26/04/2008

JÁ FUI RADIALISTA...

Preciso visitar o padre Guerino, Diretor das Faculdades Dom Bosco de Porto Alegre, para conversar, lembrar os velhos tempos em que ele era o Conselheiro do colégio em Rio do Sul e eu era um interno nem sempre muito disciplinado. E para saber o paradeiro de muitos ex-colegas e professores, como o clérigo Luiz, que me incutiu o gosto pela música clássica.

No Colégio Dom Bosco participei da fanfarra, tocando clarim ou corneta. Foi o único instrumento que consegui tocar até hoje. Talvez porque, sem pistões, ele só toca quatro notas.

Eu pedi a meu pai que me comprasse uma sanfona, quando era mais jovem, mas ele disse que isto era coisa de vagabundo, que eu precisava estudar para ser alguma coisa na vida, não um mecânico como ele que “dava duro dia e noite” numa vida sacrificada e penosa. Na verdade, acho que foi pretexto por falta de dinheiro. Mas o motivo não importa. Meu maior receio é o de que o mundo tenha perdido um grande virtuose...

Talvez por isto dei para meu filho quando pequeno uma sanfona e flautas doces, além de uma bateria que ele só podia tocar quando eu não estava em casa. Mais tarde, dois pianos. Quando quis estudar música o incentivei e este ano ele completa sua graduação em Piano na UFRGS.

Com 12 anos, nas férias colegiais, eu sintonizava a Rádio Eldorado, de São Paulo, em ondas curtas, todas as noites, depois de A Voz do Brasil. Aos domingos reproduziam uma ópera completa e a primeira que ouvi foi A Flauta Mágica, de Mozart .

Ruídos, chiados e som desaparecendo e voltando, tudo isto integrava o sacrifício de quem queria ouvir rádio à noite, na Taió cercada de morros em que nem antenas altas resolviam. Ondas curtas nunca foram confiáveis. Descargas mais fortes anunciavam chuvas e trovoadas e essa interferência sempre foi a nossa melhor previsão do tempo.

Meus colegas brincavam na oficina mecânica de meu pai, contígua à residência, transformando-a em uma enorme cidade do Velho Oeste. Não entendiam como eu podia ficar com o ouvido grudado no rádio, marca Bandeirante, grande e potente, dotado de um olho mágico para afinar a sintonia, o que não adiantava muito.

A oficina era enorme e tinha fortes atrativos. Estive lá depois de adulto e ela, embora apresente as mesmas dimensões, na verdade encolheu. O que naquele tempo representava obstáculos intransponíveis são hoje meros degraus. Os vãos, verdadeiros abismos profundos e amedrontadores, são frestas em que não caio nem que queira. No máximo ficaria entalado nas panturrilhas.

O prefixo do programa de música lírica da Eldorado era uma música melodiosa e suave que mais tarde descobri ser o segundo movimento da Sinfonia Clássica, de Prokofiev. Mais tarde ainda usei esse mesmo prefixo num programa de música erudita que apresentei na Rádio Educadora, de Taió, no final dos anos 70, por uns alguns meses. Aos domingos, ao meio-dia, eu apresentava ainda um programa de MPB.

Sim, eu fui radialista. Graças à visão de um idealista, Marcos Hosang, que lutou contra interesses políticos contrários e má vontade de outros durante 22 anos de sua vida para dotar Taió de uma rádio. Eu o auxiliei, cedendo meu escritório para redigir e elaborar documentos necessários ao processo de concessão, mediante o compromisso de que a rádio não se dedicasse, então, apenas a músicas sertanejas e a futilidades.

Nenhum dos meus programas era páreo para o “Fogo na Roupa”, um locutor caipira que escolhera esse nome artístico e que todas as manhãs apresentava um programa de música sertaneja. Nem para o Paulo Marques que à noite, com uma voz suave e lamentosa, apresentava um programa de músicas lânguidas e mais tristes do que o canto de uma sabiá doente, entremeadas de poemas que recitava.

O meu programa de música clássica não fez muito sucesso. Mas tenho certeza de que pelo menos duas velhinhas alemãs ouviam. Uma delas era a mãe do Marcos...




Crônica publicada originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 31/03/2005.
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19/04/2008

Utilizando o Transporte Coletivo

Ontem tive uma experiência que só não posso qualificar de dignificante por um detalhe. Entrei num ônibus urbano, ainda que para um pequeno trajeto, coisa que há muito tempo não fazia. Aposentado não precisa sair muito de casa.

O coletivo, da linha Juca Batista, é ótimo. Certas comodidades fizeram esquecer meu semi-usado: ar condicionado, bancos confortáveis e, principalmente, o responsável pela direção era outro...

Defronte aos Supermercados Zaffari uma bela voz feminina confirmou pelo serviço de som: “agora você está passando defronte o Supermercado Zaffari da Cavalhada”.

De vez em quando a mesma voz esclarecia: “você está viajando na linha Juca Batista, sentido bairro-centro”. Que bom! Deu vontade de ir até o Centro. Assim fica difícil a gente se perder.

Apesar da sensação de você estar assistindo a um jogo de futebol em que o narrador narra aquilo que você está vendo e muitas vezes você vê mais do que ele (outras ele narra esquecendo que você está vendo e mente descaradamente), a voz da moça era muito mais bonita.

Ela não se esgoelava como o Luciano do Valle, por exemplo, a cada parada. Nem repetia “desce, desce, desce” como o Silvio Luiz que a cada vez que alguém faz um gol fica berrando “foi, foi, foi, foi eeeeeeeeele”...

Uma das conclusões dessa viagem, que não foi além de dois quilômetros, é a de que os locutores de futebol, sem exceção, são excessivamente chatos.

Havia poesia nos ônibus, uma mais ou menos assim: “Dia lindo, sol rachando, não sei se salto ou saio voando”.

Se você for assaltado o será num ambiente VIP, de alta categoria.

Estive fazendo exames médicos, esses dias, e posso afirmar que a higiene do ônibus que peguei era melhor do que a da sala de espera do hospital. Acho que, em caso de alguma catástrofe se abater sobre Porto Alegre esses ônibus podem ser usados como centros cirúrgicos sem problemas de assepsia. Apenas seriam necessárias algumas adaptações.

As pessoas ao meu lado eram pessoas humildes. Muitas – imaginei – não tinham carro nem nunca poderiam ter. Mas gozavam do mesmo conforto de outros que, como eu, têm carros mas preferem não usá-los no trânsito de Porto Alegre ou apenas esporadicamente o utilizam.

Finalmente – filosofei – alguma coisa pública reúne ricos e pobres, negros e brancos, crianças e adultos, homens e mulheres, em condições de igualdade, num sistema absolutamente socialista em que todos são iguais. Absolutamente iguais.

Mas não. Alguma coisa destoava na minha filosofada. Alguma coisa estava errada e não se tratava apenas de sintonia fina, mas de programação mesmo.

O ônibus é espaçoso, grande, bonito, confortável, com ar condicionado, bancos estofados, espaço para gordo circular sem maior problema, catraca larga, motorista engravatado...

Mas até aqui há alguma coisa que impede o florescimento integral do socialismo que inicialmente vislumbrei, com satisfação.

Infelizmente, só uns poucos, que entram primeiro, têm o privilégio de viajar sentados. A maioria ainda tem que ficar de pé, se espremendo, se empurrando, sofrendo e lutando por um espaço, comprometendo a coluna, porque a linha é mal servida...

Mas isto – devem pensar os administradores – é apenas um detalhe.




Publicado originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em
02/03/2005.
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17/04/2008

HOMENAGEM A MIM MESMO

Demorei um tempão para te conquistar. Foram tantas coisas que disse, foi tanto cortejo que quando tu vieste – talvez fosse melhor dizer caíste? – nem acreditei. Fiquei surpreso, embora não devesse. Senti-me leve e tive vontade de voar.

Mas seria ridículo. O que pensariam de mim os que me vissem borboleteando próximo ao rio Itajaí, numa pracinha que não existia ainda, só de contentamento? Sempre fui muito suscetível ao riso dos outros.

Depois, eu tivera, um pouco antes uma triste experiência, lembra? De certa forma, talvez meu Inconsciente estava prevendo que aquele dia seria o dia do “sim”.

Por isto antes, quando debaixo de chuva descíamos a escada do Artesanato eu tentei voar. Sim, eu tentei voar e o resultado foi desastroso: ao levantar uma perna para alçar vôo a outra escorregou, perdi o equilíbrio e desci quatorze degraus de bunda. Tuc, tuc, tuc, tuc, tuc, até embaixo.

Ainda bem que tu seguravas o guarda-chuva e não te molhaste. Eu estava de capa, uma daquelas de náilon que depois de um tempo esquentavam demais e fediam porque não deixavam a gente transpirar, embora tivessem uma providencial abertura nos sovacos. Graças a ela não pudeste ver que, na minha arremetida escada abaixo, molhei a bunda.

Então, quando tu deste o teu “sim”, pouco depois, já na frente daquela vitrine fechada, eu estava com a bunda molhada. Mas já te falei isto antes, acredito que, como é meu costume, muitas vezes, pois afinal se passaram 39 anos, cinco meses e vinte e nove dias ...

Depois cheguei a imaginar se aquela caída de bunda não te fez ficar condoída e influenciou positivamente no teu “sim”. Podes ter certeza, eu cairia mais umas duzentas vezes, se fosse preciso.

Depois foi surpresa atrás de surpresa. Como tu eras diferente das outras gurias com quem eu namoriscara. Tu eras – aliás, sempre foste – imune a fofocas, a futilidades, a conversas alheias. Por isto, na sala de aula, ninguém se aproximava muito de ti. Tu parecias uma muralha intransponível ou, pelo menos, difícil. Mas não. Tu tinhas carinhos guardados, risadas escondidas que se foram revelando e me envolvendo e até hoje sou inebriado por elas. E aquela irrepreensível malícia por detrás dos olhos pretos e sempre acesos.

E os outros, mais tarde, como te qualificaram com palavras bonitas. Minha avó dizia que eras santa, mas ela já estava meio caduca e isto não vale. Não sei se ela ironizava ou dizia a verdade nem ninguém nunca vai saber.

Uma colega, depois, disse que tu eras muito meiga. É verdade. Outra te qualificou de esposa-padrão... Mais recentemente alguém afirmou que tu és uma criatura doce, como as trufas da Cirônia. Tu, particularmente, nunca gostaste que te vissem assim. Eu sempre gostei, não muito desse esposa-padrão, aí, que pode significar muita coisa, inclusive e graças a Deus, o oposto do que és.

Claro, eu seria mentiroso se não dissesse que de vez em quando tu deste as tuas rabanadas, durante esse tempo todo. Mas foram daquelas rabanadas de Natal que sempre guardavam um quê de doçura. Pensando bem, algumas não foram tão doces assim!

Tu nunca foste convencida ou esnobe. Sempre foste os pés no chão da nossa relação e, depois, da família. Hoje não se comemora nenhuma efeméride na nossa vida. Por isto sei que não estás considerando estas palavras como dirigidas a ti. Até porque já pediste para não falar mais de ti aqui no blog, para que eu não pareça brega.

Então, essas palavras são para mim, apenas. Sou meio brega mesmo. E, afinal, quem caiu da escada e molhou a bunda só para te conquistar? Então mereço esta homenagem que me faço.

Porque, podes acreditar, guria: é muito bom ser eu!

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12/04/2008

Interpretando a Lei

Num dos últimos textos brinquei sobre a jurisprudência como repositório de julgados em que o advogado poderá buscar apoio em favor da tese que abraçar num processo, mesmo que em outro tivesse que usar de tese contrária, também respaldada na jurisprudência. Disse então que a interpretação gramatical da lei é a pior de todas

As multas aplicadas por pardais e caetanos muitas vezes pegam os condutores que apenas momentaneamente estão infringindo uma regra de trânsito, sem perigo nenhum à incolumidade pública.

Eu, por exemplo, sofri uma multa em julho de 2001 porque trafegava a 48 km por hora na frente de um colégio. Acontece que era sábado à tarde, no período de férias, não havia ninguém no colégio e eu ia sozinho por uma rua pouco movimentada... Mesmo assim, contra os princípios da lógica e do bom senso, o pardal estava funcionando para flagrar motoristas distraídos que hipoteticamente poderiam atropelar alunos de uma escola em férias num sábado à tarde.

Os pardais foram introduzidos em Porto Alegre pelo PT. Entende-se: a maioria de seus membros sofreu perseguições na época da Ditadura e não tem muita simpatia por militares. Por isto substituíram a polícia militar que atuava no trânsito por pardais, lombadas, estreitamento de pistas, rótulas mal feitas e outras armadilhas. Eu, por via das dúvidas, cada vez que passo por um pardal ou por uma lombada eletrônica bato uma reverente continência. Nunca se sabe.

Em Porto Alegre a administração popular criou também um exército de agentes municipais de trânsito, chamados de azuizinhos pela cor do uniforme que usam. São encarregados de, num acidente de trânsito sem vítima, fazer levantamentos técnicos e atrapalhar o tráfego no local. Já vi acidentes com 4 ou 5 azuizinhos borboleteando em volta dos veículos sinistrados como baratas tontas, nenhum se dignando a orientar o trânsito daqueles não envolvidos e cuja pretensão era simplesmente chegar em casa.

Mas no fundo, pardais e policiais militares (aqui eles são chamados de brigadianos) interpretam a lei mecanicamente, ou eletronicamente, de modo que não adianta discutir. Quando fui multado por aquele pardal logo percebi, parei o carro e tentei argumentar com ele, mas ele permaneceu impassível. Dono absoluto da verdade, olhando de cima prá baixo, fez de que conta que não me ouvia.

Fui embora quando começou a juntar gente e ouvi alguém dizer que ia chamar uma ambulância do Hospital São Pedro (o manicômio daqui). Acho que era para o pardal, mas não quis ficar para comprovar.

Os brigadianos faziam o mesmo. Há muito tempo, há muito tempo mesmo, quando ainda havia brigadianos nas ruas, num domingo, fomos almoçar no centro e estacionei o carro, sabiamente orientado por um flanelinha, num ponto de ônibus executivo. Esses microônibus não circulam nos finais de semana e o meu carro, ali, não atrapalharia nada nem ninguém.

Quando saí do restaurante um brigadiano estava aplicando uma multa. Expliquei a situação, mas ele apontava a placa que indicava a parada dos ônibus especiais e indagava:

– O senhor está vendo a placa aí? Aqui é um ponto-de-ônibus e é proibido estacionar.

Não adiantou argumentar. Apelei para o bom senso, para a ausência de prejuízo de minha atitude (estava até facilitando o acesso de outros veículos à praça), mas cada vez que eu terminava minha pregação ele apontava a placa e dizia:

– O senhor está vendo a placa aí? Aqui é um ponto-de-ônibus e é proibido estacionar.

Esta é a interpretação brigadiana. O bom senso, o lógico, o óbvio sucumbem diante de um símbolo pintado numa placa. É como você ser multado por ter estacionado defronte à própria garagem e tentar explicar isto ao guarda... O flanelinha foi mais sábio. Bem que o procurei para me auxiliar a convencer o guarda, mas ele, demonstrando toda sua sabedoria, tinha se afastado solertemente do local.

Não insisti com o guarda: uma discussão acadêmica seria inútil. Além disto, na sua bitolada visão, ele estava certo. Eu era o errado por acreditar na lógica e no bom senso.

Por isto todos devem ser complacentes com os juízes e não baixarem a lenha quando dizem que a água é vinho e que vinho é água. Eles também fazem milagres interpretativos.



Texto publicado originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 14/03/2005,
sob o título A INTERPRETAÇÃO BRIGADIANA (OU GRAMATICAL) DA LEI.
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10/04/2008

Assim Virei Carnívoro

Eu converso com as flores. Aliás, já conversei. Pelo menos uma delas já conversou comigo. Nada demais. Jayme Caetano Braun dialogava com as estrelas e ele mesmo disse, assim:

“Quando as estrelas se acendem
Eu converso com as estrelas
Porque aprendi a compreendê-las
E elas também me compreendem”.

Então não tem nada demais eu conversar com flores, que estão bem próximas e têm vida própria, embora vegetais.

O meu diálogo ocorreu num dia em que eu estava desanimado, triste, e resolvi passear pelos caminhos secretos do jardim procurando algum duende.

De repente o jardim ficou grande demais ou me senti pequeno diante da beleza das flores, do verde e suas múltiplas tonalidades, da projeção do sol entre as folhas formando fachos de luz irisados que iluminavam cutículas de orvalho, pólen e partículas imponderáveis que se sustentavam em teias-de-aranha, evoluindo como formosas trapezistas e acrobatas dotadas de poderes especiais.

Parece que alguns se transferiram para mim.

Deitei num cantinho entre as folhagens, mas não gostei da experiência. A beleza visual contrastava com a realidade: mosquitos, mosquinhas, formigas, abelhas, marimbondos começaram a me atacar tentando me expulsar dali.

Jardins são lindos desde que você não deitar neles. São mais bonitos numa foto, numa pintura ou por detrás de uma janela. A não ser que você goste de se coçar.

Havia uma flor mais saliente e, instintivamente, sem sentido porque tenho muitos acessos de idiotice, perguntei-lhe:

– Putz! Por que vocês estão querendo me expulsar daqui se eu só vim deitar um pouco em busca de descanso?

Não é que ela me respondeu! Fiquei um tanto assustado e incrédulo mas não tive dúvidas. Aquela flor, cujo nome em nem sabia, falou comigo:

– Porque, além de gordo e pesado, você é muito maldoso.

– Como assim?

– Deitando aí você machuca a grama. Ou você acha que isto não dói? Deixe uma jamanta passar por cima de você para sentir como é.

– Sim, mas não faço isto por maldade. Apenas queria descansar. Eu não sabia que isto machucava as gramíneas.

– Então você é um ignorante. Só não mando você pastar porque seria ainda pior. Mas por que você acha que sou assim bela e a grama tão viçosa e verdinha? Porque temos vida, ora bolas. Você não sabe que temos vida, precisamos de ar e de água para viver e a única coisa que não podemos fazer é nos movimentar? Aliás, nunca vi você regando as flores, só sua esposa. Somos presas no chão pelas nossas raízes que permitem a circulação da seiva que nos alimenta e água faz bem, principalmente neste tempo de seca.

– Sim, não sou assim tão burro. Isto eu sei.

– Então porque você nos arranca e nos enfia num vaso, colocando um pouco de água apenas para estender nossa agonia? Nós morremos quando arrancadas do solo e entramos em coma quando colocadas num vaso... Daí nos transformamos vegetais em vida verdadeiramente vegetativa! E nós temos sentimentos também, mas você não respeita os nossos sentimentos.

Ela demonstrou algum dengo, mas se recompôs e continuou:

– Você está vendo a hortinha lá? Aqueles pés de alface mais bonitos estão em pânico, preocupados, porque sabem que logo vão ser arrancados, cortados com aquela enorme faca serrilhada da cozinha, lavados e comidos por você. O pior: alguns só servem de decoração e depois são jogados no lixo.

– Eu nunca tinha pensado nisto.

– É bom que pense. É bom que pense também que somos indefesas. Não temos como reagir. Somos simplesmente arrancadas de nosso habitat para encher o bucho de vocês. Os bois, de quem não gostamos nem um pouco porque vivem nos arrancando a dentadas como o Mike Tyson fez com a orelha do Hollyfield, por exemplo, têm chifres que podem usar como armas para se defender. Só que o boi é um bicho burro, não sabe a força que tem, e não se defende porque não quer. Nós não! Nós não nos defendemos porque não podemos.

– É verdade.

– O que adianta dizer que é verdade? Tem uns aí que reclamam que a carne não presta porque são aplicados muito hormônios nos frangos e no gado, mas o que dizer dos agrotóxicos que aplicam nas verduras e legumes e do estrume (eks!) que jogam como única opção para a gente se alimentar?

– ...

– Só porque não mugimos nem nos esganiçamos como um porco quando nos arrancam do solo não quer dizer que não sentimos que nos matam por puro interesse alimentar. Dizem que nossas fibras limpam os intestinos de vocês. Ora bolas! Vão plantar batatas e não se esqueçam de regá-las. Você acha agradável a gente servir de saponáceo para os intestinos de vocês? Vai limpar esgoto do lado de dentro todos os dias para ver o que que é bom.

Eu só ouvia, ruborizado, sem saber para onde olhar.

– Por isto não gostamos da raça humana em nossos domínios. Temos um contrato com insetos de todas as espécies e tamanhos para azucrinar vocês quando vêm aqui. Você tem sorte que estamos longe do rio, senão ia sofrer alguns dias com as picadas dos borrachudos. E aqueles mosquitinhos que ficam querendo entrar na sua boca, na sua orelha, zunindo ao seu redor, sabe onde vivem? Principalmente debaixo dos rabos dos cachorros abandonados e sujos e são nossos principais aliados. Ah! Ah! Ah! Quantos você já engoliu?

A conversa estava ficando chata de modos que me acordei, fui tomar um banho e descansar no meu recanto dentro de casa, fechado, com o ar condicionado ligado na frente de um computador e de uma tevê. Ah, que sensação de bem estar!

Já não lhe aconteceu de alguém lhe dizer certas verdades, nuas e cruas, e você não gostar, achar a pessoa pedante, mas depois, bem pensando e sem confessar a ela, concluir que estava certa? Assim ocorreu comigo. Achei que aquela flor, embora chatérrima, tinha suas razões. Por isto, nunca mais comi salada.

Foi assim que me tornei um carnívoro inveterado.


Publicada originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 28/04/2005.
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05/04/2008

Martha Argerich e Nelson Freire


Hoje é dia de eleições e preparei um texto a respeito. Deixo para as próximas, daqui a dois anos. Nada vai mudar mesmo e ele vai estar atualizadíssimo.

Vou me ocupar de coisas superiores, transcendentais, que acontecem longe das misérias morais da humanidade, no mundo seleto da Arte bem interpretada. 

Porque o que vi e ouvi sexta à noite talvez não tenha satisfação de assistir nunca mais.

Martha Argerich e Nelson Freire, no Teatro do Sesi, numa exibição primorosa: todas as peças para dois pianos ou a quatro mãos. Eu supunha que eles se revezariam em algum solo, mas não. Até nos bis, que foram SEIS, a interpretação foi conjunta.

Soube que Freire nasceu no dia 18 de outubro de 1944. Meu filho, que estuda Música com especialização em piano na UFRGS, nasceu exatamente quarenta anos depois... Outra curiosidade: o primeiro recital que meu filho “assistiu” foi em 31/08/1984, ainda na barriga da Ieda, em Ibirubá, próximo a Espumoso. O pianista era Miguel Proença, que hoje é o competente Diretor Artístico do Teatro do Sesi e sem cujo empenho não teríamos oportunidade de ver o espetáculo de ontem. Espero que estas coincidências sejam de bom augúrio.

Mas voltando ao recital: eu vi dois moleques. Cada um tinha umas quatro ou cinco mãos e em cada mão uns trinta dedos. Os dedos dançavam nas teclas e os sons que brotavam eram precisamente límpidos e expressivos.

O moleque mais novo tinha cabelos brancos. Alguma incongruência na aparência tímida e calada, no modo de tocar mais comedido. Difícil crer que daquela timidez pudesse emergir tanta exuberância. Mas as mãos dele parecem ter vida própria e não são tímidas quando tocam nas teclas do piano. Ou há alguma transformação especial na hora de tocar, não sei.

A moleca era ainda mais nova que o mais novo. Altiva e de uma beleza exótica, diz um jornal de São Paulo que ela não revela a idade. Acho que nasceu no tempo de Bach, conheceu Mozart, foi contemporânea de Clara Schumann e de Liszt, passou por Rubinstein e Benedetti e outros ícones e sobrevive renascendo a cada dia que se encontra com um piano. Não tem idade.

Ambos pareciam encantados com os dois brinquedos grandes que tinham à sua frente e que dominavam com perfeição, mesmo sem os comandos elétricos ou eletrônicos que a maioria dos brinquedos de hoje têm. Tocavam como dois cúmplices amantes da Arte. Às vezes se olhavam e sorriam. Eles sabiam porque, a gente só desconfiava.

Parece que ensaiaram durante uns trezentos anos. Só numa coisa não houve sincronia, de jeito nenhum: no final de cada peça, ao fazerem a reverência de agradecimento ao público, um sempre se inclinava antes. Quando um estava voltando à postura normal o outro estava se inclinando. Nenhuma vez se acertaram. Mas precisava?

No final, após o primeiro bis, eles passaram a caminhar com cuidado para não pisar nas rosas que os espectadores jogaram no palco. Mas, mesmo que pisassem, as flores não sentiriam nem se machucariam.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 02/10/2004.
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