15/09/2007

Oração ao Profeta Maomé

Misericordioso Profeta:

Desculpai o mau jeito. Não sei se é realmente esse o tratamento que devo usar ao me dirigir a Vós. Não conheço a liturgia e que forma adotar ao fazer-Vos este pedido. Já vi Vossos fiéis orando voltados para Meca, mas temo pela minha integridade física se me colocar naquela posição. 

Fui batizado na Igreja Católica e lá chamamos nosso deus de Deus e é fácil rezar para Ele. Aliás, nossas orações fazem parte de uma relação comercial na base de um escambo estabelecido tacitamente: a gente pede uma coisa e reza para conseguir. Ou faz promessas, como subir escadarias de joelhos, essas coisas assim.

Agora mesmo o representante dele na Terra, o papa Bento XVI, comercializa indulgências plenárias, isto é, a remissão total das penas temporais cabíveis para pecados cometidos, conforme informa a CNBB aqui. No dia 08 de dezembro (por acaso o Dia da Justiça) já fez isto, segundo o site da Opus Dei: Bento XVI concedeu aos fiéis a possibilidade de lucrar a indulgência plenária na próxima solenidade da Imaculada Conceição, no dia 8 de dezembro.

Então, o contato com nosso Deus se baseia muito nessa relação negocial de lucros e perdas. É claro que temos que fazer alguma coisa para alcançar esse lucro — que nunca é garantido, é assim como aplicar na Bolsa — e isto varia de acordo com a ocasião e com a viabilidade do pedido.

Conheço uma moça que passou os seis meses anteriores ao vestibular rezando fervorosamente para passar. Não estudou muito e foi reprovada. O nosso Deus — creio — não é muito fácil de enrolar.

Sei que Vossos seguidores têm direito à súplica. Concedei-me, ó Misericordioso, uma só vez o mesmo direito, pois o que vou pedir não é em meu proveito. Mas começo agradecendo-Vos pela luz, pelo sol, pelas estrelas, pelos oásis que abrigam as caravanas de seus seguidores, pelos camelos que tão sapientíssimamente fizestes nascer numa parte do mundo em que eles são mais úteis que os veículos motorizados ocidentais.

Agradeço-Vos por conceder a vida a homens e mulheres que vivem sob o sagrado manto de Vossa fé, que acreditam que Alá é seu único e indivisível Deus e Maomé seu último e maior profeta. Considero-os irmãos. Deixo bem claro que não pretendo convertê-los ao Catolicismo. Mas também, nesta fase da vida, não gostaria que eles tentassem me impor o Islamismo porque não acredito — sou um homem de pouca fé — que alguma religião ou crença possa endireitar tortuosidades da minha vida. Desculpai-me, eminentíssimo Mestre, se já estou pedindo alguma coisa. É o hábito.

Meu objetivo, clemente Profeta, é pedir que perdoeis os ocidentais por aquelas charges da Dinamarca, se é que elas efetivamente Vos magoaram e irritaram tão profundamente a ponto de incitar Vossos seguidores a praticar atos de violência que, até para um mau cristão como eu, são incompreensivelmente desumanos e anti-qualquer-crença.

Perdoai se blasfemo por me dirigir diretamente a Vós. Sei que as orações no Islã se dirigem a Alá, sem intermediários. Ainda assim, como é costume na minha religião e porque fostes Vós, e não Alá, o chargeado, rogo que intercedeis a Ele para que, simplesmente, transforme a ira de Vossos fiéis em Tolerância.

Esta a súplica. Afinal, a 4.ª Surata do Alcorão, em seu versículo 114, é tão expressiva:

Não há utilidade alguma na maioria dos seus colóquios, salvo nos que recomendam a caridade, a benevolência e a concórdia entre os homens. A quem assim proceder, com a intenção de comprazer a Deus, agracia-lo-emos com uma magnífica recompensa.

Amém! (Desculpai pelo amém, mas é costume nosso).



Publicada no blog Jus Sperniandi,
em 13/02/2006,
quando surgiu a celeuma das charges de Maomé
publicadas por um chargista sueco.
É republicada porque a polêmica, lamentavelmente, volta à cena,
agora com mais virulência (veja aqui).

12/09/2007

A Busca do Tempo Anterior

(Canto II: Agitato, speranzoso)







Atropelam minha cabeça pesadelos revoltos
como pássaros confusos.
Desaninhados.

Nada sei de ti, que amei sempre
num silêncio agitado e inquieto,
num refolho cardíaco
que nem a fibrilação espanta...

Nada faço senão esperar,
cultivando a saudade de alguém que foi embora
mas de mim jamais saiu.

Mas vou te encontrar um dia
– eu prometo! –
e abraçar-te, quieto,
suavemente aconchegar-te,
aconchegar-me:
seremos duas almas serenas,
silenciosas,
relembrando vidas passadas.

Será que algum dia existimos?
Ou fomos sombras sem figura que passamos?

Espantalho dos pássaros furiosos,
voltarei a vigiar, depois,
reconfortado,
a saudade de um abraço eterno
que eu guardei para ti
por trinta séculos.





Poesia publicada no Caderno de Literatura do Projeto DivulgaArte,
da AJURIS, em junho de 1999,
e no blog
Jus Sperniandi em 15/07/2004

09/09/2007

Tatuagem de Presente

Como a SKY cortou, arbitrariamente, meu sinal de tevê a cabo e privou-me do Film&Arts e alguns outros assistíveis (ajuizei ação cominatória, quarta-feira, com pedido liminar, mas até ontem não sabia do despacho inicial), deixo a televisão ligada em qualquer canal apenas para ter algum barulho que impeça o silêncio de atrapalhar minha concentração.

Hoje, chamou-me a atenção, num programa de futilidades — não sei qual porque poucos há que escapam dessa qualificação — em que uma celebridade completamente desconhecida confessou que deu para a namorada um presente desses únicos que se pode dizer que perdurará até que a morte os separe: ele tatuou no próprio braço o nome dela. Para rimar, o nome termina com ela (é Manuela, Gabriela, algo assim). O nome é dela. O braço é dele. O presente é para ela. E a rima?

O namoro dura sete meses e ele a achou merecedora do mimo. O amor eterno das celebridades geralmente acaba em menos de dois anos, acho que por isto a pressa. Ela ainda não fez o mesmo, mas, segundo ele, está se preparando para fazê-lo.

Senti um grande remorso. Namoro com a Ieda desde 1969, casamos em 1971, e até hoje não tatuei o nome dela em nenhuma parte do meu corpo. E não é por falta de espaço.

Ela também não tatuou o meu e sou-lhe grato por esse presente que ela não me deu. Ela acha o mesmo. Agradeceu-me porque prefere meu couro íntegro, apesar da cicatriz de uma cirurgia de apendicite a que fui submetido em 1977 — no dia do meu aniversário — que não dedico a ninguém.

Uma tatuagem é uma marca indelével, difícil de retirar. O Ronalducho tatuou as iniciais de uma de suas namoradas e depois teve que mudá-la porque, parece, ela engordou muito e ficou ilegível. Acho que foi isto.

Aqui no Rio Grande do Sul, como ocorria no Velho Oeste americano, os pecuaristas tatuavam o gado com sua marca própria para não confundi-lo com o dos vizinhos e para identificá-lo mais facilmente em caso de abigeato. Essa palavra, abigeato, não se usa mais. Mas o que ela expressa — furto de gado — existe. Podem conferir no Aurélio e no Código Penal.

Nada tenho contra quem se tatua. Tenho um sobrinho que tatuou um dragão no braço. Acho que não foi presente para a namorada, porque faz tempo que vivem juntos e têm um filho de cinco anos. Se fosse, certamente ela, que é bonita, teria tatuado a foto dele, em represália.

Cada um faz o que quer com seu couro. Mas pretextar que uma tatuagem seja um presente a outrem e uma prova de amor é como comprar uma lingerie da última moda e usá-la dizendo que é um presente à amada. Com a vantagem de que a lingerie sai facilmente.

E, se por exemplo, a moça aí de cima resolver terminar o namoro? Poderá sofrer uma ação de reparação de danos e pagar uma nota ao ex porque foi culpada pela inscrição, em sentido lato? A interpretação sobre o alcance do dano moral é mais extensa do que sonham nossas cabecinhas de não juízes e de magistrados aposentados.

Depois de pensar só um pouquinho deixei de sentir remorso e estou satisfeito por nunca ter gravado o nome da Ieda em meu corpo. Quando começamos a namorar essa moda não existia. Mas se existisse, e eu o tivesse gravado no meu braço, ele estaria completamente ilegível. E mais gordo!

A transição juventude-velhice, ou meia idade, calcada pela lei da gravidade, faz coisas que os jovens de hoje não prevêem. Uma estrela numa barriguinha de tanquinho, próxima a um umbiguinho sensual, pode se transformar num buraco negro em ruínas, porque o tempo é cruel.

O nome da Ieda tatuou-se em um lugar do meu organismo e lá se encontra bem fixado. Mas podem me virar do avesso que não vão encontrá-lo. Nem percebi direito, porque, além de indolor, foi um processo gradativo e suave. Há outros nomes também, mas o dela sobressai.