22/02/2008

SOBRE LULAS E SARDINHAS

Missão difícil, hoje. Não sei mergulhar e sou gordo, embora dentro da água pese menos, em proporção à quantidade que desloco e desloco bastante. Não sei nadar, mas não importa. A preocupação é manter o leitor informado. Aluguei um barco, tomei um Dramin – enjôo até em camas d’água – e investi uns cinco metros mar adentro para entrevistar uma sardinha.

Por quê? Porque o Governo criou o
Comitê de Gestão do Uso Sustentável da Sardinha Brasileira. Tive sorte. Encontrei um cardume e uma delas concordou em ser entrevistada:

– Seu nome é Sardinella Brasiliensis, certo?

– Certo uma ova! – ela era mal educada – É Sardinha mesmo e não vem paparicar. Vocês querem é nos comer.

– Como é que a senhora se sente com essa medida do Governo?

– Que pergunta certeira! É difícil um repórter com tanta criatividade. Me sinto uma bosta. O que o senhor sentiria se o obrigassem a ter quinze filhas para depois comê-las? Aqui é pior: querem aumentar o nosso número para poder nos matar em maior quantidade, nos espremer naquelas latinhas e alimentar vocês.

– É! Mas a senhora vai contribuir com o Fome Zero.

– Eu? Ah, ah, ah! Tás tonto? Prá matar a fome tem que comer algo mais substancioso. Fica três dias comendo sardinha! Dá uma caganeira federal. Troca de embuchamento, na certa, depois. Isso é aí é perseguição.

– Como assim?

– Essa, contra nós. Vem de 1556 quando um bispo naufragou nas costas do Ceará, se disfarçou de sardinha e foi comido pelos índios. Desde então nos perseguem e não se contentam em comer: nos socam em presídios superlotados, hermeticamente fechados e a Sociedade Protetora dos Animais não age. Nós não somos vistos. Se fizessem isto com gatos você iria ver o berreiro. Se o Governo liberasse caçar gatos para os tamborins dos carnavalescos ia ser uma grita só. Mas nós vivemos longe dos olhos dos que gostam de bichos. Você já viu sardinha em aquário?

– Não, nunca.

– Porque não existe. Mas em lata sim. Aliás, pelo seu olhar senti que ontem você comeu alguma. Seu sem-vergonha!

– É que vocês têm ômega-3 e fazem bem ao coração.

– Vai nessa! É jogada dos industriais para que nos consumam mais. Sardinha ao óleo com ômega-3? Ah, ah, ah! Só vocês pra acreditarem. Você não navega na Internet? Não leu que a baleia só bebe água, pratica natação, se alimenta de peixes e é gorda? Mas me diga. Quando é que o comitê vai começar a atuar?

– Após o Carnaval.

– Só podia! Tudo no Brasil é depois do Carnaval. Por isto vivem pegando no nosso rabo. Não têm coisa melhor prá fazer?

– Eu fiz o que podia. Sou aposentado. Trabalho de graça porque quero saber da opinião de vocês, que vão ser o objeto de estudo do comitê. Ao que a senhora atribui essa medida?

– Isso é coisa de lula. As lulas são complexadas, feias, cheias de tentáculos, pegajosas, e suas faculdades nutritivas são mínimas. Para se preservar inventam coisas contra nós, que somos limpas e elegantes. As lulas defecam arroxeado, poluem os mares e não se conformam com a nossa beleza. E no mar, nosso maior predador é o tubarão. Lula gosta de fazer média com tubarões. Pronto, falei tudo.

– Que tal uma choradinha para impressionar os telespectadores? Isto pega bem. Talvez ajude a sua causa. Vou vender a matéria para a televisão.

– Chorar dentro d’água? Quem vai ver? Eu sou sardinha e não lula. Lula é que chora por qualquer coisinha. Posso dar uma cagada...

– Não, não, está bom. Mas por que a pressa?

– Vou terminar minha fantasia de Carnaval. Afinal, depois não vou saber onde me meter, com esse comitê aí.

– Então só mais uma perguntinha: qual é a fantasia?

– Eu vou de Lula Deslumbrada e Esvoaçante.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 22/01/2005.
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09/02/2008

A IDIOTICE AUTOMATIZADA

Creio que a maioria dos mortais não são detentores de privilégios tais que lhes permitam acessar diretamente os serviços de atendimento ao cliente de seus provedores ou companhia telefônica. É só através dos repugnantes 0800.

A maioria certamente passa pelas mesmas dificuldades que eu quando pretende reclamar sobre irregularidade de transmissão ou queda de linha ou interrupção de conexão. Até há alguns meses essas ligações ocorriam, na melhor das hipóteses, dia sim dia não. Mas há uns três meses não surgiu mais nenhum problema e estou muito preocupado com isto. A experiência recente demonstra que após o recuo do mar pode vir um tsunâmi.

Os 0800 têm o poder de congestionar meus olhos, contorcer minha boca, virar meu nariz para cima e crispar meus músculos. Meus pêlos e cabelos crescem uns dez centímetros. Na lua-cheia, um pouco mais. Para não me expor aos familiares, sempre que vou me transformar em lobisomem me tranco no escritório.

Você disca o número, vem a musiquinha. Na Brasil Telecom uma vez era aquela do lig-lig. Pelo menos era personalizada. Beethoven, se soubesse que a Pour Elise seria usada como música de espera no telefone a teria renegado em vida (há gente que diz que não foi ele que a compôs).

Depois o menu de opções. Se você já decorou a opção que deseja e quiser antecipar o clique, não adianta. O menu não é à prova de idiotas. Em seguida mais música, mensagens sucessivas de “nossos assistentes estão todos ocupados no momento. Aguarde. Dentro de instantes você será atendido”. E mais música e propaganda sobre a facilidade de adquirir o serviço banda larga que você já tem. Até chegar ao atendimento você perdeu uns dez minutos e muito de sua paciência.

Não sei até que ponto isto é economicamente viável para a BT, mas isto é problema deles. Se for nosso, impossível saber. Em tese, o usuário não deveria pagar nada, mas como na conta não vem o extrato de suas ligações você nunca vai tomar conhecimento.

Eu passei por uma experiência circulante, kafkiana, que talvez muitos já passaram. Era usuário do Terra, adquiri um modem da empresa (Terra Networks S.A.) e quase um ano depois ele pifou. Disquei para o 0800 da Brasil Telecom, pois o problema era de conexão. Um técnico da empresa diagnosticou que o modem entrara em loop. O assunto era com o fabricante.

Como estava na garantia procurei solução através do atendimento ao cliente Terra, que vendera o aparelho. Disquei o telefone exclusivo para os usuários de Porto Alegre, o 32871000.

Começaram as várias opções digitais, mas foi difícil encontrar a certa. A gente ingressa no jogo do empurra-empurra virtual sem sair do lugar. Mas depois de ter explicado o problema para cada setor para o qual era encaminhado caí, até que enfim, nas mãos de uma pessoa com alma. Uma voz menos desumana ouviu meu problema e transferiu para o setor competente. Só que lá não era o setor competente. A boa alma demonstrara boa vontade mas se equivocou.

Caí, então, no setor financeiro que só atendia a reclamações relativas ao pagamento do modem. “Mas vou lhe passar para a área técnica”. Quis dizer que já tinha passado por lá mas não deu tempo. Novas explicações. Mas, finalmente, o setor de vendas solucionaria o problema. E me transferiram para lá. Então a mensagem:

“Você é assinante de Porto Alegre. Este telefone é exclusivo para usuários de outras regiões. Por favor ligue 32871000”.

Além do modem, eu entrara num loop também.

Fiz mais umas quatro ou cinco tentativas. Para preservar a garganta gravei o histórico do problema e quando o atendente solicitava que eu o relatasse eu ligava o gravador. Mas nada de solução. Os e-mails que enviei, inclusive ao fabricante, também não surtiram efeito.

Adquiri outro modem, mais barato, que está ativo até hoje, e ajuizei uma ação contra o Terra Networks no Juizado Especial Cível de Porto Alegre (antigo Pequenas Causas) e tudo se resolveu em acordo: me ressarciram dos valores pagos – inclusive despesas de remessa – e devolvi o modem.

Acho que essa é a melhor maneira de se lutar a guerra contra os 0800.




Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 26/01/2005.
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03/02/2008

SÁBADO NA EMERGÊNCIA

A sesta do sábado foi interrompida por dores lancinantes na parte baixa das costas, onde elas começam a perder o nome, lado direito. Urrava de dor. Nunca sentira dor tão forte.

– Ainda não, ainda não! – sussurrou a Ieda, meio dormindo, mas logo acordou de vez e acendeu a luz, assustada.

Consegui sentar e me vi no espelho, branco e suado, com náuseas. Direto para a Emergência. Cheguei às 16,30 horas, fiz o registro, a triagem... A enfermeira:

– Senta na cadeirinha e vamos tirar a sua pressãozinha.

Detesto esta prática que está se disseminando com rapidez em qualquer lugar em que a gente vai para ser atendido: o uso piedoso de diminutivos. Só porque estou dodói e choramingas não significa que voltei a ser criança. Olhei-a com olhos bovinos e inexpressivos mas ela não entendeu.

– Quanto vai demorar o atendimento?

De 40 a 50 minutinhos. A Ieda foi à cabeleireira, pedicure e manicure, voltou e eu ainda não fora atendido. Só às 17,45 fui chamado... Isto num dos mais conceituados hospitais de Porto Alegre, das irmãs de caridade que não fazem caridade nem aceitam pobres, só quem paga.

Enquanto esperava chegou um senhor de sapatos e cinto brancos com uma moça jovem demais para ser sua mulher e velha demais para ser sua filha. A moça fez a ficha, ele foi para os fundos, voltou, levou a moça e foram atendidos. Sapatos e cinto brancos influenciam positivamente o atendimento de urgência dos hospitais. Vou comprar um jogo para mim.

A médica me examinou e adiantou que poderia ser coluna ou cólica renal. Determinou exames para “cercar de todos os lados”. Pensei se não deveria ter levado uma galinha preta. Receitou um analgésico, pediu exame de urina e uma ecografia das vias urinárias. A enfermeira:

– Vamos tomar o comprimidinho.

Quando o vi, fiquei contente por não ser um supositório.

Coleta de urina: peguei o potinho no laboratório. O banheiro é na entrada da emergência. É preciso atravessar duas alas: a dos que esperam atendimento médico – todos meio caidões – e a dos que esperam os que esperam atendimento – mais caidões ainda.

A boca do potinho não era das maiores. Ainda vou inventar e patentear uma mira peniana e enriquecer. Mas as mulheres devem sofrer mais.

Então a volta triunfal. Se na ida dera para disfarçar o potinho, agora era impossível. Ele estava cheio e ficaria feio sair urinando, ainda que por vias não ortodoxas, pelo caminho.

Resolvi pregar uma peça na atendente do laboratório. Coletei “o material” lavei as mãos mas não as sequei. Com as mãos molhadas estendi-lhe o invólucro:

– A médica disse que era para entregar nas suas mãos.

Era uma negra gorda, simpática, que me olhou e sorriu entendendo tudo. Pediu-me que aguardasse, vestiu luvas cirúrgicas e pegou o pote. Eu que fiquei sem jeito.

A ecografia era para as 18,40. Surpreendentemente, às 18,39 fui chamado para o exame. Depois voltei à sala de espera. A médica descartou qualquer problema renal. Ainda bem.

Suspeita de hérnia de cd. É muito atualizada, esta médica. Agora, nesta semana, devo procurar meu ortopedista. Espero que ele faça algum milagre. Afinal, se chama Messias.

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Publicada originalmente no blogue Jus Sperniandi, no sábado 05/12/2004.

02/02/2008

ESTRAVAGARIO - Neruda

Pablo Neruda





Estación inmóvil

Quiero no saber ni soñar.
Quién puede enseñarme a no ser,
a vivir sin seguir viviendo?

Como continúa el agua?
Cuál es el cielo de las piedras?

Inmóvil, hasta que detengan
las migraciones su apogeo
y luego vuelen con sus flechas
hacia el archipiélago frio.

Inmóvil, con secreta vida
como una ciudad subterránea
para que resbalen los días
como gotas inabarcables:
nada se gasta ni se muere
hasta nuestra resurrección,
hasta regresar con los pasos
de la primavera enterrada,
de lo que yacía perdido,
inacabablemente inmóvil
y que ahora sube desde no ser
a ser una rama florida.
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Revista ARGUMENTO n.º 2, novembro/1973, página 125.
Ilustração: Elifas Andreato-73.
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