06/08/2008

ASSÉDIO

Alberto Cohen


A poesia espreita o solitário,
quieto no bar, num canto, pela rua,
reconhecível pelo mesmo olhar
dos que esperam sem encontro marcado.
É num arroubo que ela se oferece,
imprevisível, dona, dissoluta,
nas carícias rimadas e medidas
negaceia e se dá, jamais inteira.
Depois, sacode a vasta cabeleira,
recolhe pelo chão os seus mistérios,
e parte, insatisfeita como sempre,
atirando metáforas na cama.


Alberto Cohen
Poemas sem Dono
II Prêmio Literário Livraria Asabeça - 2003
página 17.

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02/08/2008

OIGALÊ, FRIO DESGRANIDO!

Brrrr! Como faz frio em Porto Alegre hoje. Está úmido, sopra um ventinho fraco mas não me atrevo a chamá-lo de brisa. A brisa é mais aconchegante e apropriada ao calor. Brisa gelada é um contra-senso. Definitivamente não combina. É vento, fraco no sopro mas forte no efeito enregelante. O céu está forrado e não vou estranhar se, de madrugada, ao espiar pela janela, ver flocos de neve.

Os gaudérios, charlando nos galpões do pampa afora, diriam que esse frio é de renguear cusco. Traduzindo: o frio é tão forte que faz até cachorro mancar. Charlar é jogar conversa fora nas rodas de chimarrão, ao redor de um fogo-de-chão.

Fogo-de-chão ou fogão é um grande fogo que se prende em lenha grossa no chão batido dos ranchos para preparar mate e churrasco e no inverno para aquecer a charla. Prender fogo é acender o fogo mesmo.

Os gaúchos modernos diriam, numa linguagem mais compreensível, que hoje está mais frio do que abraço de sogro.

Aureliano de Figueiredo Pinto, um poeta gaudério que em vários poemas aborda o frio, inicia um deles (Recuerdos de Tapejara, depois musicado por Noel Guarany) assim:

Já nem sei porque é que Deus
Tanto ao herege e ao fiel,
Nos manda um frio tão cruel,
Vento e neve em redoblona,
Que a perna velha quebrada
E esta costela emendada
Se param mais delicadas
Do que teclas de cordeona
.

Em seguida usa o verso que usei como título do post. Redoblona significa, aqui, ao mesmo tempo. O se param é se tornam e isto parece óbvio. Oigalê é uma interjeição que exprime admiração.

Li, há pouco, que o Jô Soares vai entrevistar Roberto Jefferson. Falta de imaginação! A atração – como sempre – vai ser o Jô. O Jefferson todo mundo sabe o que vai dizer.

Não posso deixar de relacionar a gargalhada que ele deu ao final de suas declarações à CPI dos Correios, ao narrar a origem de seu olho roxo, com o frio. Aquela gargalhada gélida até hoje ecoa pelos corredores e esquinas do Congresso e, dizem, até do Palácio da Alvorada. Ela retumba no peito de alguns parlamentares como a risada da bruxa malvada dos desenhos animados no coração temeroso das crianças.

Ouvi, agora, na Band, que uma brasileira está envolvida num esquema de fraude na Volkswagen, na Alemanha. Ela é amante de um dos diretores. Estamos exportando corrupção. Deve ser por isto que nosso PIB está aumentando...

Noutro poema sobre o frio (Aqui estou, senhor Inverno!), diz o mesmo poeta:

Sei que vens vindo... Não me amedrontas!
Fiz provisões de sábias quietudes
e de silêncios – que prevenido!
Vão-se-me os olhos nas folhas tontas
como simbólicos ataúdes
rolando ao nada do teu olvido
.

Estou assim hoje. Alternando poesia com política. Uma mistura que só é menos incongruente que eu. Deve ser o frio!

Mas já tomei minha decisão. Tenho uma televisão colocada num vão de parede exatamente sobre uma lareira. Já prendi fogo na lareira (acima). Vou ligar a televisão e, como sempre, ficar apreciando o fogo.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 05/07/2005.

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