22/06/2004

A FILHA PREFERIDA - Conto

(Publicado na ANTOLOGIA DE CONTOS DA ASES - Associação dos Escritores de Bragança Paulista SP) - em 1999

Nem mais no espelho se olha, o tão coitadinho, des que lá dentro viu o próprio diabo vomitando sangue e fogo de gelo misturados, arrepiante e retorcido. Medão sentiu, que cristão se encagaça quando vê a consciência.

De muita aflição o caso desse um, Zé Cristóvão vulgo, de completa assinatura José Cristóvão de Jesus. Não lhe condiz o sobrenome, é coisa séria. Se precavera, sim, mas quem é mais forte, o bem ou o mal?

Foi a filha primeira, depois sete mais se seguiram, conta verdadeira do mentiroso. O nome Rosa escolheu, existe então neste mundo mais bonito nome? Transtornou-se a sogra, nome de gente não é Rosa, que gente não é flor, nome de gente é Adelaide. Adelaide, querença mais tansa. Mais foi a valia: Adelaide Cristóvão de Jesus, assim batizada por Padre Januário.

Mas não ficou aí a embirração da sogra, pois nunca. Viu que Adelaide vingava linda de se ver, coisa rica e preferida, e para criá-la reclamou a menina. Pois onde é que se já viu? Não era aleijado, saúde tinha e vontade também e era o pai. Quem melhor poderia criá-la? Pelo mundo não ia seus filhos jogar por ser pobre. Sem esperneio nem discussão nem muita prosa que fosse a sogra arranjar filho nas capoeiras. De Adelaide, só o nome não era dele...

Entesou-se a cobra, embrabou e rogou praga: “Vai acontecer coisa triste prá essa menina, pode esperar”. Nas fuças dela riu Zé e a mandou tomar nas pregas. Medo de nada tinha. Praticante católico, São Bom Jesus o guardaria – tirava o chapéu e se benzia.

Medo de nada de boca afora só. Por dentro se encagaçava pela fama da velha. Ameaços ela fizera, era respeitada bruxa e coisa ruim fazia melhor que o demo. Então não vira na barriga de um sapo ela costurar uma fotografia do seu Júlio? E quando o sapo morreu, dias depois, e quando o retrato feneceu, não saiu seu Júlio de mão com a Velha-da-Foice? Se cuidassem com ela que rosas costuradas com linha preta, cabeças de cobra, ratos de couro e outros mistérios fazia aparecer nos travesseiros. Só para trás iria na vida com quem acontecesse isto.

Baita preocupação. Mas se tinha precatado: São Bom Jesus – benzia-se – era mais forte do que coisa feita. E também pai João Maria, santo milagreiro, fora contratado para o serviço desmanchar. Desenvolvia-se bem a rapariga, influída no trabalho, educadinha. Muito engraçadinha, também, pena que seu nome não era Rosa.

Pai João Maria tinha providências tomado. Homem bom, santo, honesto, feitiços não fazia: só trabalhos para quebrá-los. Zeca Avelino disse que também pai João Maria embruxava no duro, não era lá essas coisas. Mas Zeca Avelino, sabe como é: queimador de campo com chuva, velhaco, borrachão e ainda burro por cima. Até chegou a dizer que os americanos já foram prá lua. Coisa besta esta. Pois se o homem chegar na lua ela vai vivar uma sangueira só e findou-se o mundo. A lua vai despencar do céu, vai dar guerra e muita morte. Zeca Avelino tinha ido prá cidade e lá eles tinham pregado uma baita conversa nele. Ninguém mandou ser burro!

Precavido contra as sujeiras da sogra tratou com pai João Maria trabalho bom, coisa bastante, nem direito ele entendia. Mal a Adelaide, rapaz que fizesse, três dias depois iria perder o instrumento de orgulho, de podre caído. Já pior desgraça se viu? Doenças, mau olhado, desastres, contra tudo quanto é desgraça investira o milagreiro.

Sofria assim mesmo Zé Cristóvão, com pensão na praga. Aquilo não saía nunca da cabeça. Nunca. Contrapensava: feitiço para pai João Maria é coisa pouca e São Bom Jesus – benzia-se – era um bom ajutório.

Velha desgraçada! Bruxa ruim! Tem no inferno lugar prá ela. Sempre no inferno tem um lugar prá quem ao próximo malfaz, Padre Januário falou no sermão. Ele culpa não tinha nem antes teve qualquer desejo. Jura que foi a primeira vez e de supetão. Muito da filha gostava, prá lá de muito, mal nunca iria lhe fazer. Foi puro feitiço, pois nem a mulher e os filhos outros se guardavam em casa naquele desgracento dia – só ele, o nenê e Adelaide. Só eles. Isto então não é coisa preparada?

Adelaide achegou o nenê no caixote para dormir, o barriguinha-de-bicha. Abaixou-se ela e ele viu as coxas grossas de fora, da cor do porongo curtido, firmes como tarumã e duma lindeza cabocla. A mão passou-lhe, arrepiou-se Adelaide que nem galinha despenada... os peitos desbicados de menina-moça anjo ainda... o sexo inocente, novinho quase-sem-pêlo... tenro cabaço de 13 anos tal mais madura cortiça... cabelo perfumado de flor de marcela... No chão, ali mesmo, quarto-cozinha-sala, a filha desgraçou: “Não pai, não pai, não pai!” – mas cada vez mais gostosura, nunca sentiram, nem ele nem ela. Gozou só ele, ela não, pobrezinha. E se abraçaram depois, chorando – dois loucos desesperados – mais o nenê que chorava também – um trio de vozes danadas... Que mais fazer que chorar?

Condena braba pegou Zé Cristóvão. Contou tudinho ao juiz, honesto e direito, mas quem acredita em pobre? Sua sogra nem foi chamada à Justiça – ela sim que devia ser processada. A culpa não foi dela então ao rogar a praga?

Na cadeia cismando a tristeza. Ingrato São Bom Jesus – nem mais se benzia. Pai João Maria – se lembrava de seus feitos e para seu próprio pau de podre cair rezava, castigo mais merecido... Pai João Maria, esse um milagreiro à-toa, de bonito se desculpara: certinho fizera tudo, menos contra Zé Cristóvão, da menina o pai. Nem santo pode imaginar que o próprio pai desgrace a filha.

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