27/12/2008

PRECISO DE AUTO AJUDA

Estou pensando em escrever um livro de auto-ajuda. Não sei a quem destiná-lo: aos gordos ou aos deprimidos, principalmente aqueles que andam sempre buscando esta árvore de dourados pomos que chamamos felicidade e que são os seres mais infelizes do universo. Ou aos brasileiros em geral, que estão muito necessitados de um afago no seu ego e na sua cidadania.

Para os gordos tenho, além de prática e conhecimento de meio século, dois títulos apropriados. Como se sabe, a última escolha que se faz quando se escreve um livro é a do título. Por isto, se escrevê-lo, depois escolherei entre estes dois: “Só é Gordo quem quer Emagrecer” e “Só os Gordos bebem Refri Light”.

Eu sou gordo. Já nasci gordo. A frau Ierich (faz tanto tempo que não lembro se esta é a grafia correta), a parteira oficial de Taió, quando viu que eu não ia nascer numa boa chamou o médico, doutor Arthur que, indignado com minha teimosia, utilizou fórceps para me puxar para fora.

Acho que seria um bom início. Demonstrarei que o trauma violento que sofri por sair de um lugar aconchegante onde eu não precisava me alimentar sozinho criou em mim uma fome compulsiva diante da realidade do mundo que descobri poucos anos depois, cheio de nata de leite, lingüiça, doce de laranja, banha com açúcar, pão de aipim e ovo frito...

Quem não comeu pão de aipim quentinho com uma grossa camada de nata fresca e por cima açúcar cristal não comeu um dos manjares dos deuses. Quando não tinha nata, podia ser banha mesmo. Isto: banha de porco com açúcar. Não era bom quanto a nata, mas o colesterol agradecia, embora a gente nem soubesse que ele existia... E o pão de milho abatumado que a dona Almerinda, nossa vizinha, fazia...

Já li livros de auto-ajuda. Segui as instruções à risca. Parei ao entrar em depressão depois de tanto repetir, de mim mesmo para mim mesmo, com o dedo indicativo da mão direita encostado no nariz e o da mão esquerda no ouvido direito (para fazer circular a energia cósmica universal): “a cada dia que passa eu me sinto melhor, melhor e melhor!”. Além disto, arranjei uma labirintite.

Os para gordos nunca li, mas é como se tivesse lido porque continuo gordo. Sei que é possível alcançar resultados positivos com eles. Li um (cujo nome, infelizmente, foi retirado da minha combalida memória depois de ler “Como aprimorar sua Memória”), escrito por um anão que, com exercícios mentais elaboradíssimos e específicos, conseguiu se tornar um adulto fisicamente normal. Ele luta para crescer ainda mais e entrar no Guinness como o homem mais alto do mundo.

No meu caso, o problema é que sou muito preguiçoso. Não sei se existe algum de auto-ajuda específico, ou seja, que me motive o suficiente para escrever um livro.

Escrever, não. Terminar de escrever. Tenho três prontos, cinco semi-acabados e uns 19 que estão arquivadinhos no meu cérebro mas não saem. Mais este projeto agora, do livro de auto-ajuda. Talvez fosse bom escrever para os preguiçosos mentais como eu. Algo como “Exercícios de Auto-Ajuda para Você escrever um Livro”. É uma boa idéia.

Fiz uns cálculos. Com esses livros eu poderia obter reconhecimento internacional e até ser agraciado com o Nobel de Literatura. Teria que viver pelo menos 130 anos, mas nada que um livro de auto-ajuda tipo “Viva até os 150 anos” não pudesse resolver...

Vou deixar para começar amanhã. Ou depois.

Pensando melhor, o ideal seria um fórceps para desencalacrar esses livros do meu cérebro...

Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em
17/11/2005.
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20/12/2008

E-MAILS INDESEJADOS...

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Sinto-me tão constrangido por não ter respondido a alguns e-mails que recebi ultimamente, que vou fazê-lo aqui, para me penitenciar e pedir desculpas publicamente.

Ao Fernando, que tem reiteradamente enviado um anunciando fotos de orgias em festas universitárias. Desculpe, Fernando, nunca tive muita vocação para voyeur e essas fotos não me interessam. Você não disse, mas é possível que sua irmã, ou você mesmo, estejam participando e eu me sentiria um pouco envergonhado em ver o desempenho de vocês. Se eu quiser vou à locadora mais próxima e alugo um filme pornô que certamente será mais interessante que suas fotos. Mande essas aí para sua querida mamãe para que ela saiba o que filho o dela está fazendo. Se ela participou da festinha, desculpe. Eu não sabia. Mande, então, para sua vovó.

À Carlla Lima (assim, duplo l) que me enviou alguns cartões de amor. Puxa, fico lisonjeado sabendo que você me ama. Hoje em dia são poucos os homens que podem dizer: eu tenho certeza de que sou amado. Mas você falou em uma foto batida no tempo do colegial, embaixo de uma árvore, e estava em dúvidas sobre qual seria eu...

Puxa! Isto é amor? Você me ama e vendo uma foto do nosso passado nem recorda mais de mim? Acho que você está enganada. Você não lembra? Quando eles bateram aquela foto nós estávamos atrás de outra árvore e você... Deixa pra lá.

Ou eu que me engano. A partir do fim do segundo ano do magistério comecei a namorar a Ieda. Sempre fui muito precoce, sabe, e casei com 19 anos e ainda convivemos. No meu fibrilado coração só cabe ela que me suporta há tanto tempo que nem vou dizer aqui para não lhe dar a mínima esperança.

Vamos convir: é muito tarde para tentar reavivar um amor que eu não lembro de um curso que eu não freqüentei e em razão de uma foto não batida debaixo de uma árvore sob a qual nunca estive. E olha que em Taió há árvores lindíssimas, mas você nunca ouviu falar de Taió, ouviu?

A doutora Kimberly me manda e-mails em Inglês. Está preocupada com minha saúde em geral e minha virilidade em particular, porque, entre outras drogas, me oferece Viagra a preços que diz convidativos.

Doutora: agradeço, sensibilizado, sua preocupação, mas sou fibrilado e não consultei meu cardiologista sobre se posso ou não tomar Viagra. Sei que os hipertensos não podem, mas este não é o meu caso. Além disso, a senhora é a primeira a reclamar. Quando as reclamações partirem da Ieda vou pensar no assunto.

O Rodrigo Herndon também está preocupado com aspectos de minha sexualidade. Anuncia uma sensacional revolução na Medicina pela qual eu posso aumentar o meu pênis em até 10 cm através de uma solução herbácea sem efeito colateral e de resultados 100% garantidos. Que que é isto, Rodrigo? Porque esse interesse todo? Não tem outra coisa a reclamar da vida? Tenho certeza que não o conheço. Não somos tão íntimos para você se achegar como se conhecesse detalhes de minha anatomia e estivesse descontente com eles.

Vale para você a última parte da resposta que dei para a Doutora Kimberly.




Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 11/11/2005
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13/12/2008

VIVA LA MUERTE!

Há algum tempo vi um filme em preto e branco em que os personagens acabam no México, em pleno carnaval. Bem, carnaval era o que eu pensava. Havia música, desfile, fantasias (que achei um tanto macabras), mas o desenrolar me esclareceu que se comemorava el dia de los muertos.

Os mexicanos, principalmente os nativos, entre o fim de outubro e início de novembro recebem seus parentes e amigos falecidos que voltam à terra para confraternizar. Não sei como se dá, exatamente, esse encontro mas, em todos os casos, revela uma faceta peculiar de se encarar a Velha-da-Foice que está numa das esquinas, aí pela frente, esperando cada um de nós para o seu rebanho.

O escritor mexicano, Nobel de Literatura, Octavio Paz disse: A morte não nos assusta porque a vida já nos curou dos medos. E: A confusão incongruente de atos, arrependimentos e esperanças, que é a vida de cada um de nós, encontra na morte não sentido ou explicação, mas um fim.

Como diria a Sabrina Sato, prêmio Lebon de vulgaridade: é verdade!

Essa tradição pré-hispânica não tem origens claras e perdeu genuinidade com a intervenção da Igreja Católica, sempre pronta a impor sua crença a ferro e fogo, e muita morte não tão bem humorada. Houve necessárias adaptações.

Simone Andréa Carvalho da Silva, coletando dados para sua tese de doutorado, escreveu interessante artigo na última revista Planeta (que se remodelou e perdeu aquele cunho notória e puramente esotérico):

A familiaridade com que o mexicano trata a morte não o isenta de temê-la, mas o ajuda a conviver e sobreviver a esse medo. Desde cedo as crianças devoram avidamente as caveirinhas feitas de açúcar, bala de goma, chocolate ou amaranto, pães dos mortos e todo tipo de guloseimas servido a um fausto banquete de vivos e mortos. Assim, acostumam-se ao contato com uma morte brincalhona e companheira, personificada em bonecos-caveiras de papel machê.

A vinda dos mortos é disciplinada. No dia 30/10 voltam os suicidas, no dia 31, os acidentados, em 1.º de novembro as crianças e dia 2 os adultos. Coloca-se uma jarra de água e uma tolha na entrada da casa para o morto se refrescar de sua longa viagem ao mundo dos vivos. Nos banquetes, os falecidos têm preferência e se servem primeiro.

Há dança, música, representações teatrais, concursos de altares, comilança e beberagem. E um costume que acho que seria aplicável com muita propriedade no Brasil: as calaveras políticas, tradição que consiste em escrever epitáfios humorísticos de políticos e pessoas públicas.

Não me contive e escrevi alguns. Lula: Foi presidente do Brasil e nunca soube. Zé Dirceu: Morreu antes de ter morrido. Olívio Dutra: Aqui se espraiam os restos da minha cidadania. Teria outros, mas o espaço é curto.

No final do fandango os mortos voltam a seus lugares. Os vivos os acompanham para evitar que fiquem vagando para sempre neste mundo cruel ao qual, certamente, não mais se adaptariam. Pois, como eles dizem lá: ao vivo, tudo lhe falta; ao morto, tudo lhe sobra.




Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 02/11/2005.
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29/11/2008

DIA DO APOSENTADO

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Hoje eu teria outro texto para colocar aqui, sobre críticas que sofri do Proença: ele me critica, e a outros blogueiros, porque nós criticamos o Governo Federal. Vai ficar para amanhã porque soube, através do Bom Dia Brasil que hoje é o meu dia. A Ieda, que via o noticiário comigo, limitou-se a dizer “minhas condolências!” sem tirar os olhos da tela.

Parodiando Jorge Bornhausen, os aposentados puros (aqueles que cujo pecado maior é o de viver exclusivamente de sua aposentadoria) são uma raça em extinção. Só não a extinguiram porque há os que – me incluo – preservam custosamente essa classe que o FHC chamou de “vagabundos”. Atualmente, ele que é aposentado por vários títulos, anda vagabundeando em alto estilo por aí.

Não é possível ser apenas aposentado hoje, a não ser que você receba proventos integrais – isto é, compatíveis com o que você perceberia se estivesse na ativa – uma questão de justiça e justeza que a propaganda governamental, escancaradamente apoiada pela mídia, transformou em injustiça e injusteza. Ao mesmo tempo transformou, com rara habilidade, o justo em privilégio.

O empregado da iniciativa privada que há um ano se aposentou percebendo o equivalente a dez salários mínimos hoje recebe menos que isto. Os reajustes para os aposentados são diferenciados.

Isto, a médio prazo, vai gerar outra iniqüidade: o aposentado que sobreviver por muitos anos vai sentir seus proventos minguarem até se aproximarem ao valor de um salário-mínimo. Menos é impossível por ordem constitucional. Se fosse possível não tenho dúvidas: o Governo já teria dado um jeito de criar um salário-aposentadoria, menor que o salário-mínimo.

Talvez você, aposentado nestas condições, deva ter o bom senso de não viver muito.

Os que apoiaram a reforma da previdência são intimamente culpados por essa injustiça. Não devem esquecer que, se quiserem atingir a velhice, serão um dia aposentados e vítimas da previdência social e de sua imprevidência pessoal. Se não tiverem um plano extra terão de fazer bicos para complementar os vencimentos que através dos anos vai minguando enquanto algumas despesas – com remédios, por exemplo – vão subindo. A legislação previdenciária brasileira foi elaborada especialmente para desestimular a aposentadoria.

Agora, se você é um ex-funcionário público e percebe a aposentadoria-integral-transformada-em-privilégio, e é por isto olhado com desprezo, tenha certeza de que lhe foi feita justiça, ainda que você seja minoria.

Se você trabalhou e contribuiu pelo tempo necessário a adquirir aposentadoria integral nada mais justo do que a continuidade retributiva anterior, para você poder se aposentar, manter seu padrão de vida, dar lugar aos jovens – são tantos os desempregados – e não precisar fazer bicos. Felizmente, estou nesta condição.

Não me orgulho de minha aposentadoria porque ela veio por motivo de doença. Mas, como não voltei a advogar, como muitos juízes aposentados fazem, gozo ainda do privilégio de usar o elevador privativo dos magistrados quando vou ao Tribunal de Justiça.





Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 08/11/2005.
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22/11/2008

IMPUNIDADE TAMBÉM É CULTURA

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De vez em quando deparo com notícias que, de certa forma, explicam alguns detalhes do porquê da impunidade no Brasil. Embora eu ache que estamos nos tornando cada vez mais rancorosos (tenho um texto atrasado sobre isto) muitas vezes nos invade aquele sentimento nobre de comiseração pelo próximo que nos leva a aceitar afrontas que normalmente repeliríamos.

A pena de morte não combina com nossa índole. Pode ser que ela fosse até aprovada numa consulta popular. Mas quando o primeiro condenado estivesse à beira da execução haveria uma comoção nacional. Manifestações e protestos explodiriam Brasil afora tentando livrar da pena capital o infeliz e suas circunstâncias. A não ser, é claro, que a vítima fosse filho de alguma celebridade ou um própria celebridade, artística ou jornalística.

Os Maluf foram soltos. O voto que lhes concedeu habeas corpus é fundamentalmente humanitário. O Direito foi espancado de relho. Mas muita gente que viu o Maluf saindo da cadeia, barba mal feita, olhar perdido, deslocado de seu habitat, condoeu-se.

Eu visitei, uma vez, porque era minha obrigação de juiz, o presídio de Iraí. De surpresa. Havia no máximo cinco ou seis presidiários. Um deles se aligeirou e preparou um café num bule enegrecido pela fuligem, usando um fogareiro para esquentar a água, e me serviu na melhor xícara: amarelada, encardida e trincada.

Detesto café. Os que me conhecem sabem disso. Repugna-me o cheiro, o sabor e as conseqüências gástricas. Mas naquele dia esperei esfriar um pouco e tomei. Até sorri, agradecendo. Só não aceitei repetir.

Saí de lá sentindo um aperto no peito e por uns dois ou três meses não julguei processos crimes, só cíveis.

É degradante ver homens enjaulados! Nosso sistema carcerário é cruel e não oferece perspectivas. E lá eles eram bem tratados, viviam em condições excepcionais considerando o que se vê pela televisão na cobertura de motins e rebeliões.

Não sei porque comecei esse texto assim. Ele se desviou de sua finalidade antes mesmo de se dirigir a ela. Eu queria era referir o manifesto assinado por artistas e intelectuais pedindo que o deputado José Dirceu não seja cassado porque não há provas materiais contra ele.

Meu Deus! Um juiz fica, às vezes, horas ou dias debruçado sobre um processo, examinando indícios para construir um castelo de provas e 90 intelectuais, a maioria dos quais certamente nem leu os autos, decidem liminarmente que um réu deve ser absolvido porque não há provas contra ele.

Não sei se me faço entender. Os juízes são, a seu modo, intelectuais do Direito. São humanistas por formação. Aprendem desde cedo que é preferível mil criminosos soltos do que um inocente preso. Usam, na análise da prova, embora certamente com mais técnica e conhecimento de causa e, principalmente, estudando o processo, a mesma mecânica mental que levou esses intelectuais e pseudos a decidirem que José Dirceu é inocente.

Por isto não creio na pena de morte no Brasil. E as reclamações sobre a impunidade, também por isto, soam pífias e cabotinas como a do carrasco que não vai ter nada para fazer.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 28/10/2005.
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20/11/2008

NAU CATARINETA

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O querido amigo e poeta Alberto Cohen me enviou, esses dias, o soneto Nau Catarineta.

Perguntei-lhe se podia publicá-lo aqui e ele respondeu que o poema “foi feito para o seu blog (daí o título). Se achar que tem méritos, pode publicá-lo e lhe fico grato”.

Grato fico eu, Alberto.
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Alberto Cohen
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NAU CATARINETA
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O porto cada vez mais longe,

as velas do barco, estraçalhadas,

um grumete chorando no convés

desencantos de sereias inventadas.

Desde a partida, noite, sempre noite,

uma a uma as estrelas se apagaram

e o dragão devorou São Jorge e a lua.

Onde o cais, onde o vento caminheiro?

Em que ondas do mar sem fim nem fundo

afogou-se a esperança que tentava

salvar da morte ao menos um sorriso?

Não há nada a fazer, o horizonte

de uma Terra quadrada se aproxima.

Despenhar talvez seja a chegada.
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15/11/2008

BUSH, PADRES E JORNALISTAS

Dia 04/11/2004 o Jornal Nacional noticiou que o recém-reeleito presidente dos EUA, George Bush, cometera uma gafe. Para quem já caiu do cavalo, se engasgou com bolachas, fugiu da guerra do Vietnam, invadiu o Iraque atrás de uma anunciada quimera, nada demais.

Mesmo assim prestei atenção.

Ao iniciar sua primeira entrevista coletiva após a reeleição um jornalista o informou da morte do líder palestino Iasser Arafat. Ele, então, numa espécie de prece (é muito religioso) manifestou: “O que eu posso dizer é que Deus abençoe a alma dele”.

Isto foi considerado uma gafe porque, na verdade, Arafat estava vivo, embora em estado crítico.

Mas o que me surpreendeu foi que ele foi induzido em erro pela informação de um jornalista. Minha mente viciada em interpretação jurídica não pôde deixar de concluir: a gafe maior foi do jornalista que transmitiu a informação errada. O Bush, que por sua cândida religiosidade acredita até em determinados papais-noéis, por que não acreditaria em jornalistas?

Ou foi uma pegadinha? Não creio. Com assuntos desta gravidade nem o João Kleber faz pegadinhas. Acho! Em todos os casos, se fosse, seria ainda mais grave. Além de transmitir uma informação errada o jornalista pretendeu “pegar” o entrevistado perante colegas e humilhá-lo.

Mas o mal maior não está aí. O mal maior está em provocar o erro e depois se vangloriar com ele.

Quando estudei no Colégio Diocesano, em Lages, em regime de internato, era obrigado a assistir à missa diariamente. Numa determinada manhã o frei Antônio anunciou que quem quisesse estudar estava liberado naquele dia.

Estávamos quase no fim do ano, época de provas, e uns cinco ou seis aproveitamos a rara liberalidade capuchinha e fomos para o estudo.

Logo depois o mesmíssimo frei adentrou na sala de estudos e anunciou solenemente, perante os mais de cem colegas, que estava nos cortando a folga dominical como castigo por termos faltado à missa...

Não sei porque me lembrei desse episódio ocorrido comigo no já longínquo 1965 ao ouvir a notícia dessa pretensa gafe.

Não sou fã do Bush e publiquei aqui, em 03 de setembro, a minha candidata a frase do século, dita por ele: “
Vamos construir um mundo seguro!”.

Também não acredito muito em determinados padres, porta-vozes das coisas divinas, embora já tenha vencido a fase de total descrença e conheça alguns nos quais confio plenamente.

Mas não gostaria de ter que desconfiar ainda mais de jornalistas. Afinal, tudo o que ocorre no Mundo profano sabemos através deles.




(Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 10/11/2004).
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14/11/2008

TENHO TANTO SENTIMENTO

Fernando Pessoa




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[165] – [18/9/1933]


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TENHO tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.



Fernando Pessoa
Cancioneiro
in Fernando Pessoa,
Obra Poética,
página 172,
Companhia José Aguilar Editora (1974).
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08/11/2008

SAUDOSIMO? NEM!

UM SAUDOSISMO APENAS OCASIONAL
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Não sou saudosista! Não desejo que certos costumes dos tempos antigos (ou como dizem alguns descendentes de alemães em Taió, de antes tempo) voltem. Não renego a excepcionalidade sonora da gravação digital em favor dos discos de vinil por questões poéticas ou nostálgicas. Agrada-me muito mais o som perfeito, sem ruídos que não a música, dos cedês e devedês.

Talvez eu preferisse ser alguns anos mais novo – sem dispensar a experiência de agora – mas isto é querer demais. Temos o nosso próprio ciclo, as nossas próprias ultrapassagens, e ser mais novo e concomitantemente mais experiente, me transformaria numa excrescência, num monstro social inaceitável e dotado de um complexo de superioridade que me tornaria um déspota odiável. Eu seria infeliz porque não encontraria par nem entre os da minha idade cronológica nem entre os da minha idade mental, por motivos óbvios!

Já me acostumei a certas facilidades modernas e não sei como viveria sem elas. O controle remoto, por exemplo, é um invento superior à própria televisão porque permite que você não tenha que aturar o mesmo programa ou o mesmo comercial por mais de 30 segundos. Estou aguardando a invenção de um controle remoto automático movido a pensamento.

Há coisas de que não se pode desistir sem retroceder. Como dispensar carro com ar condicionado, vidros acionados eletricamente, aparelho de som, troca de marcha automática? Estou exagerando um pouco.

E o computador? Não imagino como alguém possa viver sem um, embora neste país isto seja um privilégio. O programa “computador para o povo”, do presidente Lula, acho que se esboroou. Esse Governo é maravilhoso para planificar, mas pára por aí. Ele não tem tempo de implementar seus planos porque tem muitas reuniões a fazer para inventar outros planos...

Comecei com um MSX da Gradiente e sofri gravando sentenças em fita cassete. A gravação e a recuperação eram lentas e a mínima oscilação de energia elétrica poderia arruinar o trabalho de um dia. O drive dos discos de 5.1/4, com a imensa capacidade de 500 kb, foi um progresso considerável.

Hoje de manhã, fibrilado e exausto, desci ao escritório e liguei o micro. A primeira coisa que faço é abrir e-mails. Deu erro! De novo sem banda larga! Tentei a página de notícias e não entrou. Então lembrei que não ligara o modem, que faz as vezes de roteador, pois quando meus filhos moravam aqui montei uma pequena rede doméstica para os nosso micros.

Isto me obrigou a subir 467 degraus de escada, fibrilentamente, e ligá-lo. Pela primeira vez, e ainda assim por esse motivo especial, senti saudades de um retorno ao passado, ao tempo em que um micro era apenas um micro no qual você trabalhava, escrevia, jogava e até programava.

Hoje ele é apenas um apêndice de uma grande rede chamada Internet sem a qual, definitivamente, não dá para viver. Não dá!





Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 07/10/2005.
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06/11/2008

Soneto XVI - Quintana

. Mario Quintana








Soneto XVI

................(para Reynaldo Moura)
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Que bom ficar assim, horas inteiras,
Fumando... e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
A baladilha ingênua das goteiras.


E vai a névoa, a bruxa silenciosa,
Transformando a Cidade, mais e mais,
Nessa Londres longínqua, misteriosa
Das poéticas novelas policiais...


Que bom, depois, sair por essas ruas,
Onde os lampiões, com sua luz febrenta,
São sóis enfermos a fingir de luas...


Sair assim (tudo esquecer talvez!)
E ir andando, pela névoa lenta,
Com a displicência de um fantasma inglês.



Mario Quintana
A Rua dos Cataventos
L&PM POCKET,
página 22.
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04/11/2008

POETAS

Florbela Espanca











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Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas.

E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!



POESIA de
Florbela Espanca
Trocando Olhares
L&PM Pocket – Volume I
Abril de 2008

Página 23.
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01/11/2008

E O FUTURO DELES...

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ENFRENTANDO O FUTURO DE TRÁS PRÁ FRENTE


Moro num recanto de Porto Alegre desde 1989. A 18 km do Centro. Foi o que deu para comprar, pelo Sistema Financeiro da Habitação, quando cheguei aqui.

O bairro era aprazível e as noites só eram atrapalhadas de madrugada, quando o jornaleiro passava (ele era gordo e pisava tão forte que estremecia os alicerces das casas) ou quando os ônibus começavam a trafegar.

Mudou muito. A sexta-feira traz a insônia dos fins de semana. Uma insônia que não é de ordem médica. Jovens, de todas as idades, em bandos, promovem gritarias, se embebedam, se drogam, gritam impropérios, assobiam e discutem pelas ruas do bairro... Demonstram – e isto é deprimente – que se têm família certamente esta não os apóia. As algazarras atravessam a madrugada. Para essa insônia não há remédio.

Há, até. Mas a advertência que há na bula de alguns medicamentos se aplica aqui: a tolerância, ainda que em outro aspecto.

Não adianta reclamar. Acionar a Polícia significa desforra, mais cedo ou mais tarde. Reclamei, no início, e como resultado recebi prejuízos e pedras que esses pequenos marginais, “meninos e meninas”, como os qualificam a imprensa e os defensores dos direitos humanos, atiraram sobre o meu telhado. Atrapalhei seu direito de fazer bagunça noite adentro, num bairro residencial. Se ajuizarem alguma ação contra mim, por dano moral, é possível que eu seja condenado.

Em Londres, às 22,00 horas, os pubs fecham. Fecham mesmo. Aqui não. Aqui barzinhos e pontos de drogas funcionam 24 horas, a polícia os conhece, mas mesmo que queira não pode fazer algo mais eficaz: falta-lhe condições materiais (e muitas vezes psicológicas) de desenvolver um trabalho eficiente. Os jovens vão se acostumando a essa vida insana.

Qual o futuro deles? Alguns serão marginais: aqueles que, desabituados da forçosa “tolerância” social, que não se estende aos adultos, continuarão sua vidinha de tumultos e bebedeiras e descambarão depois para furtos, roubos e crimes mais graves.

Outros serão marginalizados: tentarão se adaptar às regras sociais, mas sofrerão e viverão frustrados. Colocarão a culpa nos outros – se tiverem capacidade de raciocinar –, principalmente nas elites, por sua vida sem perspectiva. Sem formação, serão subempregados ou jornaleiros (no sentido primeiro do vocábulo).

Pode ser até que algum, num golpe de sorte, faça um cursinho em entidade tipo SENAI, consiga depois um emprego, entre na militância sindical e política e venha a ser presidente da República. Mas esta é uma possibilidade rara. Ao que se sabe, em 502 anos de História do Brasil, aconteceu apenas uma vez. E, pelo jeito, não vai se repetir tão cedo.

Mas há jovens fora deste contexto. Eles, que dormem nas madrugadas sem dispensar o lazer sadio e necessário, é que dominarão os outros. Eles, que agora estudam, aprofundam seus conhecimentos, buscam seu próprio bem estar e se esmeram em se formar em alguma faculdade ou em algum curso técnico, estes conseguirão se impor socialmente e governar – em sentido amplo – o país.

Então serão chamados de elite e culpados pela degenerescência dos outros.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 24/09/2005.
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29/10/2008

Poema 20 - NERUDA

Pablo Neruda









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Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como esta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Como no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocio.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque este sea el último dolor que ella me causa,
y estos sean los últimos versos que yo le escribo.



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TRADUÇÃO:

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Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".

O vento desta noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a quis e por vezes ela também me quis.

Em noites como esta a tive entre meus braços.
Beijei-a tantas vezes debaixo do céu infinito.

Ela me quis e às vezes eu também a queria.
Como não haver amado seus grandes olhos fixos?

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a hei perdido.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Que importa que o meu amor não pôde guardá-la?
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se conforma por havê-la perdido.

Como para acercá-la meu olhar a procura.
Meu coração a busca, e ela não está comigo.

A mesma noite faz branquear as mesmas árvores.
Nós outros, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a quero, é certo, porém quanto a quis!
Minha voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido

De outro. Será de outro. Como antes de meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.

Já não a quero, é certo, porém talvez a queira.
É tão breve o amor, e é tão longo o olvido.

Porque em noites como esta a tive nos meus braços
minha alma não se conforma com havê-la perdido.

Ainda que esta seja a última dor que ela me causa
e estes sejam os últimos versos que eu lhe escrevo.





Pablo Neruda
Vinte Poemas de Amor
e uma Canção Desesperada
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José Olympio Editora
26ª edição – páginas 64/67.
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25/10/2008

PROGRAMA DE ÍNDIO

Há algum tempo postei uma matéria visando cooptar investidores para uma fábrica de arcos e flechas em Iraí, já que vão acabar proibindo armas de fogo para todos os brasileiros, exceto para os facínoras (Vou Enriquecer com o Desarmamento). Assim, para nos defender, vamos ter que, num processo concomitantemente liberal e regressivo, voltar à era das armas primitivas.

Alguém deve ter lido o meu post e, muito espertamente, lançou a semente da minha fábrica explorando um segmento social muito mais rentável: o infantil, cujo poder de chantagem amplamente divulgado e sugerido pela mídia como forma de convencer os pais é seguramente um dos mais lucrativos do mercado.

Quem não lembra da propaganda em que o pai, além de agüentar o filho na garupa num shopping, suportava uma bronca estrepitosa porque o garoto queria um brinquedo? O pai era dupla e amestradamente montado. Essas propagandas são muito educativas.

Pois a IstoÉ Dinheiro de 28/09/2005, página 18, na coluna de Rosenildo G. Ferreira, sugestivamente chamada de “Empresas do Bem”, informa que a fábrica Rosita está lançando uma série de brinquedos inspirados na cultura indígena: “Zarabatana, machadinha e arco e flecha são alguns itens da linha Wakay”.

Nada mais adequado. Afinal, já que no futuro não vamos ter armas de fogo para defesa é bom que as crianças se familiarizem desde cedo com essas que serão o supra-sumo da modernidade. Depois, evidentemente, que eu abrir a minha fábrica para municiar os adultos. Preciso me aligeirar.

Defendo a tese – e já disse isto aqui – que se brincar com armas de brinquedo, na infância, tornasse um adulto bandido eu seria um dos mais perigosos, pelo muito que brinquei de caubói. O Guédi e eu, sozinhos, nos domingos à tarde, matávamos mais índios do que poderiam existir na face da terra no tempo das diligências. O Guédi formou-se em Teologia e é hoje um piedoso pastor da Igreja Evangélica de Confissão Lutherana... O que acabou convivendo mais com a bandidagem fui eu, mas em razão de minhas funções de Juiz. E da nossa turma toda apenas um, depois de adulto, esfaqueou um terceiro numa cancha de bocha, em Taió. Pelas costas, mas insisto: em legítima defesa.

Brincar de arco e flecha, zarabatana e machadinha – talvez até de tacape, lança e borduna – não incita à violência, mas à vida pacífica e tranqüila dos nossos índios que usavam essas armas para brincar de guerra.

Como eu disse em outro post (
Sonhos de um Megalômano...), complementar ao primeiro, talvez algum dia conquistaremos o mundo por dominar a arte de fabricar arcos e flechas de extrema precisão.

Ou, talvez, acabemos vivendo em ocas sob o comando do cacique Lula-Nove-Dedos. O pajé Zé-Cada-Vez-Mais-Convencido-de-Inocência será o chefe do Conselho dos Anciãos.




Publicado originalmente no blogue JUS SPERNIANDI,
em 29/09/2005.
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15/10/2008

SONETO

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Miguel de Cervantes Saavedra
(Estampa copiada do livro abaixo)



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Dai-me um roteiro que eu, senhora, siga,
A vosso bel-prazer feito e cortado,
Que por mim há de ser tão respeitado,
Que nem num ponto só dele desdiga.

Se vos apraz que eu morra, e que a fadiga
Que me punge, a não conte, eis-me finado!
Se preferis que em modo desusado
Vo-la narre, eu farei que Amor a diga.

De substâncias contrárias eu sou feito,
De mole cera e diamante duro;
Às leis do amor curvar esta alma posso.

Brando ou rijo, aqui tendes o meu peito,
Engastai, imprimi a sabor vosso!
Tudo guardar eternamente eu juro.



Miguel de Cervantes Saavedra,
in Dom Quixote de La Mancha,
Editora Civilização Brasileira, página 512.


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08/10/2008

SIGNO

Kátia Bento
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outubro ou nada —
a vida vale o dobro
das grades que não quebro

outubro ou tudo —
a vida vale o dobro
das portas que não abro

a vida com seu milagre e
assombro

vale o dobro do fardo
sobre o ombro

o dobro do tempo
sob o escombro.




Encontros com a Civilização Brasileira,
Volume 8 – Fevereiro de 1979,
Página 179
Editora Civilização Brasileira
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02/10/2008

E V O C A Ç Ã O

Jaime Caetano Braun
(foto: cedê Jaime Caetano Braun,
Acit Com. e Fonográfica Ltda.)

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Ouço a cambona que chia,
Golpeio mais um amargo
E volto pro sonho largo
Do campo e da fantasia.
E o meu verso se extravia,
Depois eu fico pensando
Que a guitarra bordoneando
Aqui junto do fogão
É o bater do coração
Do Tempo que vai rodando.

La maula! Que fica lindo
O murmúrio do arvoredo
E aquele meio segredo
Da estrela d’alva saindo,
Igual a uma flor se abrindo
Pro dia que vai nascer.
O índio pega a percorrer
De novo a estrada perdida
E as cousas boas da vida
Que quis e não pôde ser.

Eu não sou muito de igreja,
Vou nelas de longe em longe,
Muito embora seja um monge
Dessa liturgia andeja.
Deixo que Deus me proteja,
Ele é gaúcho, por certo,
Sempre o sinto muito perto
No bater das pulsações.
Quanto às minhas orações
As faço no campo aberto.

Prefiro a paz dos escampos,
Respingados de sereno,
Onde sou grande e pequeno
Na majestade dos campos,
Contemplando pirilampos
Que da grama se desprendem.
Quando as estrelas se acendem
Eu converso com as estrelas
Porque aprendi a compreendê-las
E elas também me compreendem.

Quanta emoção me domina
Ouvindo os sons matinais,
Ruídos que não ouço mais
Da minha terra divina.
Ora o berro da brasina
Velha, chamando o terneiro,
O rincho de um parelheiro,
Um quero-quero gritando,
Ora a sanga murmurando
Lá no fundo do potreiro.

Eu sigo olhando o brasedo,
Golpeando um amargo bueno,
E olhando longe o sereno
Se levantar do varzedo,
E a bulha do chinaredo
Com vaca mansa e tambeira,
O barulho da mangueira,
Grito, risada, rezinga,
E o tempo que choraminga
No santa-fé da cumeeira.

Diz bem o argentino Luna,
Guitarreiro e pajador
Que o patrão, Nosso Senhor,
Não nos deu maior fortuna
Do que esta hora turuna
Num galpão enfumaçado.
Ouvindo o berro do gado
Ronco de mate, relincho,
E o guitarrear de um pelincho
De bico recém pintado.

Dentro desse quadro imenso,
De tanto olhar o varzedo,
Tenho medo de ter medo
De pensar, e quando penso,
Imagino que o incenso
Que pelas várzeas flutua
Não é na neblina charrua
De um ritual inacabado:
É o hálito perfumado
De algum bocejo da lua.


Extraído do cedê
Troncos Missioneiros
USA Discos Produções Fonográficas Ltda.
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29/09/2008

Ó SINO DA MINHA ALDEIA

[88] - [1913]

Fernando Pessoa


Ó SINO da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.





Fernando Pessoa
Cancioneiro
in Fernando Pessoa,
Obra Poética,
página 149,
Companhia José Aguilar Editora (1974).
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27/09/2008

VERDES VERDURAS

Cruz e Souza



Neste fim-de-semana frio e úmido, comigo em minhas recônditas quietudes, adentrei nos domínios da poesia e encontrei uma excelente página de Literatura do professor Sérgius Gonzaga. Interessei-me pelo Simbolismo, sabedor, pois sou de Santa Catarina, de que um de seus mais conceituados representantes no Brasil é Cruz e Souza (na ilustração), um catarinense.

Segundo o professor Sérgius, os primeiros indícios do movimento encontram-se em Baudelaire, cuja obra máxima, As Flores do Mal, antecipa certas perspectivas simbolistas.

Mais: O Simbolismo surgiu não apenas como uma estética oposta à literatura (poesia, especificamente) objetiva, plástica e descritiva, mas como uma recusa a todos os valores ideológicos e existenciais da burguesia. Em vez da "belle époque" do capitalismo financeiro e industrial, do imperialismo que se adonava de boa parte do mundo, temos o marginalismo de Verlaine, o amoralismo de Rimbaud e a destruição da linguagem por Mallarmé.

O Simbolismo surgiu como Escola literária na França, no final do século XIX, como reação aos excessos do parnasianismo. Sua característica principal é uma visão subjetiva, simbólica e espiritual da realidade. Usa formas de expressão novas e a preocupação estética domina sua linguagem.

O professor Sérgius: O Simbolismo no Brasil é um movimento que ocorre à margem do sistema cultural dominante. Seu próprio desdobramento aponta para províncias de escassa ressonância: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. É como se o gosto dos poetas da escola por neve e névoas, outonos e longos crepúsculos exigisse regiões frias e nebulosas.

A livre associação faz coisas impensáveis! O fim de semana esteve frio e úmido e os simbolistas apreciavam neve e névoas, e regiões frias e nebulosas.

Já disse várias vezes aqui que aprecio o frio e a chuva, a névoa e a neve, desde que, obviamente, esteja bem agasalhado e protegido em casa, preferencialmente com uma lareira acesa e ouvindo, como ouviu Cruz e Souza,

“Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpia dos violões, vozes veladas
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas”.

Na minha divagação poética, deparando com essas condições geográficas tão importantes ao desenvolvimento do movimento, me descobri um simbolista retardado, digo, retardatário. A Musa baixou em mim, senti um estremecimento misterioso, e fiel aos princípios escolásticos pari os versos que seguem, prenhes de simbolismo e ao mesmo tempo um retrato de coisas recém ocorridas e inutilmente escondidas em até agora infrapartidárias cuecas:

VERDES VERDURAS

"Verdinhas veladas em vetustas vestes,
Volúpia dos vilões, verde ventura,
Viajam nos velhos vértices velados,
Vindas da venda de vívidas verduras".

Cruz e Souza, e os outros simbolistas, que me perdoem.





Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 19/07/2005.
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23/09/2008

AS COISAS

Jorge Luís Borges


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A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.



Jorge Luís Borges
elogio da sombra
Coleção Sagitário
Editora Globo
página 24.
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20/09/2008

DESARMADO MAS RICO!

VOU ENRIQUECER COM O DESARMAMENTO...







Como disse outro dia, a fortuna está sempre na minha frente mas não consigo alcançá-la. Agora surge uma perspectiva real de eu me tornar um ricaço, principalmente depois de pesquisa do IBOPE apurar que 81% dos brasileiros são a favor do desarmamento.

Em Iraí, minha primeira Comarca, às beiras do Rio do Mel, habita uma tribo de caicangues e com ela vou estabelecer as relações negociais que me deixarão milionário.

Vou entrar com a idéia e convencer o cacique – no meu tempo era o Sebastião – a montar uma fábrica de bodoques de alta precisão, com flechas dotadas de mecanismo automático de direcionamento. Algumas terão pontas de aço e outras, mais eficazes, um mini-coquetel molotov na ponta.

Coquetel molotov não entra na proibição legal, desde que usado para defesa. Querem um exemplo? Em 28/01/2005, durante o Fórum Social Mundial, foram presos aqui em Porto Alegre 43 punks com “trinta coquetéis molotov prontos, cerca de 250 gramas de pólvora, explosivos caseiros e bastões sinalizadores”. Alegaram que o arsenal seria utilizado “para se defender dos ataques feitos com freqüência por skinheads” e foram liberados. Alguma dúvida?

É certo que na época foi atirado um coquetel molotov no Bank of Boston, na Av. Praia de Belas, próximo ao acampamento do Fórum, e houve outro ataque a uma agência do Banrisul. Esses fatos, de legítima defesa contra a ameaça capitalista, só confirmam o caráter autodefensivo da arma (se os punks portassem revólveres seriam presos em flagrante por delito inafiançável).

Estou pensando, até, em desenvolver com o Sebastião, ou com seu sucessor, um arco de repetição, o que facilitaria muito o uso. Um arco-metralha!

A proibição de vender armas de fogo vai ser aprovada. Mas os bandidos continuarão armados e nós, para nos defender, teremos que nos armar, de um jeito ou de outro. Atirar facas exige treino, dedicação e esforço. Não tenho condições de fazer tanto exercício por questões de saúde. Um arco de repetição é a solução ideal.

Claro que vamos aprimorá-lo para que ele tenha dimensões mínimas e aproveitamento máximo. Talvez com mecânica semelhante – mas não igual – à de uma balestra. Como esta já existe e há fabricantes no mundo inteiro eu não conseguiria enriquecer se me limitasse a copiá-la. Poderia até sofrer um processo por contrafação.

Penso, também, em fabricar coquetéis molotovs de bolso para defesa pessoal. Será um produto mais artesanal e vou vendê-los no camelódromo em que se transformou o centro de Porto Alegre.

Deixarei alguns estrategicamente colocados em minha casa e uns dois ou três no carro. Para defesa pessoal, repito. Sei. Enfrentar um bandido armado de revólver ou fuzil com uma garrafa combustível é algo meio primário e comunista, mas como juiz aposentado não posso dar mau exemplo. Tenho que cumprir as leis.

Se um coquetel molotov é considerado um instrumento legal de defesa e um revólver não, vamos nos adaptar. Talvez algum dia tenhamos que nos defender de agressores que posem de bandidos sem ser bandidos.

Aceito sócios para a fábrica de arcos. Se você se interessar deixe um comentário, digite o código secreto "EQSS" e informe seu e-mail. Entrarei em contato informando o número de minha conta bancária para depósito. Será um negócio absolutamente transparente e não será preciso usar malas ou cuecas.

Malas, só depois, para transportar o dinheiro que você ganhar. Afinal, estou lhe oferecendo a oportunidade ímpar de enriquecer comigo. Seu investimento proporcionará lucros consideráveis. Vamos entrar no círculo restrito dos colunáveis, passar uma temporada no Castelo de Caras, aparecer na revista, comer caviar e viver sem se preocupar com o passado.

Por isto não aceito depósito inferior a R$ 50.000,00.





Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 21/07/2005.
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MEGALOMANIA PATRIÓTICA

SONHOS DE UM MEGALÔMANO, MAS PARA O BEM DA PÁTRIA...



Às vezes tenho a sensação de que me está reservada, ainda, apesar da idade e da aposentadoria, a realização de grandes feitos para a humanidade ou, pelo menos, para o Brasil.

Vejam a minha idéia de abrir uma fábrica de arco e flechas de repetição, que publiquei neste blog no dia 21/07 (Vou Enriquecer com o Desarmamento!), que nos permitirá a defesa contra os bandidos face à previsível proibição do comércio de armas e munições. Ela vai me enriquecer e a todos aqueles que tiverem a ousadia de se associar no empreendimento.

Mas estive pensando, porque para montar esse tipo de empresa é preciso cautela e análise redobradas, e meu pensamento solertemente desviou-se para uma possibilidade inicialmente não prevista: minha humilde e aparentemente simplória fábrica poderá provocar a emergência do Brasil como potência mundial, mas isto vai demorar ainda; ninguém conquista o mundo da noite para o dia.

É preciso, também, um pouco de pessimismo, artigo difícil de se encontrar hoje no mercado social mundial porque passamos pelo melhor período da História Universal, como já disse outro dia ao Túlio. Não são detalhes como a Guerra do Iraque, o conflito árabe-israelense, os atentados terroristas em Londres e na Chechênia, a loucura explicita de presidentes como o da Coréia do Norte e, mais aqui perto, a degringolada do PT, a guerra entre traficantes e a violência diuturna que vão acabar com essa sensação de segurança, paz e tranqüilidade.

Por isto, apesar de tudo, temos que ser inicialmente pessimistas para chegarmos ao status de uma grande potência.

Primeiro, temos repor a Direita no poder. Com isto desviaremos a atenção dos americanos. Com um governo de Esquerda, estamos sendo vigiados e isto, para os fins deste artigo, não é nada bom. Com a Direita no poder a grande potência do Norte se esquecerá de nós e quando emergir a terceira guerra mundial não lembrará que existimos e não jogará alguma bomba sobre nossas cabeças. Talvez até possa atingir grandes centros, como Rio, São Paulo, Belo Horizonte, mas a minha fábrica vai ser instalada em Iraí, bem no interior do Rio Grande do Sul, como já disse.

Isto será o começo de nossa dominação do mundo.

Um dia, após a II Guerra, explodidas Hiroshima e Nagasaki, perguntaram a Einstein como seria a terceira guerra mundial. A resposta foi mais ou menos assim: “a terceira eu não sei. Mas a quarta, seguramente, será com paus e pedras”.

Perceberam a nossa vantagem? As grandes potências de hoje aniquilarão umas às outras. Os meus arcos de repetição e minhas flechas com pontas de aço e coquetéis molotov estarão tão desenvolvidos e aperfeiçoados que não encontrarão similar no mundo.

Lamentavelmente teremos que guerrear, mas por pouco tempo. Venceremos logo graças à nossa supremacia de forças. Os inimigos, com paus e pedras, não serão páreo para os nossos sofisticadíssimos bodoques e nossa destreza em manejá-los. Venceremos a IV Guerra Mundial, conquistaremos outros países, dominaremos o mundo e implantaremos, impositiva mas democraticamente (algo assim como os americanos estão fazendo no Iraque), o nosso modo de vida e o nosso sistema de governo.

Só então não haverá mais guerra. A paz será verdadeira e abrangente, pois colocaremos administradores brasileiros para governar os países conquistados. Sempre fomos avessos a guerras e isto bastará para a paz duradoura e contínua.

A corrupção, uma de nossas características principais há muitas gerações, ao contrário do que parece, será benéfica. Nela estão agasalhadas as plenas condições de paz: os corruptos gostam de ganhar dinheiro fácil e por isto não são belicosos... No máximo ameaçam por telefone, mas, então, este ainda não terá sido reinventado.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 28/07/2005.
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18/09/2008

ESTRELAS

Alberto Lisboa Cohen


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Cada estrela que brilha é uma promessa,
um sinal de esperança e novo alento
para os que vivem pelo encantamento
de todo novo sonho a ser sonhado.
Aos olhos do menino que não cresce,
o amor que é tão velho não envelhece,

cometas enamoram-se de luas
e botos acasalam com sereias.
E a estrela da manhã quando aparece,

mais brilhante que todas as estrelas,
é como o olhar de Deus que reconhece

em cada um de nós a Sua criança,
em todos nós Sua imagem, semelhança.



Alberto Lisboa Cohen
caminhos de não chegar
Prêmio IAP de Literatura 2005
Instituto de Artes do Pará,
página 42.
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13/09/2008

À MINHA FILHA

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que está de aniversário hoje.

AO COMPANHEIRO FIDEL

Tens amigos e admiradores no Brasil e no mundo. Dizem que Chico Buarque é um deles. Não creio que ele gostasse de ter nascido em Cuba e vivido lá. Certamente não faria o sucesso que fez nem alcançaria a fortuna que adquiriu com seus próprios méritos, talento e esforço de compositor. Em Cuba os méritos são do Estado.

Os intelectuais que conheço – conheço é modo de dizer, pois não conheço, pessoalmente, nenhum – adoram Cuba, mas não moram lá. Há uns 70 na ilha que moram em cadeias e não creio que esse seja um bom lugar para eles.

Fernando Gabeira, um deputado federal de esquerda muito em voga ultimamente, esteve lá. É possível que goste de Cuba. Mas em 31 de março de 2003 (poderia haver data mais apropriada?) representou perante o Congresso condenando a prisão de 77 dissidentes cubanos e solicitando ao governo brasileiro gestões para a sua libertação (
aqui).

É cômodo se dizer simpatizante de uma realidade longínqua para parecer humanista mesmo que ela seja a representação lídima da desumanidade.

Dizem que a
medicina cubana é avançada. Mas eu não gostaria de morar lá com a minha fibrilação. Os equipamentos são tão ultrapassados quanto os carros que se vê nas ruas. Aliás, acho que os melhores mecânicos do mundo são os cubanos porque para manter rodando uma frota obsoleta e caindo aos pedaços como a de Cuba só com muita criatividade. A mão-de-obra de fundo de quintal exige esforço. Meu pai foi mecânico, a partir de 1950, quando tudo era artesanal. Lá, hoje, ainda deve ser assim. A culpa? A culpa é do boicote americano, claro. Cuspo na cara do meu vizinho, mas tenho o direito de exigir que ele me ajude se eu estiver em dificuldade.

Lá, os artistas, para sobreviver, devem fazer bicos, como engraxar sapatos.
Ibrahim Ferrer, que morreu dia 06, submeteu-se a isto. Já imaginaram o Chico como engraxate para poder viver um pouco mais condignamente? Ou o Milton Nascimento, o João Bosco, o ministro Gilberto Gil, o Caetano Veloso?

Quem viu o documentário Buena Vista Social Club se comoveu com aqueles velhinhos conformados e perdidos que o companheiro Fidel e sua reinvolução isolaram. Eles teriam enriquecido a cultura cubana com mais eficiência do que os projetos do ditador e, ao mesmo tempo, levariam uma vida menos penosa.

Ver um pianista como Rubén Gonzáles y Fontanillis alquebrado, com artrite (a medicina cubana, tão avançada, não lhe valeu) tocando num piano antigo, de parede, quando poderia se ter lançado no mundo como virtuose ou com melhores condições de desenvolver seu talento, é um crime contra a Cultura.

Com que direito o companheiro Fidel podou a vida de tantos artistas e intelectuais? Ele está acima do bem e do mal, dispõe de onisciência tal que tem o direito de dominar tudo o que se movimenta naquele paraíso infernal? Claro que sim.

Ele lesou artistas que apenas representavam o melhor da arte musical do país simpático que tornou seu quintal. É o senhor privilegiado de uma ilha que não precisou comprar. Ainda o pagam para ser dono dela e administrá-la tão mal e retrocessivamente.

Mas ele não conseguiu a chama da Eternidade.

Quando morreres, Deus te guarde, companheiro Fidel. Num lugarzinho especial, isolado e silencioso. Nem te desejo choro e ranger de dentes. Apenas o silêncio. O silêncio eterno e triste dos artistas que amordaçaste.




Publicada no blogue JUS SPERNIANDI,
em 25/08/2005.
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11/09/2008

O PEQUENO NADADOR

Carlos Saldanha Legendre





(a Antônio Augusto Fagundes)
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Era tão belo o filho (porque filho)
desde o nascer, quando o entronara ao peito.
Implume e frágil, se esbatera ao leito,
ó pássaro de brisas e junquilhos!

Talvez não fosse igual a outros filhos
porque só de esperanças fora feito.
Buscara o mar e o abismo de tal jeito,
mais parecia peixe com seus brilhos.

Mas era só humano e a luz tão pouca
ao fundo d'água... Deus, que força a fez
arrancá-lo do vórtice? Sem roupa,

trazendo-o contra o colo, em ânsia louca,
como o gerando por segunda vez,
a mãe lhe sopra vida pela boca.




Carlos Saldanha Legendre
Inventário do Canto,
(2.ª edição – revista e atualizada)
Cultura Contemporânea
Porto Alegre 2000

página 32.
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09/09/2008

IEDA

Ilton Carlos Dellandréa

Aquarela de
Ieda M. F. Dellandréa




Parceira,
parte,
partiu-se em duas
para ser não minha,
mas eu.

Não é,
não somos.
Eu sou – e não seu.

De mim mesmo ateu
creio no ela
que há em mim.

É mais que isto,
sou menos.
É tudo, inteira,
sou pequeno.

Agiganto-me nela,
reencarnação viva
vívida
vivaz
de quem não morreu.

Concomitante,
mesmo ausente
é a equação dominante
e presente.

Mais dizer não posso.
O resto,
o sumo,
o resumo,
o tudo
é nosso...


Ilton Carlos Dellandréa
Porto Alegre, 29/03/2000
A imagem ilustrativa é uma aquarela dela, Ieda.
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06/09/2008

TERROR UNIVERSITÁRIO

Deu no jornal Zero Hora de hoje (04/08/2005), página 3:

Ato de mau gosto. Cruzou a fronteira do grotesco – e da falta de educação – o que um trio de estudantes universitários fez durante a visita do reitor da Universidade Estadual Paulista à unidade da instituição em Franca, São Paulo. Durante o discurso, uma aluna colocou garrafas de urina na mesa do reitor, outro levou um balde e vomitou dentro. O terceiro... bem, colocou um jornal no chão, fez o que os leitores estão imaginando, embrulhou e colocou na mesa. O trio alegou que o ato era um “terrorismo poético”. Já a universidade registrou queixa e estuda qual a punição adequada.

Não contesto que tenha sido um ato de terrorismo. Cada um abraça a modalidade de terror que mais lhe agrada e convém. Tudo depende da crença e da coragem de cada um. Alguns, extremistas, atam explosivos ao corpo e se explodem matando inocentes em nome de uma causa que acreditam justa. Outros urinam, vomitam e defecam em público e muito provavelmente isso represente o limite de sua criatividade, de sua capacidade e de sua coragem.

Também não discuto o conteúdo artístico da manifestação. Depois de notícias de que uma
faxineira de museu jogou obra fora pensando ser lixo (era, na verdade, um saco de lixo implantado no museu Tate Britain, em Londres, pelo artista Gustav Metzger visando demonstrar a "existência finita" da arte); de que em 2001, uma faxineira na galeria londrina Eyestorm limpou a instalação do artista Damien Hirst achando que era uma pilha de lixo (garrafas de cerveja, copos de café e cinzeiros sujos representando o caos do estúdio de um artista); de que na década de 80, obra de Joseph Beuys, uma banheira suja, foi limpa por um funcionário de uma galeria na Alemanha; de que uma menina de oito anos foi louvada como escritora; de que o chimpanzé Congo teve três das telas abstratas que pintou arrematadas em Londres por US$ 26 mil, nada que provém do mundo da arte me surpreende.

Até porque, gosto não se discute, como dizia a velhinha solitária, de 90 anos, que vivia no meio do mato e se alimentava exatamente daquilo que o terceiro universitário embrulhou no jornal.

Também entendo perfeitamente, e com muito mais vigor, o conteúdo político do ato.

Universitários são seres sempre muito politizados (ou pelo menos acreditam que o são).

Então eles apenas exercitaram aquilo que farão mais tarde na vida, pois é possível visualizar em seu comportamento, com bastante nitidez, um teor em grande parte político-partidário.

Certamente eles serão candidatos a algum cargo, poderão incluir esse ato em seus currículos, e estarão preparados para dominar a cena política do futuro.

Igualzinho ao que muitos políticos estão fazendo hoje.




Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 04/08/2005.
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