19/01/2008

AS APARÊNCIAS ENGANAM

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O sistema registral brasileiro privilegia o ramo familiar do homem e prejudica o da mulher, que aos poucos vai perdendo seu senso de origem. Mantém-se o patronímico do marido, que passa a ser o familiar, e as raízes maternas vão se perdendo no tempo.

Se fosse o contrário, como nos países de língua espanhola, aconteceria o inverso. As raízes masculinas é que se perderiam.

Não se trata de definir quem tem mais ou menos importância nem existe uma solução para o problema. Se fossem mantidos todos os sobrenomes, masculinos e femininos, um livro acabaria sendo pequeno apenas para a grafia de um nome mais os patronímicos originais.

Há algumas desvantagens. Os homens conservarão o nome do pai e o transmitirão aos filhos e filhas. Os filhos carregarão sempre o mesmo sobrenome e estigmas que ele atrair. Assim, se algum deles fizer alguma besteira maior seus descendentes serão marcados para sempre:

– Olha lá! Aquele é um daqueles Dellandréa que votou no Lula em 2002, lembra?

Com as mulheres isto não necessariamente acontece, pois podem adotar os apelidos do marido ou permanecer com os seus, originais, mesmo casando.

Mas o sistema pode gerar distorções graves. Examine, por favor, seus quatro costados, isto é, a origem de seus avós paternos e maternos. Por detrás de um blasfemo e sangüíneo italiano pode se esconder um teimoso e beligerante alemão. E ainda, infiltrado, algum malemolente sangue índio, negro ou português. Ou de outra fonte.

Sou obrigado a falar de mim porque sou o meu melhor – e pior – exemplo e principal referencial. Apesar de me conhecer muito pouco, ainda sou a pessoa do mundo a quem mais conheço. Sou a única com quem convivo desde que nasci.

Meus avós maternos são de origem alemã: Althoff e Schweitzer, de Alfredo Wagner (no tempo deles se chamava Barracão). Os paternos são Cordeiro e Dellandréa. Se houvesse uma distribuição eqüitativa da vertente sangüínea nas minhas veias e artérias eu seria 50% alemão, 25% brasileiro (pêlo duro, como se diz aqui) e apenas 25% italiano (trentino, para ser mais exato), que é o sobrenome que carrego.

Eu, para resguardar minhas origens conhecidas, deveria me chamar Ilton Althoff Schweitzer Cordeiro Dellandréa. A Ieda, Ieda Dörner Feuser Rodriguez Fernandes. E nossos filhos? Como a Ieda não tem nada de italiano, é 50% alemã e 50% brasileira, ou espanhola, ou portuguesa (esqueci de fazer um levantamento mais acurado quando comecei a namorá-la), há neles uma redução drástica do nível sangüíneo italiano.

Eles têm 50% de sangue alemão, 37,5% de sangue brasileiro e apenas 12,5% de sangue italiano... E o sobrenome.

E os nomes deles? A Clarissa se chamaria Clarissa Dörner Feuser Rodriguez Fernandes Althoff Schweitzer Cordeiro Dellandréa. O Francisco, que já tem um nome quilométrico (Francisco Fernando Fernandes Dellandréa), se chamaria Francisco Dörner Feuser Rodriguez Fernandes Althoff Schweitzer Cordeiro Dellandréa. Eu caparia o Fernando para encurtar um pouco. Isto é, retiraria o segundo nome (Fernando) do nome dele. Isto para ficar só com os nossos (dos pais deles) quatro costados.

Talvez seja por isto que eu, às vezes, nos diálogos comigo mesmo, não me entendo direito. Nem é bom que meus filhos saibam disso tudo. É tanto atravessamento que há o risco de eles se entenderem menos ainda.

Mas a situação de maior perplexidade é a da Ieda, que não tem culpa de nada, e pelo sobrenome que adotou quando casou comigo é, para todos os efeitos... italiana. Ou trentina, para ser mais exato.

E nossos antepassados remotos podem ter até guerreado em lados opostos quando da unificação da Itália.




Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 24/11/2004.
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17/01/2008

TERRA SANTA?

A morte do líder palestino Iasser Arafat me instiga a pensar naquele cantão do Oriente Médio chamado Terra Santa. Judeus e árabes, dentre estes mais especialmente os palestinos, o consideram uma terra sagrada.

Mas não adianta a terra ser sagrada se os homens que a habitam não se toleram, não se aceitam, pregam a destruição uns dos outros, vivem em guerra constante e não declarada, em que pedras servem de armas contra tanques, crianças morrem sem a possibilidade de vir a ser e o terrorismo provém de ambos os lados, oficial ou não.

Terra santa?

A unção com que foi consagrada já deve ter sido lavada pelo sangue de inocentes, de ambos os lados, que jorrou e continua jorrando dos mártires anônimos inocentes que morrem sob métodos aprimorados de matar e que demonstram que barbárie e tecnologia são dois termos perfeitamente atuais e adaptáveis um ao outro.

Os rastros dos santos e profetas que passaram por lá foram também lavados e apagados pela fumaça das bombas, pela poeira da destruição, pelos entulhos dos prédios e santuários demolidos, pelas esteiras dos tanques, pelos estilhaços das granadas e dos mísseis.

O pensamento e a filosofia dos sábios e dos profetas estão apenas nos livros e os livros estão fechados. Na alma dos homens não calam conceitos de paz e tolerância porque as porteiras da mente também estão fechadas.

Uma terra, para ser sagrada, necessita do cultivo contínuo da santidade dos antepassados através da compreensão dos que dela fazem morada hoje.

As sandálias que a pisam devem ser limpas e puras.

A humildade e a tolerância devem iluminar a mente dos que administram o destino das gentes que a habitam e seus pensamentos devem ser dirigidos pela santidade e para a paz.

A terra não é mais santa quando os profetas são profanos e profanadores.




Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi em 11/11/2004,
logo após a morte do líder palestino Iasser Arafat.
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