29/09/2007

Mozart e Kartismo

O QUE MOZART TEM A VER COM KARTISMO?

À primeira vista, para o mundo em geral, absolutamente nada. Na época do compositor sequer se poderia imaginar que algum dia um americano meio louco transformasse seu cortador de grama em um aparato para disputar corridas com amigos a uns 3 cm do solo.

Mas aqui, no âmbito de nossa cidadela familiar, que já passou por várias fases, inclusive a kartiana (não confundir com cartesiana), houve uma relação, ainda que meramente nominal e restrita, entre o gênio musical e o kartismo (não confundir com kantismo).

Meu filho, aos 11 anos de idade, era piloto de kart. Foi campeão da Copa Balestro e do Campeonato Citadino e vice-campeão da Copa Cidade de Porto Alegre, em 1995.

Acabou conquistando um prêmio excepcional: um Fiat Uno, doado pela revendedora Zen, de Lajeado, pela Copa Balestro.

Sua categoria era a hoje extinta Cadete, de 85 cc, condizente com sua faixa etária, e não tão potente quanto a de 125 cc, dos marmanjos (na qual ele chegou a competir, no ano seguinte, e foi novamente campeão citadino e vice-campeão do Campeonato da Serra, na subcategoria Júnior Menor).

Tínhamos dois motores, um para treinos leves e outro para corridas.

O que usávamos nos treinos, batizamos de Haydn. O das corridas era o Mozart, em homenagem ao compositor austríaco, cujas obras sempre foram por nós muito apreciadas. Era um motor afinado, suave e harmonioso, mas despejava seus rompantes estritamente necessários e eficientes quando as circunstâncias o exigiam.

Depois que um piloto da subcategoria graduados perdeu a falange distal do indicador da mão esquerda numa corrida em Farroupilha, meu filho, que já estudava piano havia uns três anos, aos poucos foi pendurando as chuteiras, digo, o capacete, as luvas e o macacão.

Com isto foi-se a esperança de que poderia vir a ser um bem sucedido piloto de Fórmula 1 e enriquecer a família inteira e mais alguns agregados.

O kart e o motor Mozart continuam na garagem. A fase kartiana passou, para alívio da Ieda, que sofria muito, principalmente após um acidente formidável (nos sentidos moderno e obsoleto), mas sem conseqüências graves. Ficou naquele limite tênue e acinzentado entre a vídeo-cassetada e a tragédia.

Meu filho ainda estuda piano, na Faculdade de Música da UFRGS. Talvez não enriqueça a família nem aparentados. Mas ninguém retira de um pai o orgulho e o prazer indescritível que é ouvir uma obra desconhecida pela primeira vez ao vivo e não através da frieza de uma gravação eletrônica. E, o que é mais importante, interpretada pelo próprio filho.

Mozart, portanto, continua em nossa cidadela, só que agora com muito maior pertinência.

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Observação: meu filho, atualmente, está seguindo sua carreira musical, cursando mestrado na Faculdade de Karlsruhe, Alemanha.



Crônica publicada originalmente no blog
Jus Sperniandi,
em 29/06/2004, aqui.

26/09/2007

ESTA VIDA

Guilherme de Almeida





Um sábio me dizia: "Esta existência
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero, inventaria a morte!
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo: e vibra, e cresce,
e se desdobra, e estala num segundo...
Homem, eis o que somos neste mundo!"

Falou-me assim o sábio e eu comecei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: "Ó mocidade,és relâmpago, ao pé da Eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa...

Esta vida não vale grande cousa:
— uma mulher que chora, um berço a um canto,
o riso às vezes, quase sempre o pranto...
Depois, o mundo, a luta que intimida...

Quatro círios acesos — eis a vida!"
Isto me disse o monge e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um pobre me dizia: "Para o pobre,
a vida é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus? ... Eu não creio nessa fantasia!
Deus me dá fome e sede cada dia,
mas nunca me deu pão nem me deu água...
Nunca! Deu-me a vergonha, a eterna mágoa
de andar, de porta em porta, esfarrapado...
Deu-me esta vida: um pão envenenado!"


Disse-me isto o mendigo e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: "Vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo!
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira...
Um telhado... Um penacho de fumaça...
Cortinas muito brancas na vidraça...

Um canário que canta na gaiola...
— Que linda a vida lá por dentro rola!"


Pela primeira vez, eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver!





Guilherme de Almeida,
in Messidor,
Círculo do Livro S/A,
páginas 98/99.

22/09/2007

Os Nossos Bichos

Depois que entrei no mundo dos blogues, tenho freqüentado alguns e noto que muitos blogueiros falam orgulhosamente de seus animais de estimação — principalmente cães fofinhos e gatos espertos — exibidos em belas fotos.

Fiquei coçando a orelha. Não sabia se deveria fazer o mesmo, porque, quando lancei o JUS SPERNIANDI, me propus a escrever mais sobre coisas que se convencionou qualificar de sérias para que fizesse jus ao nome, ainda que, vejo agora, já tenha dado algumas escorregadelas.

Mas é domingo, dia de amenidades e, para mim, o pior da semana porque não se tem o que fazer. A televisão não ajuda (aqueles domingões fastidiosos e não legais não me prendem). Não consigo ver mais de dois filmes, um à tarde e um à noite, e por isto o tempo que sobra é demasiado.

Então resolvi falar dos nossos bichos.

Temos o nosso aquário, os nossos gatos, andorinhas, um beija-flor e já tivemos uma borboleta e um canário belga.

Nosso aquário é uma beleza de azul e os peixes são azuis e as algas. Nunca perguntei à Ieda, embora a convivência de mais de 33 anos, se são realmente algas, para não evidenciar minha ignorância e porque, segundo dizem, é falta de educação indagar aos artistas o que eles querem dizer em seus quadros, ainda que a gente não entenda nada.


Há quem diga que aqueles que têm aquário em sua residência e ficam apreciando os peixinhos têm menos propensão ao infarto. Uma pesquisa na A
lemanha acrescentou que não basta ter um aquário: é preciso levar uma vida saudável, regrada, não ingerir carnes gordas e vermelhas, fazer exercícios e alongamentos, controlar a obesidade, o diabetes e a pressão e não fumar. Mas esta é outra história.

O nosso aquário está pendurado numa parede, meio esquecido na churrasqueira. Para quebrar um pouco o az
ulado sugeri à Ieda que colocasse nele pelo menos uma borboleta que tínhamos, muito brilhante e colorida, mas ela não quis. Não dá para entender esses artistas.

Mais tarde, desastradamente, quando eu limpava meus cds, bati nela, que voejava imprudentemente próximo aos meus cotovelos, e a espatifei.

Já os nossos gatos são milhares. Não! Centenas. Também estão pendurados na parede e convivem muito bem com os peixes. São muito ariscos e por mais sorrateiramente
que entremos na churrasqueira, nunca os enxergamos: só vemos seus rabos e suas patas estilizadas e as pegadas que eles deixam... Não são tão higiênicos quanto apregoam que os gatos são.

Cachorros, não temos. Os vizinhos têm bastante, daqueles enormes, que nos acordam nas madrugadas frias com seus latidos tonitruantes e até estereofônicos. De manhã, bem cedinho, são soltos nas ruas do bairro para cagar pelas calçadas. A minha é de pedras e grama e, não sei porque, eles adoram defecar na grama... Não posso dizer que são mal-educados, mas seus donos, certamente, o são.

Uma vizinha tinha 28 cães e 319 gatos, mas o Departamento de Zoonose da Prefeitura mandou-a desfazer-se da metade. Agora ela tem apenas 14 cães e 159 gatos e meio...

Um beija-flor de vez em quando vem visitar nossos hibiscos. Há tempos que não o vejo. Com esse frio, os hibiscos estão se guardando para a próxima estação.

Em todas as primaveras temos andorinhas. Elas fazem ninho na lareira do escritório: descem pela chaminé e encontram algum lugar apropriado, não sei em que altura, e podemos ouvir o gorjeio dos filhotes depois de algum tempo.

Tínhamos um canário belga, também, muito bonito e canoro. Este a Ieda concordou, após muita insistência minha, em juntar aos peixes.

Mas acho que ela, de propósito, para não quebrar o cerúleo do aquário, o colocou no gatil... O canário desapareceu...




As ilustrações são de Ieda M.F. Dellandréa.
Clique sobre as imagens se quiser vê-las ampliadas.
Crônica publicada no blog Jus Sperniandi,
em 27/06/2004
.

20/09/2007

Quem tem medo de Virginia Woolf?

Como já disse aqui, gosto dos filmes baseados em peças teatrais pela concisão e precisão dos diálogos. O autor teatral tem que ter um enorme poder de síntese porque a peça, que deve durar no máximo duas horas, enfoca, às vezes, uma vida inteira.

Nisso o filme Quem tem medo de Virginia Woolf?, dirigido por Mike Nichols e cinco vezes oscarizado, é emblemático.

Os diálogos são ricos e insólitos. O enredo é um jogo psicológico impiedoso entre o casal mais velho [Richard Burton (George) e Elisabeth Taylor (Martha)] e o mais novo [George Segal (Nick) e Sandy Dennis (Honey)], todos com atuações excepcionais. Mas depois de algum tempo não se sabe quem é gato e quem é rato porque os ataques se entrecruzam e mudam eficazmente de alvo.

Tudo acontece numa única madrugada, após uma noitada festiva na casa do Diretor da Faculdade, pai de Martha, em que George e Nick são professores – este recém-chegado.

O clima é de uma tensão degradante e de um sofrimento extremo. A falta de piedade é a característica principal de George, que tenta por todas as formas desqualificar o novel professor Nick, porque vê nele um provável sucessor e, além disto, rival na noitada, pois sua mulher não tem escrúpulos de seduzi-lo — e ele sabe disto. Ao mesmo tempo em que humilha a mulher dele, Honey, projetando-lhe de forma cruel as fraquezas de sua própria mulher, em quem também desfere ferinas e certeiras flechas de desamor.

É surrealista em certos aspectos: há cenas de tensão que se transformam em comédia forçada, de riso imposto para se evitar o choro e outras em sentido inverso. Mas sempre as farpas trocadas atingem o ponto fraco de alguém, ainda que a figura escrachada de Martha pareça, inicialmente, imune às investidas do marido.

O drama revela no casal mais velho uma capacidade superior e adquirida de ofender e espezinhar com precisão. Afeitos a brigas e desentendimentos, trocam desaforos e insultos, que às vezes parecem propositais e com o fim essencial de impressionar e sugestionar o casal jovem.

O mistério do filho anunciado que não existe e que vai chegar, mas quem chega é um hipotético telegrama anunciando sua morte, e a reação dos pais, demonstra o cultivo de uma cara fantasia, no final desmascarada num jogo que chega às raias da mais pura desesperança. Mais um resquício de uma cumplicidade doentia foi quebrado.

Amanhece, o casal mais novo vai embora, e vem a reconciliação sem conciliação de George e Martha e a sensação de que a vida foi vazia, é vazia e vai continuar vazia, ao contrário dos diálogos que são plenos de desesperança, de mágoas e ideais esmagados, reais ou imaginários, vividos ou criados por mentes insanas. Tudo leva à conclusão de que são todos perdedores.

O título é apenas referencial, embora haja quem diga que a peça, de Edward Albee (um sucesso da Broadway), foi inspirada em problemas existenciais semelhantes aos enfocados pela escritora inglesa Virginia Woolf. É uma espécie de trocadilho com o mote da história infantil do Lobo Mau e os Três Porquinhos e o nome da escritora. Os personagens, em várias cenas, cantam histericamente, quem tem medo de Virginia Woolf?, recordando uma brincadeira da festa anterior. Transportado para a nossa realidade superficial seria algo como “quem tem medo do Leão Lobo?“ (perdão, Virginia).

O filme é em preto e branco mas se fosse colorido não conseguiria exprimir toda sua dramaticidade. O clima de desesperança que o perpassa de início ao fim, com uma música triste e sentida e perfeitamente adequada, não admite cores. Afinal, sonhamos — e temos pesadelos — em preto e branco.


Publicada no blog Jus Sperniandi,
em 17/09/2006, aqui.

15/09/2007

Oração ao Profeta Maomé

Misericordioso Profeta:

Desculpai o mau jeito. Não sei se é realmente esse o tratamento que devo usar ao me dirigir a Vós. Não conheço a liturgia e que forma adotar ao fazer-Vos este pedido. Já vi Vossos fiéis orando voltados para Meca, mas temo pela minha integridade física se me colocar naquela posição. 

Fui batizado na Igreja Católica e lá chamamos nosso deus de Deus e é fácil rezar para Ele. Aliás, nossas orações fazem parte de uma relação comercial na base de um escambo estabelecido tacitamente: a gente pede uma coisa e reza para conseguir. Ou faz promessas, como subir escadarias de joelhos, essas coisas assim.

Agora mesmo o representante dele na Terra, o papa Bento XVI, comercializa indulgências plenárias, isto é, a remissão total das penas temporais cabíveis para pecados cometidos, conforme informa a CNBB aqui. No dia 08 de dezembro (por acaso o Dia da Justiça) já fez isto, segundo o site da Opus Dei: Bento XVI concedeu aos fiéis a possibilidade de lucrar a indulgência plenária na próxima solenidade da Imaculada Conceição, no dia 8 de dezembro.

Então, o contato com nosso Deus se baseia muito nessa relação negocial de lucros e perdas. É claro que temos que fazer alguma coisa para alcançar esse lucro — que nunca é garantido, é assim como aplicar na Bolsa — e isto varia de acordo com a ocasião e com a viabilidade do pedido.

Conheço uma moça que passou os seis meses anteriores ao vestibular rezando fervorosamente para passar. Não estudou muito e foi reprovada. O nosso Deus — creio — não é muito fácil de enrolar.

Sei que Vossos seguidores têm direito à súplica. Concedei-me, ó Misericordioso, uma só vez o mesmo direito, pois o que vou pedir não é em meu proveito. Mas começo agradecendo-Vos pela luz, pelo sol, pelas estrelas, pelos oásis que abrigam as caravanas de seus seguidores, pelos camelos que tão sapientíssimamente fizestes nascer numa parte do mundo em que eles são mais úteis que os veículos motorizados ocidentais.

Agradeço-Vos por conceder a vida a homens e mulheres que vivem sob o sagrado manto de Vossa fé, que acreditam que Alá é seu único e indivisível Deus e Maomé seu último e maior profeta. Considero-os irmãos. Deixo bem claro que não pretendo convertê-los ao Catolicismo. Mas também, nesta fase da vida, não gostaria que eles tentassem me impor o Islamismo porque não acredito — sou um homem de pouca fé — que alguma religião ou crença possa endireitar tortuosidades da minha vida. Desculpai-me, eminentíssimo Mestre, se já estou pedindo alguma coisa. É o hábito.

Meu objetivo, clemente Profeta, é pedir que perdoeis os ocidentais por aquelas charges da Dinamarca, se é que elas efetivamente Vos magoaram e irritaram tão profundamente a ponto de incitar Vossos seguidores a praticar atos de violência que, até para um mau cristão como eu, são incompreensivelmente desumanos e anti-qualquer-crença.

Perdoai se blasfemo por me dirigir diretamente a Vós. Sei que as orações no Islã se dirigem a Alá, sem intermediários. Ainda assim, como é costume na minha religião e porque fostes Vós, e não Alá, o chargeado, rogo que intercedeis a Ele para que, simplesmente, transforme a ira de Vossos fiéis em Tolerância.

Esta a súplica. Afinal, a 4.ª Surata do Alcorão, em seu versículo 114, é tão expressiva:

Não há utilidade alguma na maioria dos seus colóquios, salvo nos que recomendam a caridade, a benevolência e a concórdia entre os homens. A quem assim proceder, com a intenção de comprazer a Deus, agracia-lo-emos com uma magnífica recompensa.

Amém! (Desculpai pelo amém, mas é costume nosso).



Publicada no blog Jus Sperniandi,
em 13/02/2006,
quando surgiu a celeuma das charges de Maomé
publicadas por um chargista sueco.
É republicada porque a polêmica, lamentavelmente, volta à cena,
agora com mais virulência (veja aqui).

12/09/2007

A Busca do Tempo Anterior

(Canto II: Agitato, speranzoso)







Atropelam minha cabeça pesadelos revoltos
como pássaros confusos.
Desaninhados.

Nada sei de ti, que amei sempre
num silêncio agitado e inquieto,
num refolho cardíaco
que nem a fibrilação espanta...

Nada faço senão esperar,
cultivando a saudade de alguém que foi embora
mas de mim jamais saiu.

Mas vou te encontrar um dia
– eu prometo! –
e abraçar-te, quieto,
suavemente aconchegar-te,
aconchegar-me:
seremos duas almas serenas,
silenciosas,
relembrando vidas passadas.

Será que algum dia existimos?
Ou fomos sombras sem figura que passamos?

Espantalho dos pássaros furiosos,
voltarei a vigiar, depois,
reconfortado,
a saudade de um abraço eterno
que eu guardei para ti
por trinta séculos.





Poesia publicada no Caderno de Literatura do Projeto DivulgaArte,
da AJURIS, em junho de 1999,
e no blog
Jus Sperniandi em 15/07/2004

09/09/2007

Tatuagem de Presente

Como a SKY cortou, arbitrariamente, meu sinal de tevê a cabo e privou-me do Film&Arts e alguns outros assistíveis (ajuizei ação cominatória, quarta-feira, com pedido liminar, mas até ontem não sabia do despacho inicial), deixo a televisão ligada em qualquer canal apenas para ter algum barulho que impeça o silêncio de atrapalhar minha concentração.

Hoje, chamou-me a atenção, num programa de futilidades — não sei qual porque poucos há que escapam dessa qualificação — em que uma celebridade completamente desconhecida confessou que deu para a namorada um presente desses únicos que se pode dizer que perdurará até que a morte os separe: ele tatuou no próprio braço o nome dela. Para rimar, o nome termina com ela (é Manuela, Gabriela, algo assim). O nome é dela. O braço é dele. O presente é para ela. E a rima?

O namoro dura sete meses e ele a achou merecedora do mimo. O amor eterno das celebridades geralmente acaba em menos de dois anos, acho que por isto a pressa. Ela ainda não fez o mesmo, mas, segundo ele, está se preparando para fazê-lo.

Senti um grande remorso. Namoro com a Ieda desde 1969, casamos em 1971, e até hoje não tatuei o nome dela em nenhuma parte do meu corpo. E não é por falta de espaço.

Ela também não tatuou o meu e sou-lhe grato por esse presente que ela não me deu. Ela acha o mesmo. Agradeceu-me porque prefere meu couro íntegro, apesar da cicatriz de uma cirurgia de apendicite a que fui submetido em 1977 — no dia do meu aniversário — que não dedico a ninguém.

Uma tatuagem é uma marca indelével, difícil de retirar. O Ronalducho tatuou as iniciais de uma de suas namoradas e depois teve que mudá-la porque, parece, ela engordou muito e ficou ilegível. Acho que foi isto.

Aqui no Rio Grande do Sul, como ocorria no Velho Oeste americano, os pecuaristas tatuavam o gado com sua marca própria para não confundi-lo com o dos vizinhos e para identificá-lo mais facilmente em caso de abigeato. Essa palavra, abigeato, não se usa mais. Mas o que ela expressa — furto de gado — existe. Podem conferir no Aurélio e no Código Penal.

Nada tenho contra quem se tatua. Tenho um sobrinho que tatuou um dragão no braço. Acho que não foi presente para a namorada, porque faz tempo que vivem juntos e têm um filho de cinco anos. Se fosse, certamente ela, que é bonita, teria tatuado a foto dele, em represália.

Cada um faz o que quer com seu couro. Mas pretextar que uma tatuagem seja um presente a outrem e uma prova de amor é como comprar uma lingerie da última moda e usá-la dizendo que é um presente à amada. Com a vantagem de que a lingerie sai facilmente.

E, se por exemplo, a moça aí de cima resolver terminar o namoro? Poderá sofrer uma ação de reparação de danos e pagar uma nota ao ex porque foi culpada pela inscrição, em sentido lato? A interpretação sobre o alcance do dano moral é mais extensa do que sonham nossas cabecinhas de não juízes e de magistrados aposentados.

Depois de pensar só um pouquinho deixei de sentir remorso e estou satisfeito por nunca ter gravado o nome da Ieda em meu corpo. Quando começamos a namorar essa moda não existia. Mas se existisse, e eu o tivesse gravado no meu braço, ele estaria completamente ilegível. E mais gordo!

A transição juventude-velhice, ou meia idade, calcada pela lei da gravidade, faz coisas que os jovens de hoje não prevêem. Uma estrela numa barriguinha de tanquinho, próxima a um umbiguinho sensual, pode se transformar num buraco negro em ruínas, porque o tempo é cruel.

O nome da Ieda tatuou-se em um lugar do meu organismo e lá se encontra bem fixado. Mas podem me virar do avesso que não vão encontrá-lo. Nem percebi direito, porque, além de indolor, foi um processo gradativo e suave. Há outros nomes também, mas o dela sobressai.

04/09/2007

O SORRISO DE MINHA MÃE

Uma das evidências mais claras de nosso processo de envelhecimento é a coleção de efemérides que vamos acumulando vida afora. A primeira — creio — é a do próprio aniversário.

Quanto mais velho, mais datas arquivadas: nascimentos de filhos a netos e bisnetos (estes para uns poucos privilegiados), mortes de avós, pais e parentes, acontecimentos marcantes, aniversários de irmãos, cunhados, sobrinhos, mortes extemporâneas de amigos, primeiro sutiã (geralmente para as moças, mas há exceções), posses em cargos, etc. Vão se acumulando e às vezes passam de mero referencial a pontos de influência, negativos ou positivos, conforme a natureza.

No dia 05 de dezembro de 1982, quando fui acometido a primeira vez por uma crise de arritmia cardíaca, eu me apavorei. Supus que ia morrer. Até pensei em fazer o meu testamento mas lembrei que era juiz iniciante e não tinha nada ainda que pudesse ser transmitido aos meus herdeiros e desisti.

O tempo passou e fui resistindo, sofrendo periodicamente as visitas dessa coisa que considero minha amante indesejável, a
Átria Fibrilini. No começo, a cada crise o mesmo sentimento de horror. Sentir o coração batendo forte, aos solavancos, desequilibrado, sem se poder identificar o ritmo para acompanhar a dança, com a impressão de que a qualquer momento poderá vir um breque definitivo, é algo assustador. Afinal, só temos um coração e ele parar lá se foi este blog, por exemplo.

Mas a gente se adapta ao desconforto. Quando descobri que não sou eterno e tomei consciência de que não adianta forçar os olhos abertos para se manter vivo, o medo da morte foi desaparecendo. Hoje a encaro com relativa naturalidade. Aliás, muito relativa. Ela virá um dia. É claro que não gostaria que fosse hoje. Nem amanhã. Pode demorar pelo menos uns trinta anos, desde que eu não fique gagá, jogado no fundo de uma cama, usando fraldões e incomodando meus filhos ou a Ieda. Se com mais trinta eu ainda me sentir bem, peço um adicional.

Ainda não me preocupei em fazer meu testamento porque ainda não tenho muita coisa a transmitir aos meus filhos. Os cds e os dvds de música clássica vão para o Francisco e os dvds de filmes para a Clarissa. Desde que eles paguem as dívidas pendentes e zelem pela Ieda se intrometendo na vida dela apenas o absolutamente necessário.

Porque escrever sobre a morte, hoje, sábado? Efeméride. Faz 32 anos que minha mãe faleceu. Desta data nunca esqueço. Ela tinha 42 anos, apenas, e não conheceu netos. Só viu um filho casado — eu — porque casei cedo, com 19 anos (sim, com a Ieda). Aliás, nosso casamento foi sugerido por ela logo que passamos no vestibular porque teríamos que sair de Taió para estudar em Florianópolis.

Não lembro mais dela com perfeição. Fotos, para isto, não valem. Guardo apenas a imagem de um sorriso triste e conformado. Sabedora de que estava gravemente enferma proibiu os médicos de falarem a respeito aos familiares para que meu pai, que era cardíaco, não soubesse. Ele não podia se incomodar. Ela se sacrificou por ele.

Só depois fomos entender porque aquele sorriso era tão enigmaticamente espiritual e profundo. Nem Leonardo da Vinci seria capaz de retratá-lo.




Crônica publicada em 23/10/2004, no blog Jus Sperniandi (aqui) e depois numa das Revistas de Literatura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul.
Naquele tempo a Atria Fibrilini ainda não havia se instalado definitivamente no meu coração.

02/09/2007

Depois que todos foram...

Fernando Pessoa
[643] – 26-7-1930



DEPOIS que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e a minha agonia.

A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.

Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.

Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não ser.



Fernando Pessoa
Poesias Coligidas – Inéditas (1919-1935)
in Fernando Pessoa
Obra Poética, página 524,
Companhia José Aguilar Editora (1974)