29/09/2008

Ó SINO DA MINHA ALDEIA

[88] - [1913]

Fernando Pessoa


Ó SINO da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.





Fernando Pessoa
Cancioneiro
in Fernando Pessoa,
Obra Poética,
página 149,
Companhia José Aguilar Editora (1974).
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27/09/2008

VERDES VERDURAS

Cruz e Souza



Neste fim-de-semana frio e úmido, comigo em minhas recônditas quietudes, adentrei nos domínios da poesia e encontrei uma excelente página de Literatura do professor Sérgius Gonzaga. Interessei-me pelo Simbolismo, sabedor, pois sou de Santa Catarina, de que um de seus mais conceituados representantes no Brasil é Cruz e Souza (na ilustração), um catarinense.

Segundo o professor Sérgius, os primeiros indícios do movimento encontram-se em Baudelaire, cuja obra máxima, As Flores do Mal, antecipa certas perspectivas simbolistas.

Mais: O Simbolismo surgiu não apenas como uma estética oposta à literatura (poesia, especificamente) objetiva, plástica e descritiva, mas como uma recusa a todos os valores ideológicos e existenciais da burguesia. Em vez da "belle époque" do capitalismo financeiro e industrial, do imperialismo que se adonava de boa parte do mundo, temos o marginalismo de Verlaine, o amoralismo de Rimbaud e a destruição da linguagem por Mallarmé.

O Simbolismo surgiu como Escola literária na França, no final do século XIX, como reação aos excessos do parnasianismo. Sua característica principal é uma visão subjetiva, simbólica e espiritual da realidade. Usa formas de expressão novas e a preocupação estética domina sua linguagem.

O professor Sérgius: O Simbolismo no Brasil é um movimento que ocorre à margem do sistema cultural dominante. Seu próprio desdobramento aponta para províncias de escassa ressonância: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. É como se o gosto dos poetas da escola por neve e névoas, outonos e longos crepúsculos exigisse regiões frias e nebulosas.

A livre associação faz coisas impensáveis! O fim de semana esteve frio e úmido e os simbolistas apreciavam neve e névoas, e regiões frias e nebulosas.

Já disse várias vezes aqui que aprecio o frio e a chuva, a névoa e a neve, desde que, obviamente, esteja bem agasalhado e protegido em casa, preferencialmente com uma lareira acesa e ouvindo, como ouviu Cruz e Souza,

“Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpia dos violões, vozes veladas
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas”.

Na minha divagação poética, deparando com essas condições geográficas tão importantes ao desenvolvimento do movimento, me descobri um simbolista retardado, digo, retardatário. A Musa baixou em mim, senti um estremecimento misterioso, e fiel aos princípios escolásticos pari os versos que seguem, prenhes de simbolismo e ao mesmo tempo um retrato de coisas recém ocorridas e inutilmente escondidas em até agora infrapartidárias cuecas:

VERDES VERDURAS

"Verdinhas veladas em vetustas vestes,
Volúpia dos vilões, verde ventura,
Viajam nos velhos vértices velados,
Vindas da venda de vívidas verduras".

Cruz e Souza, e os outros simbolistas, que me perdoem.





Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 19/07/2005.
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23/09/2008

AS COISAS

Jorge Luís Borges


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A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.



Jorge Luís Borges
elogio da sombra
Coleção Sagitário
Editora Globo
página 24.
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20/09/2008

DESARMADO MAS RICO!

VOU ENRIQUECER COM O DESARMAMENTO...







Como disse outro dia, a fortuna está sempre na minha frente mas não consigo alcançá-la. Agora surge uma perspectiva real de eu me tornar um ricaço, principalmente depois de pesquisa do IBOPE apurar que 81% dos brasileiros são a favor do desarmamento.

Em Iraí, minha primeira Comarca, às beiras do Rio do Mel, habita uma tribo de caicangues e com ela vou estabelecer as relações negociais que me deixarão milionário.

Vou entrar com a idéia e convencer o cacique – no meu tempo era o Sebastião – a montar uma fábrica de bodoques de alta precisão, com flechas dotadas de mecanismo automático de direcionamento. Algumas terão pontas de aço e outras, mais eficazes, um mini-coquetel molotov na ponta.

Coquetel molotov não entra na proibição legal, desde que usado para defesa. Querem um exemplo? Em 28/01/2005, durante o Fórum Social Mundial, foram presos aqui em Porto Alegre 43 punks com “trinta coquetéis molotov prontos, cerca de 250 gramas de pólvora, explosivos caseiros e bastões sinalizadores”. Alegaram que o arsenal seria utilizado “para se defender dos ataques feitos com freqüência por skinheads” e foram liberados. Alguma dúvida?

É certo que na época foi atirado um coquetel molotov no Bank of Boston, na Av. Praia de Belas, próximo ao acampamento do Fórum, e houve outro ataque a uma agência do Banrisul. Esses fatos, de legítima defesa contra a ameaça capitalista, só confirmam o caráter autodefensivo da arma (se os punks portassem revólveres seriam presos em flagrante por delito inafiançável).

Estou pensando, até, em desenvolver com o Sebastião, ou com seu sucessor, um arco de repetição, o que facilitaria muito o uso. Um arco-metralha!

A proibição de vender armas de fogo vai ser aprovada. Mas os bandidos continuarão armados e nós, para nos defender, teremos que nos armar, de um jeito ou de outro. Atirar facas exige treino, dedicação e esforço. Não tenho condições de fazer tanto exercício por questões de saúde. Um arco de repetição é a solução ideal.

Claro que vamos aprimorá-lo para que ele tenha dimensões mínimas e aproveitamento máximo. Talvez com mecânica semelhante – mas não igual – à de uma balestra. Como esta já existe e há fabricantes no mundo inteiro eu não conseguiria enriquecer se me limitasse a copiá-la. Poderia até sofrer um processo por contrafação.

Penso, também, em fabricar coquetéis molotovs de bolso para defesa pessoal. Será um produto mais artesanal e vou vendê-los no camelódromo em que se transformou o centro de Porto Alegre.

Deixarei alguns estrategicamente colocados em minha casa e uns dois ou três no carro. Para defesa pessoal, repito. Sei. Enfrentar um bandido armado de revólver ou fuzil com uma garrafa combustível é algo meio primário e comunista, mas como juiz aposentado não posso dar mau exemplo. Tenho que cumprir as leis.

Se um coquetel molotov é considerado um instrumento legal de defesa e um revólver não, vamos nos adaptar. Talvez algum dia tenhamos que nos defender de agressores que posem de bandidos sem ser bandidos.

Aceito sócios para a fábrica de arcos. Se você se interessar deixe um comentário, digite o código secreto "EQSS" e informe seu e-mail. Entrarei em contato informando o número de minha conta bancária para depósito. Será um negócio absolutamente transparente e não será preciso usar malas ou cuecas.

Malas, só depois, para transportar o dinheiro que você ganhar. Afinal, estou lhe oferecendo a oportunidade ímpar de enriquecer comigo. Seu investimento proporcionará lucros consideráveis. Vamos entrar no círculo restrito dos colunáveis, passar uma temporada no Castelo de Caras, aparecer na revista, comer caviar e viver sem se preocupar com o passado.

Por isto não aceito depósito inferior a R$ 50.000,00.





Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 21/07/2005.
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MEGALOMANIA PATRIÓTICA

SONHOS DE UM MEGALÔMANO, MAS PARA O BEM DA PÁTRIA...



Às vezes tenho a sensação de que me está reservada, ainda, apesar da idade e da aposentadoria, a realização de grandes feitos para a humanidade ou, pelo menos, para o Brasil.

Vejam a minha idéia de abrir uma fábrica de arco e flechas de repetição, que publiquei neste blog no dia 21/07 (Vou Enriquecer com o Desarmamento!), que nos permitirá a defesa contra os bandidos face à previsível proibição do comércio de armas e munições. Ela vai me enriquecer e a todos aqueles que tiverem a ousadia de se associar no empreendimento.

Mas estive pensando, porque para montar esse tipo de empresa é preciso cautela e análise redobradas, e meu pensamento solertemente desviou-se para uma possibilidade inicialmente não prevista: minha humilde e aparentemente simplória fábrica poderá provocar a emergência do Brasil como potência mundial, mas isto vai demorar ainda; ninguém conquista o mundo da noite para o dia.

É preciso, também, um pouco de pessimismo, artigo difícil de se encontrar hoje no mercado social mundial porque passamos pelo melhor período da História Universal, como já disse outro dia ao Túlio. Não são detalhes como a Guerra do Iraque, o conflito árabe-israelense, os atentados terroristas em Londres e na Chechênia, a loucura explicita de presidentes como o da Coréia do Norte e, mais aqui perto, a degringolada do PT, a guerra entre traficantes e a violência diuturna que vão acabar com essa sensação de segurança, paz e tranqüilidade.

Por isto, apesar de tudo, temos que ser inicialmente pessimistas para chegarmos ao status de uma grande potência.

Primeiro, temos repor a Direita no poder. Com isto desviaremos a atenção dos americanos. Com um governo de Esquerda, estamos sendo vigiados e isto, para os fins deste artigo, não é nada bom. Com a Direita no poder a grande potência do Norte se esquecerá de nós e quando emergir a terceira guerra mundial não lembrará que existimos e não jogará alguma bomba sobre nossas cabeças. Talvez até possa atingir grandes centros, como Rio, São Paulo, Belo Horizonte, mas a minha fábrica vai ser instalada em Iraí, bem no interior do Rio Grande do Sul, como já disse.

Isto será o começo de nossa dominação do mundo.

Um dia, após a II Guerra, explodidas Hiroshima e Nagasaki, perguntaram a Einstein como seria a terceira guerra mundial. A resposta foi mais ou menos assim: “a terceira eu não sei. Mas a quarta, seguramente, será com paus e pedras”.

Perceberam a nossa vantagem? As grandes potências de hoje aniquilarão umas às outras. Os meus arcos de repetição e minhas flechas com pontas de aço e coquetéis molotov estarão tão desenvolvidos e aperfeiçoados que não encontrarão similar no mundo.

Lamentavelmente teremos que guerrear, mas por pouco tempo. Venceremos logo graças à nossa supremacia de forças. Os inimigos, com paus e pedras, não serão páreo para os nossos sofisticadíssimos bodoques e nossa destreza em manejá-los. Venceremos a IV Guerra Mundial, conquistaremos outros países, dominaremos o mundo e implantaremos, impositiva mas democraticamente (algo assim como os americanos estão fazendo no Iraque), o nosso modo de vida e o nosso sistema de governo.

Só então não haverá mais guerra. A paz será verdadeira e abrangente, pois colocaremos administradores brasileiros para governar os países conquistados. Sempre fomos avessos a guerras e isto bastará para a paz duradoura e contínua.

A corrupção, uma de nossas características principais há muitas gerações, ao contrário do que parece, será benéfica. Nela estão agasalhadas as plenas condições de paz: os corruptos gostam de ganhar dinheiro fácil e por isto não são belicosos... No máximo ameaçam por telefone, mas, então, este ainda não terá sido reinventado.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 28/07/2005.
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18/09/2008

ESTRELAS

Alberto Lisboa Cohen


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Cada estrela que brilha é uma promessa,
um sinal de esperança e novo alento
para os que vivem pelo encantamento
de todo novo sonho a ser sonhado.
Aos olhos do menino que não cresce,
o amor que é tão velho não envelhece,

cometas enamoram-se de luas
e botos acasalam com sereias.
E a estrela da manhã quando aparece,

mais brilhante que todas as estrelas,
é como o olhar de Deus que reconhece

em cada um de nós a Sua criança,
em todos nós Sua imagem, semelhança.



Alberto Lisboa Cohen
caminhos de não chegar
Prêmio IAP de Literatura 2005
Instituto de Artes do Pará,
página 42.
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13/09/2008

À MINHA FILHA

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que está de aniversário hoje.

AO COMPANHEIRO FIDEL

Tens amigos e admiradores no Brasil e no mundo. Dizem que Chico Buarque é um deles. Não creio que ele gostasse de ter nascido em Cuba e vivido lá. Certamente não faria o sucesso que fez nem alcançaria a fortuna que adquiriu com seus próprios méritos, talento e esforço de compositor. Em Cuba os méritos são do Estado.

Os intelectuais que conheço – conheço é modo de dizer, pois não conheço, pessoalmente, nenhum – adoram Cuba, mas não moram lá. Há uns 70 na ilha que moram em cadeias e não creio que esse seja um bom lugar para eles.

Fernando Gabeira, um deputado federal de esquerda muito em voga ultimamente, esteve lá. É possível que goste de Cuba. Mas em 31 de março de 2003 (poderia haver data mais apropriada?) representou perante o Congresso condenando a prisão de 77 dissidentes cubanos e solicitando ao governo brasileiro gestões para a sua libertação (
aqui).

É cômodo se dizer simpatizante de uma realidade longínqua para parecer humanista mesmo que ela seja a representação lídima da desumanidade.

Dizem que a
medicina cubana é avançada. Mas eu não gostaria de morar lá com a minha fibrilação. Os equipamentos são tão ultrapassados quanto os carros que se vê nas ruas. Aliás, acho que os melhores mecânicos do mundo são os cubanos porque para manter rodando uma frota obsoleta e caindo aos pedaços como a de Cuba só com muita criatividade. A mão-de-obra de fundo de quintal exige esforço. Meu pai foi mecânico, a partir de 1950, quando tudo era artesanal. Lá, hoje, ainda deve ser assim. A culpa? A culpa é do boicote americano, claro. Cuspo na cara do meu vizinho, mas tenho o direito de exigir que ele me ajude se eu estiver em dificuldade.

Lá, os artistas, para sobreviver, devem fazer bicos, como engraxar sapatos.
Ibrahim Ferrer, que morreu dia 06, submeteu-se a isto. Já imaginaram o Chico como engraxate para poder viver um pouco mais condignamente? Ou o Milton Nascimento, o João Bosco, o ministro Gilberto Gil, o Caetano Veloso?

Quem viu o documentário Buena Vista Social Club se comoveu com aqueles velhinhos conformados e perdidos que o companheiro Fidel e sua reinvolução isolaram. Eles teriam enriquecido a cultura cubana com mais eficiência do que os projetos do ditador e, ao mesmo tempo, levariam uma vida menos penosa.

Ver um pianista como Rubén Gonzáles y Fontanillis alquebrado, com artrite (a medicina cubana, tão avançada, não lhe valeu) tocando num piano antigo, de parede, quando poderia se ter lançado no mundo como virtuose ou com melhores condições de desenvolver seu talento, é um crime contra a Cultura.

Com que direito o companheiro Fidel podou a vida de tantos artistas e intelectuais? Ele está acima do bem e do mal, dispõe de onisciência tal que tem o direito de dominar tudo o que se movimenta naquele paraíso infernal? Claro que sim.

Ele lesou artistas que apenas representavam o melhor da arte musical do país simpático que tornou seu quintal. É o senhor privilegiado de uma ilha que não precisou comprar. Ainda o pagam para ser dono dela e administrá-la tão mal e retrocessivamente.

Mas ele não conseguiu a chama da Eternidade.

Quando morreres, Deus te guarde, companheiro Fidel. Num lugarzinho especial, isolado e silencioso. Nem te desejo choro e ranger de dentes. Apenas o silêncio. O silêncio eterno e triste dos artistas que amordaçaste.




Publicada no blogue JUS SPERNIANDI,
em 25/08/2005.
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11/09/2008

O PEQUENO NADADOR

Carlos Saldanha Legendre





(a Antônio Augusto Fagundes)
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Era tão belo o filho (porque filho)
desde o nascer, quando o entronara ao peito.
Implume e frágil, se esbatera ao leito,
ó pássaro de brisas e junquilhos!

Talvez não fosse igual a outros filhos
porque só de esperanças fora feito.
Buscara o mar e o abismo de tal jeito,
mais parecia peixe com seus brilhos.

Mas era só humano e a luz tão pouca
ao fundo d'água... Deus, que força a fez
arrancá-lo do vórtice? Sem roupa,

trazendo-o contra o colo, em ânsia louca,
como o gerando por segunda vez,
a mãe lhe sopra vida pela boca.




Carlos Saldanha Legendre
Inventário do Canto,
(2.ª edição – revista e atualizada)
Cultura Contemporânea
Porto Alegre 2000

página 32.
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09/09/2008

IEDA

Ilton Carlos Dellandréa

Aquarela de
Ieda M. F. Dellandréa




Parceira,
parte,
partiu-se em duas
para ser não minha,
mas eu.

Não é,
não somos.
Eu sou – e não seu.

De mim mesmo ateu
creio no ela
que há em mim.

É mais que isto,
sou menos.
É tudo, inteira,
sou pequeno.

Agiganto-me nela,
reencarnação viva
vívida
vivaz
de quem não morreu.

Concomitante,
mesmo ausente
é a equação dominante
e presente.

Mais dizer não posso.
O resto,
o sumo,
o resumo,
o tudo
é nosso...


Ilton Carlos Dellandréa
Porto Alegre, 29/03/2000
A imagem ilustrativa é uma aquarela dela, Ieda.
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06/09/2008

TERROR UNIVERSITÁRIO

Deu no jornal Zero Hora de hoje (04/08/2005), página 3:

Ato de mau gosto. Cruzou a fronteira do grotesco – e da falta de educação – o que um trio de estudantes universitários fez durante a visita do reitor da Universidade Estadual Paulista à unidade da instituição em Franca, São Paulo. Durante o discurso, uma aluna colocou garrafas de urina na mesa do reitor, outro levou um balde e vomitou dentro. O terceiro... bem, colocou um jornal no chão, fez o que os leitores estão imaginando, embrulhou e colocou na mesa. O trio alegou que o ato era um “terrorismo poético”. Já a universidade registrou queixa e estuda qual a punição adequada.

Não contesto que tenha sido um ato de terrorismo. Cada um abraça a modalidade de terror que mais lhe agrada e convém. Tudo depende da crença e da coragem de cada um. Alguns, extremistas, atam explosivos ao corpo e se explodem matando inocentes em nome de uma causa que acreditam justa. Outros urinam, vomitam e defecam em público e muito provavelmente isso represente o limite de sua criatividade, de sua capacidade e de sua coragem.

Também não discuto o conteúdo artístico da manifestação. Depois de notícias de que uma
faxineira de museu jogou obra fora pensando ser lixo (era, na verdade, um saco de lixo implantado no museu Tate Britain, em Londres, pelo artista Gustav Metzger visando demonstrar a "existência finita" da arte); de que em 2001, uma faxineira na galeria londrina Eyestorm limpou a instalação do artista Damien Hirst achando que era uma pilha de lixo (garrafas de cerveja, copos de café e cinzeiros sujos representando o caos do estúdio de um artista); de que na década de 80, obra de Joseph Beuys, uma banheira suja, foi limpa por um funcionário de uma galeria na Alemanha; de que uma menina de oito anos foi louvada como escritora; de que o chimpanzé Congo teve três das telas abstratas que pintou arrematadas em Londres por US$ 26 mil, nada que provém do mundo da arte me surpreende.

Até porque, gosto não se discute, como dizia a velhinha solitária, de 90 anos, que vivia no meio do mato e se alimentava exatamente daquilo que o terceiro universitário embrulhou no jornal.

Também entendo perfeitamente, e com muito mais vigor, o conteúdo político do ato.

Universitários são seres sempre muito politizados (ou pelo menos acreditam que o são).

Então eles apenas exercitaram aquilo que farão mais tarde na vida, pois é possível visualizar em seu comportamento, com bastante nitidez, um teor em grande parte político-partidário.

Certamente eles serão candidatos a algum cargo, poderão incluir esse ato em seus currículos, e estarão preparados para dominar a cena política do futuro.

Igualzinho ao que muitos políticos estão fazendo hoje.




Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 04/08/2005.
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SAINT-EXUPÉRY E OS HOMENS

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Antoine de Saint-Exupéry




Mais coisas sobre nós mesmos nos ensina a terra que todos os livros. Porque nos oferece resistência. Ao se medir com um obstáculo o homem aprende a se co­nhecer; para superá-lo, entretanto, ele precisa de fer­ramenta. Uma plaina, uma charrua. O camponês, em sua labuta, vai arrancando lentamente alguns segredos à natureza; e a verdade que ele obtém é universal. As­sim o avião, ferramenta das linhas aéreas, envolve o homem em todos os velhos problemas.

Trago sempre nos olhos a imagem de minha pri­meira noite de vôo, na Argentina — uma noite escura onde apenas cintilavam, como estrelas, pequenas luzes perdidas na planície.

Cada uma dessas luzes marcava, no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência. Sob aquele teto alguém lia, ou meditava, ou fazia confidências. Naquela outra casa alguém sondava o espaço ou se consumia em cálculos sobre a nebulosa de Andrômeda. Mais além seria, talvez, a hora do amor. De longe em longe bri­lhavam esses fogos no campo, como que pedindo sus­tento. Até os mais discretos: o do poeta, o do professor, o do carpinteiro. Mas entre essas estrelas vivas, tantas janelas fechadas, tantas estrelas extintas, tantos homens adormecidos. . .

É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algu­mas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura.




Antoine de Saint-Exupéry
(Do livro Terra dos Homens)
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02/09/2008

SONETO DE VÉSPERA

Vinicius de Moraes











Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou — fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

Oxford, 1939


Vinicius de Moraes
Poemas, Sonetos e Baladas
Companhia das Letras, 2008,
página 81.
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