21/12/2007

NÃO VENHAS

[591] — 28-8-1927

Fernando Pessoa










NÃO VENHAS sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
Quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu rales —
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.





Fernando Pessoa
Poesias Coligidas — Inéditas (1919-1935)
in Fernando Pessoa,
Obra Poética, página 509,
Companhia José Aguilar Editora (1974).
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16/12/2007

MÃOS


Há muita gente que sente atração sexual por pés.

Eu gosto de mãos. Elas me atraem mas posso dizer com absoluta certeza de que não se trata de fetichismo, pelo menos de ordem sexual.

As mãos me comovem. Principalmente as mãos pequenas que surgem, naturalmente, de mangas largas, o que lhes acentua a delicadeza.

A revista IstoÉ n.º 1831, de 10/11/2004, traz a foto de uma menina segurando uma vela para Arafat. A menina é linda, a foto é muito bonita, mas aquelas mãozinhas pequenas estendendo-se além de pesadas mangas largas é que me causam maior emoção.

As mãos da Mona Lisa, por exemplo, que publiquei recentemente aqui. São belíssimas. Quem quiser que fique com o seu sorriso meio idiota. Eu fico com as mãos.

Uma das fotos de minha filha que mais gosto é aquela em que ela está com o marido no cume do vulcão Villarrica, no Chile. Publiquei
aqui. Ambos estão mascarados e vocês só sabem que são minha filha e genro porque estou dizendo.




Mas reparem nos detalhes das mãos: ela, aconchegada a ele, a mão pequena junto ao seu corpo, como que pedindo proteção especial. E a manopla dele amparando-a, formando um contraste tranqüilo e que transmite segurança e serenidade.

Há duas fotos dela, quando pequena, que também gosto muito. Numa ela tinha uns três meses e está no colo da Ieda. Noutra, com uns cinco anos, debruçada no espaldar de um sofá.




Aqui em casa há ainda as mãos da Ieda, que pinta com delicadeza seus quadros que já espalhei por aí, neste blog. E as mãos do meu filho que toca piano e enche de sonoridade a casa e a vizinhança.




Chego a gostar narcisisticamente das minhas, pequenas, gordas e sardentas e com polegares indesculpavelmente atrofiados. Mas são as únicas que tenho.

Perdão àqueles que sentem atração, afetiva ou sexual, por pés. As mãos são muito mais comovedoras.

Mas para que não me tachem de parcial e para satisfazer a concupiscência daqueles apaixonados por pés deixo, abaixo, um detalhe de um quadro pintado pelas mãos da Ieda. Ele pode ser visto, inteiro, no Espelho sem Aço.






Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 13/11/2004.
A primeira foto é de Richard Harbus / EFE.

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