05/04/2008

Martha Argerich e Nelson Freire


Hoje é dia de eleições e preparei um texto a respeito. Deixo para as próximas, daqui a dois anos. Nada vai mudar mesmo e ele vai estar atualizadíssimo.

Vou me ocupar de coisas superiores, transcendentais, que acontecem longe das misérias morais da humanidade, no mundo seleto da Arte bem interpretada. 

Porque o que vi e ouvi sexta à noite talvez não tenha satisfação de assistir nunca mais.

Martha Argerich e Nelson Freire, no Teatro do Sesi, numa exibição primorosa: todas as peças para dois pianos ou a quatro mãos. Eu supunha que eles se revezariam em algum solo, mas não. Até nos bis, que foram SEIS, a interpretação foi conjunta.

Soube que Freire nasceu no dia 18 de outubro de 1944. Meu filho, que estuda Música com especialização em piano na UFRGS, nasceu exatamente quarenta anos depois... Outra curiosidade: o primeiro recital que meu filho “assistiu” foi em 31/08/1984, ainda na barriga da Ieda, em Ibirubá, próximo a Espumoso. O pianista era Miguel Proença, que hoje é o competente Diretor Artístico do Teatro do Sesi e sem cujo empenho não teríamos oportunidade de ver o espetáculo de ontem. Espero que estas coincidências sejam de bom augúrio.

Mas voltando ao recital: eu vi dois moleques. Cada um tinha umas quatro ou cinco mãos e em cada mão uns trinta dedos. Os dedos dançavam nas teclas e os sons que brotavam eram precisamente límpidos e expressivos.

O moleque mais novo tinha cabelos brancos. Alguma incongruência na aparência tímida e calada, no modo de tocar mais comedido. Difícil crer que daquela timidez pudesse emergir tanta exuberância. Mas as mãos dele parecem ter vida própria e não são tímidas quando tocam nas teclas do piano. Ou há alguma transformação especial na hora de tocar, não sei.

A moleca era ainda mais nova que o mais novo. Altiva e de uma beleza exótica, diz um jornal de São Paulo que ela não revela a idade. Acho que nasceu no tempo de Bach, conheceu Mozart, foi contemporânea de Clara Schumann e de Liszt, passou por Rubinstein e Benedetti e outros ícones e sobrevive renascendo a cada dia que se encontra com um piano. Não tem idade.

Ambos pareciam encantados com os dois brinquedos grandes que tinham à sua frente e que dominavam com perfeição, mesmo sem os comandos elétricos ou eletrônicos que a maioria dos brinquedos de hoje têm. Tocavam como dois cúmplices amantes da Arte. Às vezes se olhavam e sorriam. Eles sabiam porque, a gente só desconfiava.

Parece que ensaiaram durante uns trezentos anos. Só numa coisa não houve sincronia, de jeito nenhum: no final de cada peça, ao fazerem a reverência de agradecimento ao público, um sempre se inclinava antes. Quando um estava voltando à postura normal o outro estava se inclinando. Nenhuma vez se acertaram. Mas precisava?

No final, após o primeiro bis, eles passaram a caminhar com cuidado para não pisar nas rosas que os espectadores jogaram no palco. Mas, mesmo que pisassem, as flores não sentiriam nem se machucariam.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 02/10/2004.
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