04/09/2007

O SORRISO DE MINHA MÃE

Uma das evidências mais claras de nosso processo de envelhecimento é a coleção de efemérides que vamos acumulando vida afora. A primeira — creio — é a do próprio aniversário.

Quanto mais velho, mais datas arquivadas: nascimentos de filhos a netos e bisnetos (estes para uns poucos privilegiados), mortes de avós, pais e parentes, acontecimentos marcantes, aniversários de irmãos, cunhados, sobrinhos, mortes extemporâneas de amigos, primeiro sutiã (geralmente para as moças, mas há exceções), posses em cargos, etc. Vão se acumulando e às vezes passam de mero referencial a pontos de influência, negativos ou positivos, conforme a natureza.

No dia 05 de dezembro de 1982, quando fui acometido a primeira vez por uma crise de arritmia cardíaca, eu me apavorei. Supus que ia morrer. Até pensei em fazer o meu testamento mas lembrei que era juiz iniciante e não tinha nada ainda que pudesse ser transmitido aos meus herdeiros e desisti.

O tempo passou e fui resistindo, sofrendo periodicamente as visitas dessa coisa que considero minha amante indesejável, a
Átria Fibrilini. No começo, a cada crise o mesmo sentimento de horror. Sentir o coração batendo forte, aos solavancos, desequilibrado, sem se poder identificar o ritmo para acompanhar a dança, com a impressão de que a qualquer momento poderá vir um breque definitivo, é algo assustador. Afinal, só temos um coração e ele parar lá se foi este blog, por exemplo.

Mas a gente se adapta ao desconforto. Quando descobri que não sou eterno e tomei consciência de que não adianta forçar os olhos abertos para se manter vivo, o medo da morte foi desaparecendo. Hoje a encaro com relativa naturalidade. Aliás, muito relativa. Ela virá um dia. É claro que não gostaria que fosse hoje. Nem amanhã. Pode demorar pelo menos uns trinta anos, desde que eu não fique gagá, jogado no fundo de uma cama, usando fraldões e incomodando meus filhos ou a Ieda. Se com mais trinta eu ainda me sentir bem, peço um adicional.

Ainda não me preocupei em fazer meu testamento porque ainda não tenho muita coisa a transmitir aos meus filhos. Os cds e os dvds de música clássica vão para o Francisco e os dvds de filmes para a Clarissa. Desde que eles paguem as dívidas pendentes e zelem pela Ieda se intrometendo na vida dela apenas o absolutamente necessário.

Porque escrever sobre a morte, hoje, sábado? Efeméride. Faz 32 anos que minha mãe faleceu. Desta data nunca esqueço. Ela tinha 42 anos, apenas, e não conheceu netos. Só viu um filho casado — eu — porque casei cedo, com 19 anos (sim, com a Ieda). Aliás, nosso casamento foi sugerido por ela logo que passamos no vestibular porque teríamos que sair de Taió para estudar em Florianópolis.

Não lembro mais dela com perfeição. Fotos, para isto, não valem. Guardo apenas a imagem de um sorriso triste e conformado. Sabedora de que estava gravemente enferma proibiu os médicos de falarem a respeito aos familiares para que meu pai, que era cardíaco, não soubesse. Ele não podia se incomodar. Ela se sacrificou por ele.

Só depois fomos entender porque aquele sorriso era tão enigmaticamente espiritual e profundo. Nem Leonardo da Vinci seria capaz de retratá-lo.




Crônica publicada em 23/10/2004, no blog Jus Sperniandi (aqui) e depois numa das Revistas de Literatura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul.
Naquele tempo a Atria Fibrilini ainda não havia se instalado definitivamente no meu coração.

02/09/2007

Depois que todos foram...

Fernando Pessoa
[643] – 26-7-1930



DEPOIS que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e a minha agonia.

A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.

Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.

Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não ser.



Fernando Pessoa
Poesias Coligidas – Inéditas (1919-1935)
in Fernando Pessoa
Obra Poética, página 524,
Companhia José Aguilar Editora (1974)