23/08/2008

CRISE DE IDENTIDADE

Ilton Carlos Dellandréa

Estou tão perdido que nem sei se posso me considerar normal. Parte dessa confusão é provocada exatamente pelo fato de me considerar normal sem saber ao certo o que isto significa. Vejo tantos normais dizendo tantas besteiras com tanta certeza – acho que estou parodiando Fernando Pessoa – que nem mais ao certo sei o que sou. Estou sentindo saudades do tempo do primário, em que eu era gordo, ruivo e sardento e motivo de gozação dos colegas mas tinha como reagir.

Se eu fosse mulher e o Iedo me batesse poderia recorrer a uma delegacias especializadas em atender mulheres agredidas pelo marido. Agora a lei é mais severa para eles do que era, por exemplo, ao tempo em que eu era juiz, quando preponderava o entendimento de que se o processo crime era fruto de briga do casal o papel do juiz era apaziguar. Caso verificasse, no final, a reconciliação, a política criminal sugeria a absolvição para não marcar negativamente o relacionamento. Hoje não. Hoje o cônjuge deve ser punido mesmo que haja reconciliação. Os dois devem conviver com a marca que ficou. Quer dizer, ambos são, de certa forma, condenados...

Se eu fosse mulher teria, ainda, direito a cota especial nas eleições... Bastaria me inscrever em um partido e pleitear inscrição como candidata com base nos 20% criados para elas.

Estou desconversando. Sou homem e não há uma Delegacia especial que me atenda em caso de uma agressão feminina. Ainda bem que faz tempo, uns 36 anos (a conheço há 35), que a Ieda não me bate. Não me surra, eu quiser dizer. Também perdi o gosto pela política e as cotas de reserva não me atraem.

Se eu fosse negro teria, também, se tudo der certo, alguma vantagem para ingresso na faculdade. O Ministério da Educação parece que vai impor cotas para ingresso de negros e índios nas faculdades mesmo que eles não se classifiquem tão bem quanto um branco. Não existe discriminação contra branco. Então, estão querendo introduzi-la no nosso sistema social.

Mas também não sou negro e já ultrapassei a fase de ingressar em faculdade. Meus filhos também. Então, isso daí de nada me aproveita. É uma vantagem da qual não posso usufruir.

Se eu fosse gay talvez pudesse gozar algum privilégio. Retirem, por favor, a conotação sexual do verbo gozar. Não foi isto que eu quis dizer. Eu quis dizer que os gays, hoje, têm, em alguns aspectos mais privilégios do que um... normal (?). Vocês viram o Jean Wyllys no BBB5? Bastou apregoar sua condição de gay, fazer um choramingo, e venceu levando a recompensa de R$ 500.000,00. Escreveu um livro que está entre os mais vendidos e de vez em quando aparece na tevê chateando a gente com sua afetação. Jimi Hendrix foi dispensado do Exército porque
fingiu ser gay...

Mas não sou gay. Minha predileção sexual sempre foi pelo sexo oposto. Tanto que casei com uma mulher.

O pior é que sou aposentado. Poderia ser pior? Não, porque a minha aposentadoria é por invalidez. Não tenho ainda 60 anos e por isto posso estar caindo aos pedaços numa fila de Banco que alguém com 60, mesmo saudável, pode passar na minha frente.

Os deficientes físicos têm lugares especiais para estacionar em certos locais. Às vezes, quando estou fibrilado, gostaria de ter a mesma facilidade. A fibrilação tolhe seus movimentos, você dá cinco passos e tem que descansar, fica tonto com facilidade mas é considerado, para fins de estacionamento, um... normal (?).

Nunca vi fantasmas nem anjos nem um único duende. Nem discos voadores. Nunca patrocinei um sopão para os pobres. Nada do que possam eventualmente falar ou praticar contra mim pode ser considerado politicamente incorreto (talvez este texto). Às vezes, assim como sou, me sinto mais discriminado do que um negro, do que um gay, do que uma mulher, do que um deficiente físico...

É nessas horas que fico perdido diante da realidade que me cerca. Sinto tristeza e ganas de consultar um psiquiatra e exigir um atestado de que sou normal (?). Para meu convencimento.




Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 09/08/2005.

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21/08/2008

A INEXORABILIDADE DO TEMPO

Ilton Carlos Dellandréa




Há muitas situações em que você sente que alguma coisa ocorreu (ou correu?) no seu tempo, digamos, de vida. Ou seja, que você está ficando velho. Alguns exemplos – certamente há mais – muito particulares:

Quando percebe que apresentadores, artistas, repórteres, cantores, enfim, a maioria daqueles que freqüentam a telinha, são mais novos que você. Lembra que há uns 30 anos todos eram mais velhos? O mesmo ocorre em outros setores da atividade humana. Se seu chefe, por exemplo, for mais jovem é sinal que você já caminhou um bocado...

Quando você completa quarenta anos e constata que, daí por diante, cada ano vivido será em década com final enta: cinqüenta, sessenta, setenta e, com boa sorte, oitenta e noventa. Cem é miragem. Inte e inta, nunca mais!

Quando tem que convencer os mais jovens de que, quando criança, você ganhava revólveres de brinquedo com espoleta para brincar de caubói e isto era considerado normal. Mais: convencê-los de que nenhum de seus amiguinhos da época virou bandido ou assaltante. E que você, apesar disso, é juiz esperando promoção para desembargador.

Quando você percebe que já tinha nascido quando o Brasil conquistou a primeira Copa do Mundo, ficou ansioso para que quatro anos passassem rápidos para curtir a seguinte e desde então foram jogadas 17 e agora você não tem nenhuma pressa de que chegue a próxima.

Quando você tem que esclarecer aos mais jovens que o cantor sertanejo Sérgio Reis fez parte da Jovem Guarda, com Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa, Rosemary e outros de quem nunca ouviram falar nem você lembra mais, como Martinha e Os Vips.

Quando você se esmera preparando aquela viagem de férias e percebe que seus filhos não são mais crianças porque preferem ficar em casa e curtir a companhia dos amigos. Mas depois telefonam, às vezes de hora em hora, para saber como se cozinha um ovo ou como se acende o aquecedor a gás do banheiro que, aliás, é automático e não precisa ser ligado. O do ovo telefona depois reclamando que o mesmo está na água fervente há mais de meia hora e a casca ainda não amoleceu...

Quando você precisa convencer seus filhos de que na sua juventude havia domingueiras ou matinês dançantes, explicar que eram aos domingos à tarde, e eles acham um absurdo porque se dançava de dia. Pior: não consegue convencê-los porque está naquela idade em que os filhos não acreditam mais nos pais.

Quando você vê um Monza 2.0 parecido com o que teve há muito tempo e o acha feio, com linhas desgraciosas e retas, as lanterninhas traseiras quadradas e toscas, e lembra que quando adquiriu o seu ele era um carro lindíssimo e elegante, seu mais caro objeto de desejo.

Quando você participa de um encontro com antigos colegas de trabalho, como os do ex-CPD da Telesc, e observa que a maioria está grisalha e separada de seus cônjuges da época. Um deles, só porque você não embranqueceu, insiste em voz alta que você pinta os cabelos. Sem contar os que o chamam de tarado por viver ainda com a primeira mulher.

Quando você chega numa cidade pequena, como Taió, onde viveu trinta anos, percorre as ruas de carro e brinca de qual será o primeiro conhecido que vamos ver?, atravessa a cidade e não reconhece ninguém. Alguns rostos enrugados, velhos, com cabelos brancos, lhe parecem familiares mas você não lembra de quem são. Dá vontade de chorar!

Quando você repara, num aglomerado de pessoas, uma amiga que não via há mais ou menos vinte anos, vai cumprimentá-la, possivelmente abraçá-la, e descobre, surpreso e vexado, que, na verdade, se trata de uma filha dela.

Quando a casa em que mora, que você se queixava que sempre foi pequena demais, se torna imensa porque os filhos casaram, foram morar longe, deixando-a vazia, apenas com um casal de pais – sou bondoso comigo mesmo e não vou dizer de velhos – morando nela. Talvez esta seja a mais dolorosa de todas...
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18/08/2008

JORGE LUÍS BORGES

Jorge Luís Borges







New England, 1967


Mudaram as formas de meu sonho;
agora são laterais casas vermelhas
e o delicado bronze das folhas
e o casto inverno e o piedoso lenho.
Como no dia sétimo, a terra
é boa. Nos crepúsculos persiste
algo que quase não é, ousado e triste,
um antigo rumor de Bíblia e guerra.
Breve (nos dizem) chegará a neve
e América me espera em cada esquina,
mas sinto na tarde que declina
o hoje tão lento e o ontem tão breve.
Buenos Aires, eu sigo caminhando
por tuas esquinas, sem por que nem quando.


Cambridge, 1967


Jorge Luís Borges,
elogio das sombras/perfis
Editora Globo - Porto Alegre
página 11.
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