29/11/2007

A Busca do Tempo Anterior

Ilton Carlos Dellandréa


IV – CANTATA
Soneto: allegro moderato e patético



Eu sinto saudades de alguém de quinze anos
Que partiu num mês do ano que não terminou.
Desconjuntaram-se os meus mais belos planos
Nem consigo interpretar o que de mim restou.

Eu sinto saudades de alguém de quinze anos
que mesmo que retorne hoje não voltará jamais.
Não parte quem caminha por caminhos estranhos,
Mas entalha em quem fica desencontrados sinais.

Como voltará quem existiu e não existe e existe,
que partiu e não partiu e nem nunca partiria
e esteve longe e perto e nunca e sempre aqui?

Como explicar à minha alma assombrada e triste
que o que não passou não passou mas passaria
e que eu viveria um grande amor – e não vivi?

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25/11/2007

DETESTO EM FILMES

Partos explícitos com mulheres berrando. Na vida real nem todas gritam. Não sei por que a maioria dos diretores acha criativo inserir este tipo de cena em seus filmes. Já foi criativo uma vez. Hoje é banal e irritante. O pior é quando a criança nasce com as feições de quem tem um ano de idade, pele lisinha e cor normal, quando se sabe que elas nascem feias, vermelhas e enrugadas. Em alguns casos tem-se a impressão de que se o parteiro não cuidar o recém-nascido sai saltitando ventre afora.

Em documentários cansei de cenas de predação de animais mais fortes por mais fracos, ainda que justificadas pela lei da sobrevivência e pelo equilíbrio ecológico. Tornaram-se banais, são carnificinas, e às vezes sem sentido no contexto em que veiculadas. Se o leão mata o veado e a hiena se aproveita dos restos e os corvos dos restos dos restos e isto faz parte da lei de sobrevivênvia, tudo bem. É assim mesmo. Mas mostrar todos os dias chateia!

Também não gosto de certos exageros nos filmes que abordam o nazismo. Foi uma página negra na história mas há que se levar em conta que, apesar de toda a lavagem cerebral aplicada por Hitler e seus asseclas, havia oposição na Alemanha e nem todos os alemães aprovavam a política do ditador. O pior é quando, mesmo nos filmes sérios, caricaturizam esse povo que já pagou por seus erros e é um dos mais cultos do mundo, que nos deu Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, para ficar só no campo da Música.

Estão agora criticando um filme que exibe Hitler acariciando animais e atencioso com crianças. Não há nada demais. Se ele fosse bandido desde pequeno não teria chegado onde chegou. Só no Brasil é que quem já foi condenado pode voltar a concorrer em eleições, mesmo pendente contra ele ordem de prisão. Aliás, entre 3 e 5 anos de idade Hitler devia ser uma gracinha, como qualquer criança. Depois é que veio a insanidade. Além disto, conheço muita gente que chama cachorro de filho e filho de cachorro e que é considerada boníssima...

Não gosto de cenas de sexo sobre a mesa ou o balcão da cozinha. Que mau gosto! Sem contar o perigo de alguém machucar-se numa faca, espetar-se num garfo, lambuzar-se de catchup ou mostarda, levar um choque na torneira elétrica, queimar-se numa das bocas do fogão ainda quente... Porque essas cenas ocorrem sempre com avidez, com pressa, com sofreguidão. Não deve ser agradável passar a mão numa bunda suja de água de louça ou ensebada de margarina.

Não posso deixar de fazer uma comparação. Hoje, mesmo as mulheres que transam a cada minuto num filme nunca engravidam. Antigamente um beijo engravidava. Viva a pílula!

Também não gosto de crianças fazendo papel de adultos ou de adultos fazendo papel de crianças. Não há nada mais ridículo do que um guri almofadinha, de óculos, terno e gravata, imitando um executivo.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 21/09/2004.

17/11/2007

Chove na Minha Capacidade Mental

A minha mentalidade é tacanha. Não consigo entender certas coisas, por mais que me esforce. Acho que é uma dificuldade natural de absorver idéias. Nem sei como fui aprovado no concurso para Juiz. Acredito, até, que se algum advogado mais atilado resolver tomar alguma providência poderá anular as sentenças que prolatei argüindo minha incapacidade mental.

Hoje, por exemplo, alguém teve a idéia de fechar o trânsito de automóveis na avenida João Pessoa para conscientizar os motoristas sobre a poluição. Mas o dia acordou com chuva torrencial, acho que foi a manhã mais chuvosa do ano. Resultado: engarrafamento, gente chegando tarde ao trabalho e muita irritação. Certamente não vai produzir o menor efeito.

Vão dizer que o fechamento estava programado e que integra uma campanha mundial. Tudo bem. Mas não haveria ninguém com autoridade para, nessas circunstâncias especiais, adiar o evento? Os motoristas, fechados em seus veículos, com pouca visibilidade, sequer poderiam adivinhar os motivos da paralisação. Debaixo da chuva não apareceu ninguém para divulgá-los...

Há alguns anos, no centro, presenciei uma cena deplorável: dezenas de deficientes mentais (outrora chamados de mongolóides) foram reunidos na praça defronte ao antigo Palácio da Justiça e conclamados a se darem as mãos e “abraçar a praça”...

Não sei de qual mente luminosa partiu a idéia, não sei dos motivos nem do resultado. Nem quem idealizou tal abraço. Os deficientes jamais teriam esse tipo de iniciativa.

Estava quente e pouco depois alguns começaram a se sentir mal, desmaiaram, vomitavam, e a brilhante manifestação foi interrompida.

Acabaram protestando contra seus mentores da melhor forma possível: sentindo-se mal e desmaiando, ainda que não tivessem consciência de que isto era um modo muito peculiar de protestar.

Essas são coisas que não consigo entender.

Na próxima manifestação de deficientes vou participar, dar as mãos a eles, abraçar a praça e vomitar nos pés dos organizadores. Acho que ali é o lugar adequado para mim. Os deficientes têm suas limitações mas sabem que certas coisas são impraticáveis: vomitar para o alto, por exemplo, é contraproducente.

Assim como fechar uma avenida movimentada em Porto Alegre, num dia de chuva torrencial, para alertar motoristas de que há poluição em São Paulo.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 22/09/2004.

11/11/2007

SAINT-EXUPÉRY, PILOTO DE GUERRA

Antoine de Saint-Exupéry foi escritor muito além do estigma de O Pequeno Príncipe, depreciado no Brasil por ser considerado o livro das misses. Garanto que é um bom livro e que vale à pena ser lido e relido.

Abaixo, trecho de Piloto de Guerra (a causa perdida da França no que ela tem de humano, de heróico e de burlesco), que escreveu durante a II Guerra Mundial, em que ele tece considerações sobre a preparação para mais uma das missões aéreas que julgava inúteis, na França dominada.

Ele era escritor e piloto consagrado e por sua idade fora aconselhado a se afastar do campo de operações, mas não lhe agradava a situação de espectador: Que sou eu se não participo?

"O Comandante Alias passa a noite em casa do General a discutir lógica pura. A lógica pura arruína a vida do espírito. Depois, uma vez na estrada, esgotou-se em intermináveis engarrafamentos. Depois encontrou, ao regressar ao Grupo, centenas de dificuldades materiais, daquelas que nos roem pouco a pouco como os inúmeros efeitos de um desmoronamento de montanha que não fôssemos capazes de conter. E, por fim, convocou-nos para nos lançar numa missão impossível. Somos objecto da incoerência geral. Não somos para ele Saint-Exupéry ou Dutertre, dotados de uma maneira particular de ver as coisas ou de não as ver, de pensar, de andar, de beber, de sorrir. Somos partes de um grande edifício cujo conjunto necessita de mais tempo, mais silêncio e mais projecção para se descobrir. Se eu padecesse de um tic, Alias só repararia no tic. E só expediria para Arras a imagem de um tic. No meio da algaraviada dos problemas postos, no meio da derrocada, dividimo-nos a nós próprios em bocados. Esta voz. Este nariz. Este tic. E os bocados não tocam no coração.

E aqui já não se trata de um Comandante Alias, mas de todos os homens. No decurso dos trabalhos de enterro, nós, que amávamos o morto, não nos sentimos em contacto com a morte. A morte é uma coisa importante. É uma nova rede de relações com as idéias, com os objectos, com os hábitos do morto. É um novo arranjo do mundo. Nada mudou na aparência, mas tudo mudou na realidade. As páginas do livro são as mesmas, mas não é o mesmo o sentido do livro. Para sentirmos a morte, precisamos de imaginar as horas em que temos necessidade do morto. É então que ele falta. Imaginar as horas em que teria tido necessidade de nós. Mas ele já não tem necessidade de nós. Imaginar a hora da visita amiga. E, descobri-la, dói. Precisamos de ver a vida com perspectiva. Mas não há perspectiva nem espaço no dia em que o enterramos. O morto está ainda em pedaços. No dia em que o enterraram, dispersamo-nos em impaciências, nas mãos de amigos verdadeiros ou falsos a apertar, em preocupações materiais. O morto só amanhã morrerá, quando houver silêncio. Só então se nos mostrará na sua plenitude, para se arrancar, na sua plenitude à nossa substância. Nessa altura, havemos de gritar que parte sem nós o podermos impedir.

Não gosto das imagens de Epinal relativas à guerra. Deparamos, aí, com um guerreiro rude, que esconde uma lágrima e dissimula a sua emoção com ditos grosseirões. Tudo isso é falso. O rude guerreiro não dissimula nada. Se deixa cair uma grosseria é porque realmente pensa numa grosseria.

A qualidade do homem não se encontra em causa. O Comandante Alias é sensível como qualquer outra pessoa. Se nós não voltarmos sofrerá talvez mais do que os outros. Com a condição de que se trate de nós e não de um somatório de pormenores diversos. Com a condição de que esta reconstituição lhe seja permitida pelo silêncio. Porque, se esta mesma noite, o meirinho que nos persegue obrigar mais uma vez o Grupo a mudar de poiso ou uma roda de um camião se avariar, na avalanche dos problemas há-de adiar para mais tarde a nossa morte. E Alias esquecer-se-á de sofrer com ela.

E é desta maneira que eu, que parto em missão, não penso na luta do Ocidente contra o nazismo. Penso pormenores imediatos, penso em como absurdo é sobrevoar Arras a setecentos metros. Na fragilidade das informações que desejam de nós. Penso ainda na lentidão com que me visto, nessa toilette que se me afigura uma toilette para o carrasco. E depois penso nas minhas luvas. Onde é que diabo vou encontrar as minhas luvas? Querem ver que perdi as luvas!

Não consigo ver a catedral onde moro.

Estou a vestir-me para o serviço de um deus morto".



Saint-Exupéry,
in Piloto de Guerra,
Editorial Aster – Lisboa, 7.ª edição, págs. 25/27.

03/11/2007

ANÃO GIGANTE EXISTE...

Em princípio, nada tenho contra as Olimpíadas. Servem, até, para quebrar a monotonia televisiva nossa de cada dia, apesar dos lugares comuns: a falta de criatividade faz com que os repórteres rebusquem coisas velhas nos seus baús e tentem nos impingir como novas.

O Arnaldo Jabor falou do Jesse Owens e da humilhação que em 1936 infligiu a Hitler, que por puro despeito teria se retirado do estádio, o que, a bem da verdade, não foi comprovado. O mundo não precisa mais dessas forçadas. Certas coisas não precisam ser sempre lembradas. As más lembranças podem induzir fatos negativos.

Ainda bem que não mostraram – pelo menos não vi – aquela alemã cambaleante, retorcida e descoordenada na linha de chegada de uma corrida como exemplo de superação. Aquilo foi a mais pura demonstração de desrespeito ao próprio corpo e à própria saúde.

Mas há a possibilidade de enriquecimento cultural. Com o Sílvio Luiz e a Magic Paula aprendi, por exemplo, que a Nova Zelândia fica na Europa... Logo em seguida eles corrigiram o erro.

Eu vi o Brasil conquistar sua primeira medalha de bronze, no judô. Foi uma luta sem graça, um agarra-agarra que não saiu da tentativa, parecia até que um estava tirando o outro para dançar mas não chegavam a um acordo sobre quem faria o papel da moça e quem o do varão. O brasileiro ganhou pelas punições que o adversário sofreu e não por algum golpe mais vistoso de sua iniciativa.

Eu fiz duas aulas de judô, no tempo da faculdade, no prédio da Medicina, situado na praça do "Kioski", que o Carlos Damião vem mostrando no seu blog. O professor era um Aducci, cujo prenome não lembro.

Experimentei então uma das minhas mais gloriosas realizações esportivas. Aquilo é que foi superação! Tinha que correr, apoiar as mãos no chão, virar, rolar, levantar e sair correndo novamente. Nunca conseguira fazê-lo antes, por isto exagerei na impulsão e cai de bunda. O choque foi tão forte que até o lustre estremeceu. E o piso era de concreto... Se o Aducci for muito persistente deve estar ainda hoje me esperando para a terceira aula.

Eu sei que é querer demais, mas preferiria que vencessem os naturalmente mais fortes. Aqueles a quem a natureza dotou de dons, força e talento superiores e não aqueles que os conseguem através de hormônios ou outras drogas. Os resultados que temos aí parecem artificializados através dessas substâncias e isto não pode servir de parâmetro para a história da fisiologia humana – se é que alguém busca algum estudo científico nas olimpíadas.

Vencem os que usam drogas cada vez mais elaboradas, recebem preparação especialíssima e são criados em viveiros com finalidade predeterminada. Como os nadadores. Li, numa reportagem sobre o Ian Thorpe, o australiano, que as drogas que tomava para reforçar sua massa muscular lhe davam aquelas feições de rosto e nariz compridos. Passei a perceber que com outros nadadores ocorre o mesmo. Daqui a uns tempos vai ser difícil distingui-los quando estiverem juntos no tablado de largada.

No final, a sensação de que foram quebrados mais recordes mas, pelos métodos empregados, que os novos limites superados foram sempre os artificiais e não os naturais do homem. Apesar de não se poder esquecer do treinamento a que se dedicam.

De resto, devo um pedido de desculpas ao meu filho. Sempre procuramos educar nossos num clima de absoluta sinceridade. Mesmo quando ele teve que tomar uma benzetacil e perguntou se ia doer eu respondi que sim, e bastante.

Quando contava com 8 ou 9 anos de idade me fez uma pergunta que só da mente infantil pode brotar:

– Pai. Existe anão gigante?

Respondi que não, que seria um contra-senso, um anão gigante seria uma pessoa adulta normal.

Mas numa prova de levantamento de pesos vi um anão gigante oriental, não sei de que país, lutando contra seus flatos para erguer os halteres. Não deve ter passado das provas preliminares, porque não mais apareceu.

Então, meu filho, segue a retificação e o meu pedido de desculpas, embora com 10 ou 11 anos de atraso: anão gigante existe.





Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 26/08/2004, tempo de Olimpíadas em Atenas, Grécia.