11/08/2007

Thales e Pitágoras ou Os Bois do Tio Zeca

Certos princípios mantêm alguma semelhança, embora aplicados em campos diferentes, mas que induzem a conceitos de uso ou não-uso. Pois por aí já começa a complicação: o que é semelhante não é igual, é diferente, e por isto a afirmativa supra. Vou tentar explicar.

Quando meu filho corria de kart eu, que sou filho de mecânico e passei grande parte de minha infância sujo de graxa numa oficina, entre calhambeques, ônibus, caminhões, ferro-velho, tornos e outras ferramentas, avoquei para mim certas funções.

Além de paitrocinador, era também mecânico. Pelo menos assistente do preparador que eu pagava para tal. Um assistente graduado, pois como remunerador detinha argumento$ mai$ do que convincente$ para dar meus pitacos. Não devo ter estorvado muito, porque a equipe foi sempre bem sucedida.

Pois bem. Às vezes um simples parafusinho quebrado era motivo de sair pelos outros boxes procurando um igual.

Para coisas pequenas até no kartismo há solidariedade.

— Igual não tenho, mas tenho um parecido aqui ó! Serve?

— Não, parecido não adianta. Tem que ser igual.

Essa foi a melhor contribuição filosófica que o kart deu à minha vida: a conclusão óbvia, mas que não parece tanto, de que tudo o que é parecido é, natural e inexoravelmente, diferente...

Assim na mecânica automobilística, na Física, no Direito, na Medicina e em todos os campos da atividade humana.

Mas o melhor exemplo dessa dicotomia interessante me foi dado pelo tio Zeca, que viveu lá nos interiores do interior de Taió. Não sabia ler nem escrever e nunca freqüentou um dia de aula.

Mesmo que talvez não soubesse decifrar cientificamente a proposição, ele tinha noções empíricas, instintivas e precisas dela.

Apesar do pouco estudo, era um negociador esperto. Certa vez adquiriu dois garbosos bois de canga para atrelar no seu carro-de-boi.

Eram semelhantes. Um era parecido com o outro; mas eram diferentes.

Ele não teve dúvidas e pespegou-lhes os nomes de Diferente e Parecido.
Eu nunca descobri qual era o boi Parecido e qual era o boi Diferente. Mas ele os identificava com uma olhadela de relancina...

Só não sabia que o batismo de seus bois foi a mais prática demonstração de um teorema que nem Pitágoras nem Thales de Mileto tiveram coragem de propor.


Observação:

A imagem superior é parte de uma foto do Tio Zeca batida por mim. A de baixo é uma pintura de Ieda M. F. Dellandréa, em aquarela, abrangendo foto inteira.

Como se pode ver eles estão parecidos. Mas diferentes...

09/08/2007

Nunca te vi, sempre te amei

Não sou um profundo conhecedor de cinema. Gosto de assistir a filmes sem compromisso maior, embora preste atenção a detalhes após ter visto algum que tenha me agradado um pouco mais que o normal.

Vejo muitos. No mínimo cinco por semana. Para quem não é um profissional do ramo, como o Rubens Ewald Filho, creio ser bastante. Não me apego a estilos e apenas tomo algum cuidado, antes de assistir, de ler a resenha (principalmente as entrelinhas, onde está aquilo que quero saber).

Se não gosto, nem termino de ver. Mas já ocorreu de detestar inicialmente um filme e depois, repensando-o, vê-lo novamente e incluí-lo na lista dos meus preditos. Foi assim com o “Além da Linha Vermelha”, já comentado aqui.

Às vezes um bom filme me inspira involuntariamente um adjetivo. Não uma adjetivação fria e chavonesca, mas uma palavra que se transforma num código que me leva naturalmente a lembrar daquele filme.

“Nunca te Vi, Sempre te Amei” (no original “84 Charing Cross Road”) soprou no arquivo de meu cérebro um adjetivo simples, demonstrando que um filme é um ente de vida própria, tem caráter, personalidade e sentimentos. É um filme “amável”. Poderia ter sido “sensível”, mas há muitos filmes sensíveis e então, sei lá por que, prefiro diferenciá-lo um pouco.

É um filme amável porque não agride, não perturba nem é por demais açucarado como o nome, à primeira vista, pode transmitir (Cuidado! Há um outro filme, com esse mesmo título em português, de menor qualidade. Por isto, se for alugá-lo confira o título original, que corresponde ao endereço de uma livraria em Londres).

O enredo é simples. E amável. A escritora americana Helen Hanff, numa convincente interpretação de Anne Bancroft, é aficcionada por clássicos da literatura inglesa. Como não os encontra em Nova Iorque passa a se corresponder com Frank Doel (Anthony Hopkins, especialista em papéis desse estilo), gerente da livraria londrina na 84 Charing Cross Road. Os fatos ocorrem nos anos pós-II Guerra Mundial.

Através de cartas às vezes irônicas e mal-humoradas encomenda obras e ele, fleumático e imperturbável, procura atendê-la da melhor forma possível, mesmo que não disponha do livro em sua loja. Desenvolvendo a relação, passa a lhe sugerir títulos que ela repele ou aceita, de acordo com seu humor. As cartas eram valorizadas pela expectativa da resposta num tempo em que não havia Internet e as relações eram menos transitórias.

Com o tempo, a troca de correspondência evolui e refoge a objetivos puramente comerciais, estabelecendo-se uma relação de afeto entre os protagonistas, inclusive com os demais empregados e proprietários da livraria.

Condoída com a situação da Londres que se recuperava dos efeitos da guerra ela consegue, nas épocas festivas, enviar aos funcionários da livraria alimentos frugais, mas lá racionados, através da Dinamarca. É compensada com mimos trabalhados pessoalmente por familiares dos presenteados.

Depois de 14 anos de correspondência, finalmente, vai a Londres conhecer a livraria e especialmente o gerente Doel.

O final não revelo. Não é nenhuma surpresa, mas é sempre bom conferir pessoalmente.


O filme é baseado nas memórias da dramaturga americana Helen Hanff e dirigido por David Jones. Bancroft ganhou o BAFTA de Melhor Atriz. Foi indicado em mais duas categorias: Melhor Atriz Coadjuvante (Judi Dench) e Melhor Roteiro Adaptado. Hopkins recebeu o prêmio de Melhor Ator no Festival Internacional de Moscou.


POEMA EM LINHA RETA

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)






Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.




Álvaro de Campos
Ficções do Interlúdio
in Fernando Pessoa
Obra Poética
Companhia José Aguilar Editora (1974)