29/09/2007

Mozart e Kartismo

O QUE MOZART TEM A VER COM KARTISMO?

À primeira vista, para o mundo em geral, absolutamente nada. Na época do compositor sequer se poderia imaginar que algum dia um americano meio louco transformasse seu cortador de grama em um aparato para disputar corridas com amigos a uns 3 cm do solo.

Mas aqui, no âmbito de nossa cidadela familiar, que já passou por várias fases, inclusive a kartiana (não confundir com cartesiana), houve uma relação, ainda que meramente nominal e restrita, entre o gênio musical e o kartismo (não confundir com kantismo).

Meu filho, aos 11 anos de idade, era piloto de kart. Foi campeão da Copa Balestro e do Campeonato Citadino e vice-campeão da Copa Cidade de Porto Alegre, em 1995.

Acabou conquistando um prêmio excepcional: um Fiat Uno, doado pela revendedora Zen, de Lajeado, pela Copa Balestro.

Sua categoria era a hoje extinta Cadete, de 85 cc, condizente com sua faixa etária, e não tão potente quanto a de 125 cc, dos marmanjos (na qual ele chegou a competir, no ano seguinte, e foi novamente campeão citadino e vice-campeão do Campeonato da Serra, na subcategoria Júnior Menor).

Tínhamos dois motores, um para treinos leves e outro para corridas.

O que usávamos nos treinos, batizamos de Haydn. O das corridas era o Mozart, em homenagem ao compositor austríaco, cujas obras sempre foram por nós muito apreciadas. Era um motor afinado, suave e harmonioso, mas despejava seus rompantes estritamente necessários e eficientes quando as circunstâncias o exigiam.

Depois que um piloto da subcategoria graduados perdeu a falange distal do indicador da mão esquerda numa corrida em Farroupilha, meu filho, que já estudava piano havia uns três anos, aos poucos foi pendurando as chuteiras, digo, o capacete, as luvas e o macacão.

Com isto foi-se a esperança de que poderia vir a ser um bem sucedido piloto de Fórmula 1 e enriquecer a família inteira e mais alguns agregados.

O kart e o motor Mozart continuam na garagem. A fase kartiana passou, para alívio da Ieda, que sofria muito, principalmente após um acidente formidável (nos sentidos moderno e obsoleto), mas sem conseqüências graves. Ficou naquele limite tênue e acinzentado entre a vídeo-cassetada e a tragédia.

Meu filho ainda estuda piano, na Faculdade de Música da UFRGS. Talvez não enriqueça a família nem aparentados. Mas ninguém retira de um pai o orgulho e o prazer indescritível que é ouvir uma obra desconhecida pela primeira vez ao vivo e não através da frieza de uma gravação eletrônica. E, o que é mais importante, interpretada pelo próprio filho.

Mozart, portanto, continua em nossa cidadela, só que agora com muito maior pertinência.

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Observação: meu filho, atualmente, está seguindo sua carreira musical, cursando mestrado na Faculdade de Karlsruhe, Alemanha.



Crônica publicada originalmente no blog
Jus Sperniandi,
em 29/06/2004, aqui.

26/09/2007

ESTA VIDA

Guilherme de Almeida





Um sábio me dizia: "Esta existência
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero, inventaria a morte!
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo: e vibra, e cresce,
e se desdobra, e estala num segundo...
Homem, eis o que somos neste mundo!"

Falou-me assim o sábio e eu comecei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: "Ó mocidade,és relâmpago, ao pé da Eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa...

Esta vida não vale grande cousa:
— uma mulher que chora, um berço a um canto,
o riso às vezes, quase sempre o pranto...
Depois, o mundo, a luta que intimida...

Quatro círios acesos — eis a vida!"
Isto me disse o monge e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um pobre me dizia: "Para o pobre,
a vida é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus? ... Eu não creio nessa fantasia!
Deus me dá fome e sede cada dia,
mas nunca me deu pão nem me deu água...
Nunca! Deu-me a vergonha, a eterna mágoa
de andar, de porta em porta, esfarrapado...
Deu-me esta vida: um pão envenenado!"


Disse-me isto o mendigo e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: "Vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo!
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira...
Um telhado... Um penacho de fumaça...
Cortinas muito brancas na vidraça...

Um canário que canta na gaiola...
— Que linda a vida lá por dentro rola!"


Pela primeira vez, eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver!





Guilherme de Almeida,
in Messidor,
Círculo do Livro S/A,
páginas 98/99.