28/06/2008

SOBRE GENTE E BICHOS

A tristeza e a depressão devem ser coisas que se acentuam, e muito, com a idade. Não sei se a experiência tem alguma coisa a ver com isto ou se é a sensação inafastável de, para quem já viveu, como eu, 53 anos, não há possibilidade de viver outro tanto. Coisas que antes não produziriam qualquer efeito no ânimo, agora parecem ter o poder de entristecer e desanimar. A suscetibilidade é alterada.

O jornal Zero Hora de 05/05/2005 traz exata meia página sobre o indiciamento dos jovens que teriam matado a cadela Preta, em Pelotas. No dia 06, mais 2/5 de página sobre o mesmo assunto (pág. 51) e exata meia página sobre outra cadela furtada na Serra Gaúcha. Já sobre o caso da moça de Bragança Paulista que teve a mão direita amputada e perdeu a visão de um olho com a explosão de uma carta-bomba enviada pelo namorado, apenas uma pequena coluna, menos de 1/10 de página, no dia 05.

Escrevi sobre cadela Preta e creio até que fui um dos primeiros a fazê-lo. Mas o meu blog não é muito lido e a repercussão maior veio após, através de outros mais famosos e pela imprensa. Nem creio que inspirados no meu texto. Depois tentei prever as penas aplicáveis aos réus em caso de condenação. Não defendi nem acusei e tampouco desejei pena superior à prevista em lei.

Não há duvida que o crime é odioso, mas há outros mais graves sendo praticados todos os dias e todas as noites por esse Brasil afora e ninguém quer se dar conta disto. Enquanto isto não acontecer com alguém da minha família, que se danem os outros.

Essa inversão de valores anuncia a capacidade de se emocionar mais com os animais do que com gente. A comoção é mais acentuada quando o crime é praticado contra um bicho do que, como no caso de Bragança, contra uma moça.

Não se fale que uns são indefesos e outros não. Qual a defesa da moça de Bragança diante de uma carta recebida pelo correio? Nenhuma. Então, o crime de Bragança é infinitamente mais grave que o crime de Pelotas.

Afinal, este vitimou um cachorro, um animal irracional que vivia na rua e depois foi adotado por Pelotas e por todo o Brasil. Muito mais crimes se cometem contra meninos e meninas de rua, a maioria não é descoberta, nem todos repercutem. Quando a vítima é criança sempre há conseqüências que se projetam pela vida afora, às vezes criando mais revolta, mais dor, mais mágoa e mais crimes.

Há até uma emotiva petição que circula na Internet, que não assinei, e que deverá ser enviada ao juiz, de escasso valor jurídico; mas não vi nenhum movimento em prol da moça de Bragança.

Li comentários em outros blogues de que os matadores da cadela mereceriam nada mais nada menos que a pena de morte. Isto é desanimador. Como vou confiar no sentimento de quem, para um animal, defende carinho, proteção e amparo, e para um ser humano ainda que criminoso, a pena de morte? Há alguma contradição mal explicada nesse modo de ver as coisas.

O ser humano não é o que parece. A Lizandra (que então matinha o blog Alma Castelhana) já levantou a questão, citando Hobbes: homo homini lupus (o homem é o lobo do homem).

Aquele que acaricia um animal pode ser o mesmo que esbofeteia um filho, que massacra os pais ou maltrata o cônjuge. E se fôssemos aplicar a pena de morte a quem amarra uma cadela num pára-choque e a arrasta até a morte, qual pena aplicaríamos a quem fizesse o mesmo com um ser humano?

Não estou pregando o desprezo aos animais. Quem tem afeto por seus bichinhos de estimação deve continuar a tê-lo e eu nem seria a pessoa adequada a emitir conceito contrário. Mas, por favor, não esqueçam dos semelhantes, mesmo que eles não mereçam.

Está em cartaz, em todo o Brasil, o filme A Queda, sobre os últimos dias de Hitler. Pelo que li, o diretor procurou ser o mais fiel possível à sua biografia e isto foi elogiado na última Veja pelo imortal Moacir Scliar, que tem ascendência judaica.

Os biógrafos de Hitler dizem que ele gostava de crianças e tinha afeto especial por uma cadela. Mas fez o que fez.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 11/05/2005.
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