30/08/2008

FOCINHEIRAS MENTAIS

Ilton Carlos Dellandréa



Eu não tenho nenhum animal de estimação vivo. Nem morto. Só nas pinturas da Ieda.

Mas, do jeito que as coisas vão, serei obrigado a ter um. Porque a propaganda, subliminar ou direta, para que você tenha um cão (principalmente um cão) é tão insistente que prevejo que será considerado anormal quem não possuir um daqui a uns tempos.

Já vi reportagens dizendo que é fácil emagrecer simplesmente levando seu cachorro a passear. Uma balela. Se você caminhar, com ou sem cachorro, o efeito emagrecedor é o mesmo.

Parece que há gente interessada na proliferação de animais de estimação e não creio que sejam apenas mentes caridosas. E olha que já li, em alguma de minhas revistas antigas, que alguém estimar exageradamente um animal pode significar um desvio afetivo. Sem falar em matérias sobre doenças, algumas graves, transmissíveis por animais domésticos. Quando eu sentir vontade vou desencaixotar todas as minhas revistas velhas e conferir estas coisas.

Dia 10 de agosto o programa Tudo a Ver, da Record (que já foi bem melhor), mostrou um motel para cachorros, com quarto espelhado e cama especial. Duas dondocas levaram um cão e uma cadela e celebraram ali um casamento, ambos convenientemente trajados.

No final, a cama estava tomada por três ou quatro cachorros – o casal e os padrinhos – e deve ter rolado uma surubacão, pois os animais agem inteligentemente por instinto (por isto não têm noção de fidelidade) e não instintivamente por inteligência, como suas donas.

Uma reportagem da RBS TV do dia 11/08/2005, às 12,30 horas, referiu a existência de um projeto desenvolvido no Gabinete da Primeira-Dama do Estado que visa evitar a gravidez de adolescentes. Para isto, alunos de uma escola levam filhotes de cachorros ao colégio e cuidam deles simulando serem seus filhos para se conscientizarem do trabalho que dá.

Mais uma vez, se pega a conseqüência pela causa e temo que possa haver algum desencaminhamento por aí, que não vou referir para não influenciar ninguém. Para não ter filho é necessário ou não transar ou transar com segurança. Levar um cachorro no colo não vai impedir nada disto. E fazer de conta que um cachorro é um bebê, para essa finalidade, é alguma coisa absurda, para dizer o mínimo.

A reportagem mostrou a sala de aula: a professora ensinando, alunas com cãezinhos no colo, latidos de vez em quando. A câmera flagrou um mijando

tranqüilamente no chão...

Os mentores intelectuais dessas iniciativas devem se mirar no espelho e sentir-se verdadeiros gênios da criatividade. Eu, fumando um cachimbo imaginário, apenas questiono: que genialidade é essa que nos obriga a nos valer de animais para lembrar que somos humanos?





Publicada originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 14/08/2005.
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26/08/2008

CANTIGA PARA NÃO MORRER

Ferreira Gullar


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.




Ferreira Gullar
Toda Poesia (1950/1980)
[Dentro da Noite Veloz]
Círculo do Livro S/A,
Página 286.

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23/08/2008

CRISE DE IDENTIDADE

Ilton Carlos Dellandréa

Estou tão perdido que nem sei se posso me considerar normal. Parte dessa confusão é provocada exatamente pelo fato de me considerar normal sem saber ao certo o que isto significa. Vejo tantos normais dizendo tantas besteiras com tanta certeza – acho que estou parodiando Fernando Pessoa – que nem mais ao certo sei o que sou. Estou sentindo saudades do tempo do primário, em que eu era gordo, ruivo e sardento e motivo de gozação dos colegas mas tinha como reagir.

Se eu fosse mulher e o Iedo me batesse poderia recorrer a uma delegacias especializadas em atender mulheres agredidas pelo marido. Agora a lei é mais severa para eles do que era, por exemplo, ao tempo em que eu era juiz, quando preponderava o entendimento de que se o processo crime era fruto de briga do casal o papel do juiz era apaziguar. Caso verificasse, no final, a reconciliação, a política criminal sugeria a absolvição para não marcar negativamente o relacionamento. Hoje não. Hoje o cônjuge deve ser punido mesmo que haja reconciliação. Os dois devem conviver com a marca que ficou. Quer dizer, ambos são, de certa forma, condenados...

Se eu fosse mulher teria, ainda, direito a cota especial nas eleições... Bastaria me inscrever em um partido e pleitear inscrição como candidata com base nos 20% criados para elas.

Estou desconversando. Sou homem e não há uma Delegacia especial que me atenda em caso de uma agressão feminina. Ainda bem que faz tempo, uns 36 anos (a conheço há 35), que a Ieda não me bate. Não me surra, eu quiser dizer. Também perdi o gosto pela política e as cotas de reserva não me atraem.

Se eu fosse negro teria, também, se tudo der certo, alguma vantagem para ingresso na faculdade. O Ministério da Educação parece que vai impor cotas para ingresso de negros e índios nas faculdades mesmo que eles não se classifiquem tão bem quanto um branco. Não existe discriminação contra branco. Então, estão querendo introduzi-la no nosso sistema social.

Mas também não sou negro e já ultrapassei a fase de ingressar em faculdade. Meus filhos também. Então, isso daí de nada me aproveita. É uma vantagem da qual não posso usufruir.

Se eu fosse gay talvez pudesse gozar algum privilégio. Retirem, por favor, a conotação sexual do verbo gozar. Não foi isto que eu quis dizer. Eu quis dizer que os gays, hoje, têm, em alguns aspectos mais privilégios do que um... normal (?). Vocês viram o Jean Wyllys no BBB5? Bastou apregoar sua condição de gay, fazer um choramingo, e venceu levando a recompensa de R$ 500.000,00. Escreveu um livro que está entre os mais vendidos e de vez em quando aparece na tevê chateando a gente com sua afetação. Jimi Hendrix foi dispensado do Exército porque
fingiu ser gay...

Mas não sou gay. Minha predileção sexual sempre foi pelo sexo oposto. Tanto que casei com uma mulher.

O pior é que sou aposentado. Poderia ser pior? Não, porque a minha aposentadoria é por invalidez. Não tenho ainda 60 anos e por isto posso estar caindo aos pedaços numa fila de Banco que alguém com 60, mesmo saudável, pode passar na minha frente.

Os deficientes físicos têm lugares especiais para estacionar em certos locais. Às vezes, quando estou fibrilado, gostaria de ter a mesma facilidade. A fibrilação tolhe seus movimentos, você dá cinco passos e tem que descansar, fica tonto com facilidade mas é considerado, para fins de estacionamento, um... normal (?).

Nunca vi fantasmas nem anjos nem um único duende. Nem discos voadores. Nunca patrocinei um sopão para os pobres. Nada do que possam eventualmente falar ou praticar contra mim pode ser considerado politicamente incorreto (talvez este texto). Às vezes, assim como sou, me sinto mais discriminado do que um negro, do que um gay, do que uma mulher, do que um deficiente físico...

É nessas horas que fico perdido diante da realidade que me cerca. Sinto tristeza e ganas de consultar um psiquiatra e exigir um atestado de que sou normal (?). Para meu convencimento.




Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 09/08/2005.

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21/08/2008

A INEXORABILIDADE DO TEMPO

Ilton Carlos Dellandréa




Há muitas situações em que você sente que alguma coisa ocorreu (ou correu?) no seu tempo, digamos, de vida. Ou seja, que você está ficando velho. Alguns exemplos – certamente há mais – muito particulares:

Quando percebe que apresentadores, artistas, repórteres, cantores, enfim, a maioria daqueles que freqüentam a telinha, são mais novos que você. Lembra que há uns 30 anos todos eram mais velhos? O mesmo ocorre em outros setores da atividade humana. Se seu chefe, por exemplo, for mais jovem é sinal que você já caminhou um bocado...

Quando você completa quarenta anos e constata que, daí por diante, cada ano vivido será em década com final enta: cinqüenta, sessenta, setenta e, com boa sorte, oitenta e noventa. Cem é miragem. Inte e inta, nunca mais!

Quando tem que convencer os mais jovens de que, quando criança, você ganhava revólveres de brinquedo com espoleta para brincar de caubói e isto era considerado normal. Mais: convencê-los de que nenhum de seus amiguinhos da época virou bandido ou assaltante. E que você, apesar disso, é juiz esperando promoção para desembargador.

Quando você percebe que já tinha nascido quando o Brasil conquistou a primeira Copa do Mundo, ficou ansioso para que quatro anos passassem rápidos para curtir a seguinte e desde então foram jogadas 17 e agora você não tem nenhuma pressa de que chegue a próxima.

Quando você tem que esclarecer aos mais jovens que o cantor sertanejo Sérgio Reis fez parte da Jovem Guarda, com Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa, Rosemary e outros de quem nunca ouviram falar nem você lembra mais, como Martinha e Os Vips.

Quando você se esmera preparando aquela viagem de férias e percebe que seus filhos não são mais crianças porque preferem ficar em casa e curtir a companhia dos amigos. Mas depois telefonam, às vezes de hora em hora, para saber como se cozinha um ovo ou como se acende o aquecedor a gás do banheiro que, aliás, é automático e não precisa ser ligado. O do ovo telefona depois reclamando que o mesmo está na água fervente há mais de meia hora e a casca ainda não amoleceu...

Quando você precisa convencer seus filhos de que na sua juventude havia domingueiras ou matinês dançantes, explicar que eram aos domingos à tarde, e eles acham um absurdo porque se dançava de dia. Pior: não consegue convencê-los porque está naquela idade em que os filhos não acreditam mais nos pais.

Quando você vê um Monza 2.0 parecido com o que teve há muito tempo e o acha feio, com linhas desgraciosas e retas, as lanterninhas traseiras quadradas e toscas, e lembra que quando adquiriu o seu ele era um carro lindíssimo e elegante, seu mais caro objeto de desejo.

Quando você participa de um encontro com antigos colegas de trabalho, como os do ex-CPD da Telesc, e observa que a maioria está grisalha e separada de seus cônjuges da época. Um deles, só porque você não embranqueceu, insiste em voz alta que você pinta os cabelos. Sem contar os que o chamam de tarado por viver ainda com a primeira mulher.

Quando você chega numa cidade pequena, como Taió, onde viveu trinta anos, percorre as ruas de carro e brinca de qual será o primeiro conhecido que vamos ver?, atravessa a cidade e não reconhece ninguém. Alguns rostos enrugados, velhos, com cabelos brancos, lhe parecem familiares mas você não lembra de quem são. Dá vontade de chorar!

Quando você repara, num aglomerado de pessoas, uma amiga que não via há mais ou menos vinte anos, vai cumprimentá-la, possivelmente abraçá-la, e descobre, surpreso e vexado, que, na verdade, se trata de uma filha dela.

Quando a casa em que mora, que você se queixava que sempre foi pequena demais, se torna imensa porque os filhos casaram, foram morar longe, deixando-a vazia, apenas com um casal de pais – sou bondoso comigo mesmo e não vou dizer de velhos – morando nela. Talvez esta seja a mais dolorosa de todas...
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18/08/2008

JORGE LUÍS BORGES

Jorge Luís Borges







New England, 1967


Mudaram as formas de meu sonho;
agora são laterais casas vermelhas
e o delicado bronze das folhas
e o casto inverno e o piedoso lenho.
Como no dia sétimo, a terra
é boa. Nos crepúsculos persiste
algo que quase não é, ousado e triste,
um antigo rumor de Bíblia e guerra.
Breve (nos dizem) chegará a neve
e América me espera em cada esquina,
mas sinto na tarde que declina
o hoje tão lento e o ontem tão breve.
Buenos Aires, eu sigo caminhando
por tuas esquinas, sem por que nem quando.


Cambridge, 1967


Jorge Luís Borges,
elogio das sombras/perfis
Editora Globo - Porto Alegre
página 11.
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13/08/2008

ORA ATÉ que enfim...

Fernando Pessoa
Álvaro de Campos


[523]

ORA ATÉ que enfim..., perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exatamente na cabeça.

Meu coração estourou como uma bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
E, como cuspo atirado ao vento,
Me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
Como a sarapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
Isto é uma solução,
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários —
Também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida...


Fernando Pessoa
Ficções do Interlúdio — Álvaro de Campos
in Fernando Pessoa,
Obra Poética, página 410,
Companhia José Aguilar Editora (1974).
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09/08/2008

SOBRE MODA

A PROPÓSITO DA
SÃO PAULO FASHION WEEK DE 2005



Nunca entendi de moda, estou longe de ser um expert no assunto, mas uma coisa sempre me chamou a atenção: por que os chiques modelos desenhados por estilistas famosos não é usado nas ruas ou pelas mulheres, de qualquer classe social, nos eventos do dia a dia ou nos de noite a noite? Para que serve esse processo de criação de roupa descartável antes mesmo de ser usada?

Já me interessei por isto. Após ver noticiário sobre algum desses eventos fashion saía às ruas prestando atenção nos trajes das mulheres. Minhas pesquisas começaram em Florianópolis, quando era estudante. Nenhuma das minhas colegas de faculdade ou de serviço, ou as que usavam o ônibus da Bela Vista, usavam daqueles modelos.

Há algum tempo um estilista inventou um modelo conservador, se visto de frente: recatado, sem decote, abaixo do joelho, mangas três quartos. Mas atrás apresentava um corte oval na bunda das modelos, digo, na altura da bunda das modelos, que ficavam expostas. Percebi, naquele traje, um objetivo utilitário: a desnecessidade de as mulheres levantarem o vestido ou baixarem as saias ao usar o vaso sanitário. A moda não pegou. Deve ser porque as mulheres usam roupa para se vestir e não apenas na hora de ir ao banheiro.

Aqui em Porto Alegre nunca vi uma guria usando um vestido daqueles. Viajei, na época, para Salvador, Vila Velha, Florianópolis, Joinville. Em Taió perdi definitivamente a esperança de poder apreciar aquela moda. Mas continuo pesquisando.

As moças das portas das boates da Avenida Farrapos, em Porto Alegre, usam roupas parecidas, algumas de bom gosto: saias curtinhas, decotes generosos, botas altas... Já as que fazem ponto no Parque da Harmonia ou na rua Anita Garibaldi, mais polpudas, não têm o mesmo esmero. Mas nem umas nem outras usam esses modelitos desenhados e aplaudidos nos desfiles fashion.

Finalmente a luz. A Mônica Waldvogel me iluminou. Nada como o ensinamento de quem sabe e, como se sabe, os jornalistas sabem de tudo. De tudo um pouco, porque sua profissão assim o exige. É certo que às vezes dão mancadas, como da Marília Gabriela em 1982 (eu apreciava seu programa de entrevistas). Foi uma gafe imperdoável.

Ela transmitia a abertura ou encerramento da Copa do Mundo e anunciou que os três tenores iriam interpretar uma ária de... (ela gaguejou) Nabuco e Giuseppe Verdi, intitulada (e deu o nome da peça, que não lembro). Na verdade, era uma peça da ópera Nabucco, de Verdi, mas ela, que sempre demonstrou uma erudição profunda nos seus programas, não sabia disto. Fiquei decepcionado.

Não sou um profundo conhecedor de música erudita, mas até por ouvir bastante e ler livros a respeito, sei que o Tema de Lara, por exemplo, não foi composto por Mozart.

– Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! – como diria o Clodovil, me fazendo voltar ao assunto principal.

Segundo a revista Época de 04/07/2005, página 15, a Mônica Waldvogel explicou a moda de Alexandre Herchovitch para José Serra durante a São Paulo Fashion Week, assim:

– Prefeito, não é roupa de usar na rua. É para entender o conceito!

Meu Deus, nem eu desconfiava que era tão ignorante. Algo tão elementar e eu desconhecia: a roupa fashion é uma roupa conceitual...

Então tá. Obrigado, Mônica. Sou-lhe muito grato. Você me abriu horizontes. Vejo o mundo da moda com olhos complacentes e admirados. Finalmente entendi.

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Será que entendi mesmo?



Publicado no blog Jus Sperniandi,
em 04/07/2005.
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06/08/2008

ASSÉDIO

Alberto Cohen


A poesia espreita o solitário,
quieto no bar, num canto, pela rua,
reconhecível pelo mesmo olhar
dos que esperam sem encontro marcado.
É num arroubo que ela se oferece,
imprevisível, dona, dissoluta,
nas carícias rimadas e medidas
negaceia e se dá, jamais inteira.
Depois, sacode a vasta cabeleira,
recolhe pelo chão os seus mistérios,
e parte, insatisfeita como sempre,
atirando metáforas na cama.


Alberto Cohen
Poemas sem Dono
II Prêmio Literário Livraria Asabeça - 2003
página 17.

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02/08/2008

OIGALÊ, FRIO DESGRANIDO!

Brrrr! Como faz frio em Porto Alegre hoje. Está úmido, sopra um ventinho fraco mas não me atrevo a chamá-lo de brisa. A brisa é mais aconchegante e apropriada ao calor. Brisa gelada é um contra-senso. Definitivamente não combina. É vento, fraco no sopro mas forte no efeito enregelante. O céu está forrado e não vou estranhar se, de madrugada, ao espiar pela janela, ver flocos de neve.

Os gaudérios, charlando nos galpões do pampa afora, diriam que esse frio é de renguear cusco. Traduzindo: o frio é tão forte que faz até cachorro mancar. Charlar é jogar conversa fora nas rodas de chimarrão, ao redor de um fogo-de-chão.

Fogo-de-chão ou fogão é um grande fogo que se prende em lenha grossa no chão batido dos ranchos para preparar mate e churrasco e no inverno para aquecer a charla. Prender fogo é acender o fogo mesmo.

Os gaúchos modernos diriam, numa linguagem mais compreensível, que hoje está mais frio do que abraço de sogro.

Aureliano de Figueiredo Pinto, um poeta gaudério que em vários poemas aborda o frio, inicia um deles (Recuerdos de Tapejara, depois musicado por Noel Guarany) assim:

Já nem sei porque é que Deus
Tanto ao herege e ao fiel,
Nos manda um frio tão cruel,
Vento e neve em redoblona,
Que a perna velha quebrada
E esta costela emendada
Se param mais delicadas
Do que teclas de cordeona
.

Em seguida usa o verso que usei como título do post. Redoblona significa, aqui, ao mesmo tempo. O se param é se tornam e isto parece óbvio. Oigalê é uma interjeição que exprime admiração.

Li, há pouco, que o Jô Soares vai entrevistar Roberto Jefferson. Falta de imaginação! A atração – como sempre – vai ser o Jô. O Jefferson todo mundo sabe o que vai dizer.

Não posso deixar de relacionar a gargalhada que ele deu ao final de suas declarações à CPI dos Correios, ao narrar a origem de seu olho roxo, com o frio. Aquela gargalhada gélida até hoje ecoa pelos corredores e esquinas do Congresso e, dizem, até do Palácio da Alvorada. Ela retumba no peito de alguns parlamentares como a risada da bruxa malvada dos desenhos animados no coração temeroso das crianças.

Ouvi, agora, na Band, que uma brasileira está envolvida num esquema de fraude na Volkswagen, na Alemanha. Ela é amante de um dos diretores. Estamos exportando corrupção. Deve ser por isto que nosso PIB está aumentando...

Noutro poema sobre o frio (Aqui estou, senhor Inverno!), diz o mesmo poeta:

Sei que vens vindo... Não me amedrontas!
Fiz provisões de sábias quietudes
e de silêncios – que prevenido!
Vão-se-me os olhos nas folhas tontas
como simbólicos ataúdes
rolando ao nada do teu olvido
.

Estou assim hoje. Alternando poesia com política. Uma mistura que só é menos incongruente que eu. Deve ser o frio!

Mas já tomei minha decisão. Tenho uma televisão colocada num vão de parede exatamente sobre uma lareira. Já prendi fogo na lareira (acima). Vou ligar a televisão e, como sempre, ficar apreciando o fogo.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 05/07/2005.

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