23/05/2008

E O PALHAÇO, QUEM É?


Chegamos sexta-feira em Florianópolis demorando, de Porto Alegre até aqui, mais de 45 dias. Não só de viagem, mas considerando a programação. Faz tempo que queríamos vir mas sempre alguma coisa atrapalhava. O penúltimo empecilho foi o presidente Lula que mandou a gente tirar o traseiro da cadeira e procurar juros mais baratos. Não sei o que fiz, mas tive que exibir meu traseiro, naquele dia, a um proctologista. Mas isto já é assunto ultrapassado.

O último foi a Átria Fibrilini que, para quem não sabe, é minha fibrilação atrial paroxística que considero minha indesejável mas atrevida amante. Chegou, como sempre, de madrugada, foi bem servida com um coquetel (de medicamentos), mas às 17,00 horas de quinta resolveu ir a procura de outro. Essa minha amante é muito volúvel e caprichosa.

Sexta-feira finalmente saímos, eu ainda um tanto cansado e depauperado. A Fibrilini é muito exigente. Ela sorve minhas forças e por uns três dias eu não consigo recuperar a normalidade do meu mau humor. Fico pior ainda do que normalmente. Mas tudo bem. Uma viagem seguida de novos ares tem o poder de renovar energias e vamos ficar uns dias borboleteando por aqui, visitando amigos e parentes, e isto quase sempre é bom.

Se eu fosse bem normal poderia ter saído de Porto Alegre mais feliz. Ou pelo menos, mais alegre: na saída, numa das muitas sinaleiras (ou farol, ou semáforo) eu parei na primeira fila.

As sinaleiras de Porto Alegre são quase todas minhas inimigas. Quando percebem que eu me aproximo elas acendem a luz amarela e em seguida, mais rápido do que comumente, a vermelha. São sádicas, também. Em algumas eu já chego com elas fechadas, paro o carro, e no mesmo instante elas abrem. Fazem de propósito. Se abrissem três segundos antes eu poderia passar sem ter de parar completamente. Mas não. Comigo elas se comportam como se fossem verdadeiros seres humanos.

Ser o primeiro da fila é algo absolutamente incomum na minha vida de motorista. Só mesmo nas sinaleiras. No trânsito normal sou sempre o último. Não adianta escolher, a pista em que trafego é sempre a mais lenta. Enquanto vejo alguns costurando e se adiantando, a minha costura me leva sempre ao último lugar. Olho no retrovisor e não vejo ninguém. Até as carrocinhas me ultrapassam no trânsito urbano de Porto Alegre. Não estou falando das tracionadas por cavalos, mas daquelas puxadas a muque mesmo, por nossos irmãos brasileiros que vivem de recolher os restos do lixo e deles extraem meios de sobreviver.

Bem, eu era o primeirão da fila na sinaleira quando um palhaço, esmeradamente fantasiado, postou-se à frente do carro e começou a fazer evoluções que ele naturalmente queria que eu achasse engraçadas. Mas não consegui achar graça. Permaneci quieto, semblante fechado o tempo todo, mal humorado e grosseiro. Essas coisas me entristecem. Não posso ver alegria nos gestos de quem se obriga a macaquear na frente de um carro para ganhar um troquinho. Não ri nem sorri. Nem quando ele fez aquilo que, em outras circunstâncias, eu poderia até achar engraçado: deixou cair uma bola que usava para executar seu malabarismo mal ensaiado e teve que correr para pegá-la.

O sinal abriu e eu arranquei. Percebi que a Ieda, mais simpática e condescendente, acenou para ele. Mas não foi possível dar um troquinho. O pior é que não tive ânimo nem de lhe dar um sorriso e talvez isto, naquele momento, lhe fosse até mais importante que um dinheirinho.

Acho que não existe nada mais frustrante para um palhaço do que o mau humor da platéia. Eu fui uma platéia assim, sexta-feira, quando saímos de Porto Alegre.

Por isto, se algum dos meus leitores quiser comentar este texto, por favor, fique à vontade. Aceito comentários mal humorados e grosseiros como eu fui. Não vou censurar nenhum (aliás, nunca fiz isto).

Desnecessário dizer, mas nem precisam se preocupar com um troquinho!



Publicada originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 15/05/2005.
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22/05/2008

CONHECI UM POETA

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Domingo passado eu conheci um poeta. É a primeira vez que ouso dizer isto. É a primeira vez que ouso dizer que conheço um poeta porque conheço alguns que se dizem poetas, mas não são.

Dizer que ele respira poesia é cair em indesculpável lugar comum. Mas é verdade. Então devo acrescentar que ele respira poesia juntamente com a fumaça dos cigarros que fuma quase sem intervalos.

Tem suas idiossincrasias. Não gasta um tostão para publicar seus livros.


Publicou três – Poemas sem Dono, Caminhos de Não Chegar e Juntando Pegadas –, porque com eles obteve o 1.º lugar em concursos em que o primeiro prêmio era exatamente a publicação.

Afora isto, tem muitas poesias esparsas por esse Brasil afora, em coletâneas e seleções

O primeiro livro – Poesia sem Dono – foi inscrito em concurso por iniciativa de seus filhos. Ele, por si, não se importava com isto. Tem mais de seiscentas poesias escritas e um livro só de sonetos – essa armadilha tormentosa e formalmente restritiva e que desafia a criatividade de todo o poeta – que aguarda um concurso exclusivo para que ele possa inscrevê-lo, obter o primeiro lugar e publicá-lo.

Honestamente, o poeta que conheci não tem jeito de poeta. Ele não tem nada daquela assepsia quase caricatural de um Drummond ou da feição mortiça de um Manuel Bandeira ou da ingenuidade passeriforme do nosso Mário Quintana. Enfim, o que ele efetivamente é está nos seus livros.

Detestei a poesia dele. Isto não diminui sua qualificação tampouco o valor de seus poemas. Definitivamente, não suporto alguém que tenha menos jeito de poeta do que eu – ainda que só eu o ache – seja também um poeta superior, infinitamente superior, mesmo que os meus belíssimos poemas estejam guardados a sete chaves nos refolhos de minha alma e de lá, agora, dificilmente sairão.

Por isto detestei a poesia dele. Não sinto capacidade de escrever o que ele escreve e como escreve. Ele tem o árduo poder de unir quantidade e qualidade. Eu não tenho poder nenhum e agora ele está ainda menor.

Estou falando de Alberto Lisboa Cohen, um paraense que está mudando para Porto Alegre. Querem saber mais dele? Perguntem prá Tânia, do Plátanos. Mas guardem esse nome, vocês que gostam de poesia. Ele ainda brilhará, e acho que não vai demorar, na parca constelação dos poetas brasileiros, da qual me desincluo com o rabo entre as pernas.

Abaixo duas poesias dele. Uma – Navegar é Preciso – tem algum liame, ainda que tênue, com os objetivos deste blog que existe exatamente porque navegar é preciso.

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NAVEGAR É PRECISO

(Alberto Cohen)


Quebrou aquelas correntes
como se fosse um veleiro
liberto de antigo cais,
que finalmente encontrasse
a paz do retorno ao mar,
na emoção do navegante
com o mundo a navegar.
Serpentes, monstros marinhos,
seres por desencantar,
o vento como parceiro
no encalço do luar,
sem previsão, sem destino,
amarras desatreladas,
tantas novas madrugadas,
quantos sonhos por sonhar,
na missioneira aventura
de persistir na procura,
jamais no mesmo lugar.



Alberto Cohen
Poemas sem Dono
II Prêmio Literário Livraria Asabeça - 2003
página 46.
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INVENTÁRIO

(Alberto Cohen)

No fim, restarão os poemas,
singelos, desajeitados,
corcundas, adjetivados,
meros filhos naturais.
No fim, quem sabe, um menino
recolherá os fragmentos
de ilusões e sentimentos
profundos ou casuais.
No fim, talvez, serão lidos
como anônima poesia,
sem dono, nem autoria,
pecados originais.


Alberto Cohen
Poemas sem Dono
II Prêmio Literário Livraria Asabeça - 2003,
página 41.
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