17/11/2007

Chove na Minha Capacidade Mental

A minha mentalidade é tacanha. Não consigo entender certas coisas, por mais que me esforce. Acho que é uma dificuldade natural de absorver idéias. Nem sei como fui aprovado no concurso para Juiz. Acredito, até, que se algum advogado mais atilado resolver tomar alguma providência poderá anular as sentenças que prolatei argüindo minha incapacidade mental.

Hoje, por exemplo, alguém teve a idéia de fechar o trânsito de automóveis na avenida João Pessoa para conscientizar os motoristas sobre a poluição. Mas o dia acordou com chuva torrencial, acho que foi a manhã mais chuvosa do ano. Resultado: engarrafamento, gente chegando tarde ao trabalho e muita irritação. Certamente não vai produzir o menor efeito.

Vão dizer que o fechamento estava programado e que integra uma campanha mundial. Tudo bem. Mas não haveria ninguém com autoridade para, nessas circunstâncias especiais, adiar o evento? Os motoristas, fechados em seus veículos, com pouca visibilidade, sequer poderiam adivinhar os motivos da paralisação. Debaixo da chuva não apareceu ninguém para divulgá-los...

Há alguns anos, no centro, presenciei uma cena deplorável: dezenas de deficientes mentais (outrora chamados de mongolóides) foram reunidos na praça defronte ao antigo Palácio da Justiça e conclamados a se darem as mãos e “abraçar a praça”...

Não sei de qual mente luminosa partiu a idéia, não sei dos motivos nem do resultado. Nem quem idealizou tal abraço. Os deficientes jamais teriam esse tipo de iniciativa.

Estava quente e pouco depois alguns começaram a se sentir mal, desmaiaram, vomitavam, e a brilhante manifestação foi interrompida.

Acabaram protestando contra seus mentores da melhor forma possível: sentindo-se mal e desmaiando, ainda que não tivessem consciência de que isto era um modo muito peculiar de protestar.

Essas são coisas que não consigo entender.

Na próxima manifestação de deficientes vou participar, dar as mãos a eles, abraçar a praça e vomitar nos pés dos organizadores. Acho que ali é o lugar adequado para mim. Os deficientes têm suas limitações mas sabem que certas coisas são impraticáveis: vomitar para o alto, por exemplo, é contraproducente.

Assim como fechar uma avenida movimentada em Porto Alegre, num dia de chuva torrencial, para alertar motoristas de que há poluição em São Paulo.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 22/09/2004.

11/11/2007

SAINT-EXUPÉRY, PILOTO DE GUERRA

Antoine de Saint-Exupéry foi escritor muito além do estigma de O Pequeno Príncipe, depreciado no Brasil por ser considerado o livro das misses. Garanto que é um bom livro e que vale à pena ser lido e relido.

Abaixo, trecho de Piloto de Guerra (a causa perdida da França no que ela tem de humano, de heróico e de burlesco), que escreveu durante a II Guerra Mundial, em que ele tece considerações sobre a preparação para mais uma das missões aéreas que julgava inúteis, na França dominada.

Ele era escritor e piloto consagrado e por sua idade fora aconselhado a se afastar do campo de operações, mas não lhe agradava a situação de espectador: Que sou eu se não participo?

"O Comandante Alias passa a noite em casa do General a discutir lógica pura. A lógica pura arruína a vida do espírito. Depois, uma vez na estrada, esgotou-se em intermináveis engarrafamentos. Depois encontrou, ao regressar ao Grupo, centenas de dificuldades materiais, daquelas que nos roem pouco a pouco como os inúmeros efeitos de um desmoronamento de montanha que não fôssemos capazes de conter. E, por fim, convocou-nos para nos lançar numa missão impossível. Somos objecto da incoerência geral. Não somos para ele Saint-Exupéry ou Dutertre, dotados de uma maneira particular de ver as coisas ou de não as ver, de pensar, de andar, de beber, de sorrir. Somos partes de um grande edifício cujo conjunto necessita de mais tempo, mais silêncio e mais projecção para se descobrir. Se eu padecesse de um tic, Alias só repararia no tic. E só expediria para Arras a imagem de um tic. No meio da algaraviada dos problemas postos, no meio da derrocada, dividimo-nos a nós próprios em bocados. Esta voz. Este nariz. Este tic. E os bocados não tocam no coração.

E aqui já não se trata de um Comandante Alias, mas de todos os homens. No decurso dos trabalhos de enterro, nós, que amávamos o morto, não nos sentimos em contacto com a morte. A morte é uma coisa importante. É uma nova rede de relações com as idéias, com os objectos, com os hábitos do morto. É um novo arranjo do mundo. Nada mudou na aparência, mas tudo mudou na realidade. As páginas do livro são as mesmas, mas não é o mesmo o sentido do livro. Para sentirmos a morte, precisamos de imaginar as horas em que temos necessidade do morto. É então que ele falta. Imaginar as horas em que teria tido necessidade de nós. Mas ele já não tem necessidade de nós. Imaginar a hora da visita amiga. E, descobri-la, dói. Precisamos de ver a vida com perspectiva. Mas não há perspectiva nem espaço no dia em que o enterramos. O morto está ainda em pedaços. No dia em que o enterraram, dispersamo-nos em impaciências, nas mãos de amigos verdadeiros ou falsos a apertar, em preocupações materiais. O morto só amanhã morrerá, quando houver silêncio. Só então se nos mostrará na sua plenitude, para se arrancar, na sua plenitude à nossa substância. Nessa altura, havemos de gritar que parte sem nós o podermos impedir.

Não gosto das imagens de Epinal relativas à guerra. Deparamos, aí, com um guerreiro rude, que esconde uma lágrima e dissimula a sua emoção com ditos grosseirões. Tudo isso é falso. O rude guerreiro não dissimula nada. Se deixa cair uma grosseria é porque realmente pensa numa grosseria.

A qualidade do homem não se encontra em causa. O Comandante Alias é sensível como qualquer outra pessoa. Se nós não voltarmos sofrerá talvez mais do que os outros. Com a condição de que se trate de nós e não de um somatório de pormenores diversos. Com a condição de que esta reconstituição lhe seja permitida pelo silêncio. Porque, se esta mesma noite, o meirinho que nos persegue obrigar mais uma vez o Grupo a mudar de poiso ou uma roda de um camião se avariar, na avalanche dos problemas há-de adiar para mais tarde a nossa morte. E Alias esquecer-se-á de sofrer com ela.

E é desta maneira que eu, que parto em missão, não penso na luta do Ocidente contra o nazismo. Penso pormenores imediatos, penso em como absurdo é sobrevoar Arras a setecentos metros. Na fragilidade das informações que desejam de nós. Penso ainda na lentidão com que me visto, nessa toilette que se me afigura uma toilette para o carrasco. E depois penso nas minhas luvas. Onde é que diabo vou encontrar as minhas luvas? Querem ver que perdi as luvas!

Não consigo ver a catedral onde moro.

Estou a vestir-me para o serviço de um deus morto".



Saint-Exupéry,
in Piloto de Guerra,
Editorial Aster – Lisboa, 7.ª edição, págs. 25/27.