22/11/2008

IMPUNIDADE TAMBÉM É CULTURA

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De vez em quando deparo com notícias que, de certa forma, explicam alguns detalhes do porquê da impunidade no Brasil. Embora eu ache que estamos nos tornando cada vez mais rancorosos (tenho um texto atrasado sobre isto) muitas vezes nos invade aquele sentimento nobre de comiseração pelo próximo que nos leva a aceitar afrontas que normalmente repeliríamos.

A pena de morte não combina com nossa índole. Pode ser que ela fosse até aprovada numa consulta popular. Mas quando o primeiro condenado estivesse à beira da execução haveria uma comoção nacional. Manifestações e protestos explodiriam Brasil afora tentando livrar da pena capital o infeliz e suas circunstâncias. A não ser, é claro, que a vítima fosse filho de alguma celebridade ou um própria celebridade, artística ou jornalística.

Os Maluf foram soltos. O voto que lhes concedeu habeas corpus é fundamentalmente humanitário. O Direito foi espancado de relho. Mas muita gente que viu o Maluf saindo da cadeia, barba mal feita, olhar perdido, deslocado de seu habitat, condoeu-se.

Eu visitei, uma vez, porque era minha obrigação de juiz, o presídio de Iraí. De surpresa. Havia no máximo cinco ou seis presidiários. Um deles se aligeirou e preparou um café num bule enegrecido pela fuligem, usando um fogareiro para esquentar a água, e me serviu na melhor xícara: amarelada, encardida e trincada.

Detesto café. Os que me conhecem sabem disso. Repugna-me o cheiro, o sabor e as conseqüências gástricas. Mas naquele dia esperei esfriar um pouco e tomei. Até sorri, agradecendo. Só não aceitei repetir.

Saí de lá sentindo um aperto no peito e por uns dois ou três meses não julguei processos crimes, só cíveis.

É degradante ver homens enjaulados! Nosso sistema carcerário é cruel e não oferece perspectivas. E lá eles eram bem tratados, viviam em condições excepcionais considerando o que se vê pela televisão na cobertura de motins e rebeliões.

Não sei porque comecei esse texto assim. Ele se desviou de sua finalidade antes mesmo de se dirigir a ela. Eu queria era referir o manifesto assinado por artistas e intelectuais pedindo que o deputado José Dirceu não seja cassado porque não há provas materiais contra ele.

Meu Deus! Um juiz fica, às vezes, horas ou dias debruçado sobre um processo, examinando indícios para construir um castelo de provas e 90 intelectuais, a maioria dos quais certamente nem leu os autos, decidem liminarmente que um réu deve ser absolvido porque não há provas contra ele.

Não sei se me faço entender. Os juízes são, a seu modo, intelectuais do Direito. São humanistas por formação. Aprendem desde cedo que é preferível mil criminosos soltos do que um inocente preso. Usam, na análise da prova, embora certamente com mais técnica e conhecimento de causa e, principalmente, estudando o processo, a mesma mecânica mental que levou esses intelectuais e pseudos a decidirem que José Dirceu é inocente.

Por isto não creio na pena de morte no Brasil. E as reclamações sobre a impunidade, também por isto, soam pífias e cabotinas como a do carrasco que não vai ter nada para fazer.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 28/10/2005.
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20/11/2008

NAU CATARINETA

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O querido amigo e poeta Alberto Cohen me enviou, esses dias, o soneto Nau Catarineta.

Perguntei-lhe se podia publicá-lo aqui e ele respondeu que o poema “foi feito para o seu blog (daí o título). Se achar que tem méritos, pode publicá-lo e lhe fico grato”.

Grato fico eu, Alberto.
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Alberto Cohen
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NAU CATARINETA
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O porto cada vez mais longe,

as velas do barco, estraçalhadas,

um grumete chorando no convés

desencantos de sereias inventadas.

Desde a partida, noite, sempre noite,

uma a uma as estrelas se apagaram

e o dragão devorou São Jorge e a lua.

Onde o cais, onde o vento caminheiro?

Em que ondas do mar sem fim nem fundo

afogou-se a esperança que tentava

salvar da morte ao menos um sorriso?

Não há nada a fazer, o horizonte

de uma Terra quadrada se aproxima.

Despenhar talvez seja a chegada.
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