrace a filha.

BEETHOVEN - Música

BEETHOVEN, UM GÊNIO BRINCANDO


Um dia o gênio cansou-se de compor coisas pesadas e foi brincar.
E compôs a 8.ª Sinfonia.
Para mostrar como é que um velho surdo sabe ensinar como se faz uma bela orquestração.
Como se combina os sons.
Como se brinca com os metais, com os sopros e com os violinos.
Os uníssonos e as progressões abusadas do primeiro movimento.
Os violinos e o pizzicatto dos violoncelos no segundo.
O pungente trio do minueto.
Um dia o gênio bravo e ranzinza deixou de trabalhar sério.
E brincou com a música.
Afinal, se Mozart, nas suas amarguras, compunha músicas alegres, porque ele não poderia fazer o mesmo?
E ensinou orquestração.
E chutou a bola para longe.
E desagradou aos críticos.
Ainda bem!
Foram cruéis com suas línguas de chicote.
Não perderam por esperar.
Daí veio a Nona e eles ficaram calados para sempre.
Ninguém nem sabe mais quem são.

NAU CATARINETA - INTRODUÇÃO (Tradicional)

Nau Catarineta - Romance

Conforme gravação de Teca Calazans, no CD Firoliu (Kuarup, 1997, KCD-088).


Bela nau Catarineta
Dela vos venho contar
Sete anos e um dia
Oh! tolinda
Por sobre as ondas do mar

Já não tinha o que beber
Nem tão pouco o que manjar
Matamos o nosso galo
Oh! tolinda
Que tinha para cantar

Vai lá pra cima, gajeiro
Meu gajeirinho real
Vê se avista bela Espanha
Oh! tolinda
Areias em Portugal
Avisto espadas de fogo
Oh! tolinda
Prontas para te cravar

Também avisto três moças
Debaixo de um parreiral
Um tecendo ouro fino
Oh! tolinda
Outra mais fino metal
A mais chiquitinha delas
Oh! tolinda
A procurar um dedal

Todas três são minhas filhas
Todas três hei de lhe dar
Uma para te vestir
Oh! tolinda
Outra para te calçar
A mais chiquitinha delas
Oh! tolinda
Para contigo casar

Eu não quero tuas filhas
Nem tu não hás de me dar
Só quero a nau Catarineta
Oh! tolinda
Para no mar navegar