31/12/2007

24/12/2007

FELIZ NATAL



Todos de nossa família fazemos votos de que você tenha um Natal sereno e tranqüilo, na medida em que possa sê-lo.

Não a falsa alegria provocada pelo uísque ou pela cerveja que a gente toma para fingir que está tudo bem.

Mas a paz dos momentos alegres que se intercalam entre os fatos tristes de nossas vidas e que, no fim das contas, são os que valem, se tivermos a capacidade de não nos esquecer deles.

23/12/2007

UMA LENDA

.
A lenda que segue ouvi há muito tempo em algum curso de controle mental, ou algo parecido, e no Natal de 1999 — quando ainda não tinha blog — a montei caprichosamente na forma de um artigo .pps e a enviei para meus amigos.

A redação é minha. Mas a lenda é antiga. Passo-a como dela recordei há oito anos.

Muito antigamente, aí pelos tempos de Cristo, quando os moradores das cidades se abasteciam das fontes, de uma delas, na entrada de uma vila, cuidava um velhinho. Ali chegou um filósofo exausto e sentou-se para descansar.

Pouco depois chegou um viajante, bebeu da fonte, e perguntou ao velhinho se aquela cidade era boa para se viver.

O velhinho respondeu que era uma cidade normal e indagou do viajante como era a cidade de onde ele provinha.

Ele disse cobras e lagartos a respeito, referiu se tratar de um povo sovina, maledicente e ruim, e que por isto ele estava saindo de lá.

— Pois esta cidade aqui é exatamente igual àquela de onde você vem - respondeu o velhinho.

E o viajante seguiu viagem, revoltado.

Algum tempo depois, outro viajante chegou e fez a mesma pergunta e em resposta obteve a mesma indagação do velhinho: como era a cidade de onde provinha?

O segundo viajante respondeu que era um ótimo lugar para viver, que as pessoas eram honestas, gentis e cordatas e que ele estava saindo dela a contragosto, premido por circunstâncias pessoais.

— Pois esta cidade aqui é exatamente igual àquela de onde você vem - respondeu o velhinho.

E o viajante seguiu para a cidade, contente.

O filósofo, que ouvira tudo, quis saber do velhinho porque para duas perguntas iguais ele dera respostas tão diferentes.

Ele respondeu o óbvio: as pessoas são aquilo que a gente quer que elas sejam, as cidades são todas iguais e gostar delas depende da forma que a gente as enfrente, pois está dentro de cada um a possibilidade de fazer seu ambiente.


Resolvi transcrevê-la aqui não por transmitir alguma grande verdade filosófica. Mas, vamos dizer, uma pequena lição de vida.

.

21/12/2007

NÃO VENHAS

[591] — 28-8-1927

Fernando Pessoa










NÃO VENHAS sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
Quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu rales —
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.





Fernando Pessoa
Poesias Coligidas — Inéditas (1919-1935)
in Fernando Pessoa,
Obra Poética, página 509,
Companhia José Aguilar Editora (1974).
.

16/12/2007

MÃOS


Há muita gente que sente atração sexual por pés.

Eu gosto de mãos. Elas me atraem mas posso dizer com absoluta certeza de que não se trata de fetichismo, pelo menos de ordem sexual.

As mãos me comovem. Principalmente as mãos pequenas que surgem, naturalmente, de mangas largas, o que lhes acentua a delicadeza.

A revista IstoÉ n.º 1831, de 10/11/2004, traz a foto de uma menina segurando uma vela para Arafat. A menina é linda, a foto é muito bonita, mas aquelas mãozinhas pequenas estendendo-se além de pesadas mangas largas é que me causam maior emoção.

As mãos da Mona Lisa, por exemplo, que publiquei recentemente aqui. São belíssimas. Quem quiser que fique com o seu sorriso meio idiota. Eu fico com as mãos.

Uma das fotos de minha filha que mais gosto é aquela em que ela está com o marido no cume do vulcão Villarrica, no Chile. Publiquei
aqui. Ambos estão mascarados e vocês só sabem que são minha filha e genro porque estou dizendo.




Mas reparem nos detalhes das mãos: ela, aconchegada a ele, a mão pequena junto ao seu corpo, como que pedindo proteção especial. E a manopla dele amparando-a, formando um contraste tranqüilo e que transmite segurança e serenidade.

Há duas fotos dela, quando pequena, que também gosto muito. Numa ela tinha uns três meses e está no colo da Ieda. Noutra, com uns cinco anos, debruçada no espaldar de um sofá.




Aqui em casa há ainda as mãos da Ieda, que pinta com delicadeza seus quadros que já espalhei por aí, neste blog. E as mãos do meu filho que toca piano e enche de sonoridade a casa e a vizinhança.




Chego a gostar narcisisticamente das minhas, pequenas, gordas e sardentas e com polegares indesculpavelmente atrofiados. Mas são as únicas que tenho.

Perdão àqueles que sentem atração, afetiva ou sexual, por pés. As mãos são muito mais comovedoras.

Mas para que não me tachem de parcial e para satisfazer a concupiscência daqueles apaixonados por pés deixo, abaixo, um detalhe de um quadro pintado pelas mãos da Ieda. Ele pode ser visto, inteiro, no Espelho sem Aço.






Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 13/11/2004.
A primeira foto é de Richard Harbus / EFE.

.

14/12/2007

SE...

de Rudyard Kipling
(tradução de Alcântara Machado)




Se puderes guardar o sangue frio diante
de quem fora de si te acusar; e, no instante
em que duvidem do teu ânimo e firmeza,
tu puderes ter fé na própria fortaleza,
sem desprezar contudo a desconfiança alheia...

Se tu puderes não odiar a quem te odeia
nem pagar com a calúnia a quem te calunia,
sem que tires daí motivos de ufania;
sonhar, sem permitir que o sonho te domine;
pensar, sem que em pensar tua ambição se confirme;
e esperar sempre e sempre, infatigavelmente...

Se com o mesmo sereno olhar indiferente
puderes encarar a Derrota e a Vitória,
como embustes que são da fortuna ilusória;
e estóico suportar que intrigas e mentiras
deturpem a palavra honesta que profiras...

Se puderes, ao ver em pedaços destruída
pela sorte maldosa, a obra de tua vida,
tomar de novo a ferramenta desgastada
e sem queixumes vãos, recomeçar do nada...

Se, tendo loucamente arriscado e perdido
tudo o quanto era teu, num só lance atrevido,
tu puderes voltar à faina ingrata e dura,
sem aludir jamais à sinistra aventura...

Se tu puderes coração, músculos, nervos,
reduzir da Vontade à condição de servos,
que, embora exaustos, lhe obedeçam ao comando...

Se, andando a par dos reis e com os grandes lidando,
puderes conservar a naturalidade,
e no meio da turba a personalidade;
impávido afrontar adulações, engodos,
opressões; merecer a confiança de todos,
sem que possas contar, todavia, contigo,
incondicionalmente o teu melhor amigo...

Se, de cada minuto os sessenta segundos,
tu puderes tornar com o teu suor fecundos...
a Terra será tua, e os bens que se não somem,
e, o que é melhor, meu filho, então serás um Homem!


.

09/12/2007

MERAS CASUALIDADES...

Há certos detalhes da vida que fazem, ou pelo menos permitem, pensar e sorrir. Há alguma coisa assim no casamento da Ieda e meu. Ou dela comigo, ou o contrário. Acho que é dela comigo, porque quando eu apenas iniciava falar de namoro — levei uns dois meses para conquistá-la — ela, que sempre foi muito objetiva e prática, já pensava em casamento e filhos... Quando percebi estava casado. Mas esta é outra história.

É claro que, para o sucedido, tem muita importância o fato de sermos originários de uma cidade, Taió, que naquela época era ainda menor que hoje. Todo mundo se conhecia.

Nos tempos da juventude de nossos pais era ainda menor, mas menor do que aquilo é quase impossível admitir que pudesse ser, embora não estivéssemos lá para conferir.

Mas em determinadas épocas da vida deles, antes de se casarem, meu pai namorou a mãe da Ieda e o pai da Ieda, por sua vez, namorou minha mãe. Todos eram meio dançadores — naquele tempo quem não o fosse tinha chances enormes de permanecer solteiro — e havia bailes e domingueiras nos quais os jovens se encontravam. Desses encontros surgiam esses namoricos.

Não foram namoros daqueles que prenunciavam a superveniência de um casamento até que a morte os separasse, mas apenas flertes, bem mais comportados e comedidos do que os ficar de hoje. Naquele tempo flertes e namoros eram — digamos — mais respeitosos, para usar termo da época.

Mas houve alguma coisa entre eles, alguma química — já usando um termo mais atual — que provocou esses namoros de través.

Há outra circunstância também interessante.

Minha mãe trabalhava com um tio meu, casado com uma de suas irmãs mais velhas, num pequeno negócio de secos e molhados que ele mantinha na parte frontal da residência. Foi lá que meu pai conheceu minha mãe, depois namoraram e casaram.

Anos mais tarde os pais da Ieda moraram naquela casa, por pouco tempo, mas o suficiente para que eu a conhecesse e passasse a namorar com ela. Então, na mesma casa em que meu pai conheceu minha mãe eu conheci a Ieda...

Haverá algum desígnio enigmaticamente superior que dirigiu aqueles pontos de luz (nossos pais) e suas linhas de vida em intersecções atravessadas que depois se desfizeram, se refizeram nos limites dos dois casais que casaram e geraram, entre outros, dois filhos que um dia se encontraram, casaram, e tiveram seus próprios filhos?

Seria isto uma continuidade da química afetiva que uma vez os atraiu, primeiro provisoriamente, depois, alterados os sujeitos da relação, com definitividade, ou são detalhes que podem ser jogados na vala comum do acaso?

Eu não sei explicar essas casualidades. Talvez a
Giorgia... Sou bastante cético e acho mais simples crer que foi mera coincidência.

Pode não ser nada transcendental, mas pelo menos é um tema agradável a ser discutido numa roda de amigos quando, depois de esgotados os assuntos fúteis, aquele silêncio constrangedor cai estrondosamente no ambiente e as mentes, obliteradas pelo vinho, a censura de guarda baixa, permitem falar de coisas sérias.

E se aquela casa em que a gente se conheceu ainda estivesse lá eu a compraria. Ah, compraria! Desde que, antes, ganhasse na mega-sena.

Mas ela foi demolida e ergueram no local um posto de gasolina. Não poderia ser mais desestimulante. Só o combustível me interessaria. O posto não.




Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 11/10/2004.

01/12/2007

APRECIE COM MODERAÇÃO

Ontem, para comemorar o fato de não termos mais crianças em casa, demos um presentinho para o Francisco, que tem 19 anos, e depois voltamos ao quarto para chorar. Quando as crianças crescem mais do que os pais se comemora assim.

Depois, conformados, telefonamos para uns casais, daqueles que compartilham a mesma situação estrutural, para tomarmos alguma coisa e esquecer que estamos transpondo a ponte do Tempo. O pior é constatar que o trajeto é mais extenso às nossas costas do que à frente. A ponte é pênsil, as travessas vão rompendo a cada pisada, e não se tem como voltar.

Estamos numa fase em que somos muitos velhos para ter filhos pequenos e muitos jovens para ter netos, embora a Clarissa, se quisesse, já poderia ter uns dois ou três filhos. Sei não, Tibério (Tibério é o marido dela). Às vezes imagino que devêssemos educar os filhos com menos ponderação. Ela pretende antes se estabelecer bem na vida. Se nós tivéssemos pensado assim ela ainda não teria nascido. Nem o Francisco.

Os amigos chegaram – graças a Deus, porque este papo estava se tornando muito lamentoso –, passamos numa revendedora de bebidas, compramos um barril de chope, e fomos para a sede campestre da AJURIS. Sempre fui muito consciencioso e atendo aos apelos cívicos com muita abnegação. Por isto chamei a atenção de todo o mundo:

– Aqui, ó! – estou ficando meio agauchado – Não se esqueçam da orientação do Ministério da Saúde: apreciem com moderação.

Os anúncios de determinada cerveja, após sugerirem autênticas bebedeiras, terminam com essa cândida mensagem, ditada por ordem legal: aprecie com moderação.

Um ou dois torceram o nariz. Estávamos em oito. Nenhum dos demais era ou fora juiz. Juízes geralmente são muito chatos quando se reúnem, só falam de direito, justiça e processos. Alguém murmurou “ele está aposentado, mas vive cagando regras como se fosse juiz e nós réus”. Eu não ouvi nada.

Acomodamos a serpentina com gelo e sangramos o barril enquanto na churrasqueira preparava-se o salsichão. É! Depois de 22 anos de convivência sou obrigado a reconhecer: estou me agauchando mesmo. Mesmo assim, não entendo porque o gaúcho chama uma lingüiça anã de salsichão. Além de desprezar a natureza componencial do recheio usa um aumentativo para indicar uma coisa pequena. Vou pensar nisto com mais profundidade outro dia. Em Santa Catarina, pelo menos em Taió, dizemos “lingüicinha”, com maior propriedade.

Filosofamos um pouco, no início, mas logo veio a euforia e concluímos que casais sem filhos pequenos e ainda sem netos não passam de crianças. Então aquele era o nosso dia, nos alegramos, e aproveitamos para festar. Pelas 16,00 horas o barril secou.

O chope não era dos melhores. Por isto, embora tivéssemos bebido tudo, o apreciamos apenas com moderação e nos orgulhamos por ter obedecido à sábia orientação do Ministério da Saúde.

“Aprecie com moderação” não é uma exortação a que você beba menos, mas sim a que você aprecie menos, mesmo bebendo bastante. Ou tudo. Embora aparente, não há contradição alguma.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 13/10/2004, um dia depois do Dia da Criança.

29/11/2007

A Busca do Tempo Anterior

Ilton Carlos Dellandréa


IV – CANTATA
Soneto: allegro moderato e patético



Eu sinto saudades de alguém de quinze anos
Que partiu num mês do ano que não terminou.
Desconjuntaram-se os meus mais belos planos
Nem consigo interpretar o que de mim restou.

Eu sinto saudades de alguém de quinze anos
que mesmo que retorne hoje não voltará jamais.
Não parte quem caminha por caminhos estranhos,
Mas entalha em quem fica desencontrados sinais.

Como voltará quem existiu e não existe e existe,
que partiu e não partiu e nem nunca partiria
e esteve longe e perto e nunca e sempre aqui?

Como explicar à minha alma assombrada e triste
que o que não passou não passou mas passaria
e que eu viveria um grande amor – e não vivi?

.

25/11/2007

DETESTO EM FILMES

Partos explícitos com mulheres berrando. Na vida real nem todas gritam. Não sei por que a maioria dos diretores acha criativo inserir este tipo de cena em seus filmes. Já foi criativo uma vez. Hoje é banal e irritante. O pior é quando a criança nasce com as feições de quem tem um ano de idade, pele lisinha e cor normal, quando se sabe que elas nascem feias, vermelhas e enrugadas. Em alguns casos tem-se a impressão de que se o parteiro não cuidar o recém-nascido sai saltitando ventre afora.

Em documentários cansei de cenas de predação de animais mais fortes por mais fracos, ainda que justificadas pela lei da sobrevivência e pelo equilíbrio ecológico. Tornaram-se banais, são carnificinas, e às vezes sem sentido no contexto em que veiculadas. Se o leão mata o veado e a hiena se aproveita dos restos e os corvos dos restos dos restos e isto faz parte da lei de sobrevivênvia, tudo bem. É assim mesmo. Mas mostrar todos os dias chateia!

Também não gosto de certos exageros nos filmes que abordam o nazismo. Foi uma página negra na história mas há que se levar em conta que, apesar de toda a lavagem cerebral aplicada por Hitler e seus asseclas, havia oposição na Alemanha e nem todos os alemães aprovavam a política do ditador. O pior é quando, mesmo nos filmes sérios, caricaturizam esse povo que já pagou por seus erros e é um dos mais cultos do mundo, que nos deu Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, para ficar só no campo da Música.

Estão agora criticando um filme que exibe Hitler acariciando animais e atencioso com crianças. Não há nada demais. Se ele fosse bandido desde pequeno não teria chegado onde chegou. Só no Brasil é que quem já foi condenado pode voltar a concorrer em eleições, mesmo pendente contra ele ordem de prisão. Aliás, entre 3 e 5 anos de idade Hitler devia ser uma gracinha, como qualquer criança. Depois é que veio a insanidade. Além disto, conheço muita gente que chama cachorro de filho e filho de cachorro e que é considerada boníssima...

Não gosto de cenas de sexo sobre a mesa ou o balcão da cozinha. Que mau gosto! Sem contar o perigo de alguém machucar-se numa faca, espetar-se num garfo, lambuzar-se de catchup ou mostarda, levar um choque na torneira elétrica, queimar-se numa das bocas do fogão ainda quente... Porque essas cenas ocorrem sempre com avidez, com pressa, com sofreguidão. Não deve ser agradável passar a mão numa bunda suja de água de louça ou ensebada de margarina.

Não posso deixar de fazer uma comparação. Hoje, mesmo as mulheres que transam a cada minuto num filme nunca engravidam. Antigamente um beijo engravidava. Viva a pílula!

Também não gosto de crianças fazendo papel de adultos ou de adultos fazendo papel de crianças. Não há nada mais ridículo do que um guri almofadinha, de óculos, terno e gravata, imitando um executivo.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 21/09/2004.

17/11/2007

Chove na Minha Capacidade Mental

A minha mentalidade é tacanha. Não consigo entender certas coisas, por mais que me esforce. Acho que é uma dificuldade natural de absorver idéias. Nem sei como fui aprovado no concurso para Juiz. Acredito, até, que se algum advogado mais atilado resolver tomar alguma providência poderá anular as sentenças que prolatei argüindo minha incapacidade mental.

Hoje, por exemplo, alguém teve a idéia de fechar o trânsito de automóveis na avenida João Pessoa para conscientizar os motoristas sobre a poluição. Mas o dia acordou com chuva torrencial, acho que foi a manhã mais chuvosa do ano. Resultado: engarrafamento, gente chegando tarde ao trabalho e muita irritação. Certamente não vai produzir o menor efeito.

Vão dizer que o fechamento estava programado e que integra uma campanha mundial. Tudo bem. Mas não haveria ninguém com autoridade para, nessas circunstâncias especiais, adiar o evento? Os motoristas, fechados em seus veículos, com pouca visibilidade, sequer poderiam adivinhar os motivos da paralisação. Debaixo da chuva não apareceu ninguém para divulgá-los...

Há alguns anos, no centro, presenciei uma cena deplorável: dezenas de deficientes mentais (outrora chamados de mongolóides) foram reunidos na praça defronte ao antigo Palácio da Justiça e conclamados a se darem as mãos e “abraçar a praça”...

Não sei de qual mente luminosa partiu a idéia, não sei dos motivos nem do resultado. Nem quem idealizou tal abraço. Os deficientes jamais teriam esse tipo de iniciativa.

Estava quente e pouco depois alguns começaram a se sentir mal, desmaiaram, vomitavam, e a brilhante manifestação foi interrompida.

Acabaram protestando contra seus mentores da melhor forma possível: sentindo-se mal e desmaiando, ainda que não tivessem consciência de que isto era um modo muito peculiar de protestar.

Essas são coisas que não consigo entender.

Na próxima manifestação de deficientes vou participar, dar as mãos a eles, abraçar a praça e vomitar nos pés dos organizadores. Acho que ali é o lugar adequado para mim. Os deficientes têm suas limitações mas sabem que certas coisas são impraticáveis: vomitar para o alto, por exemplo, é contraproducente.

Assim como fechar uma avenida movimentada em Porto Alegre, num dia de chuva torrencial, para alertar motoristas de que há poluição em São Paulo.



Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 22/09/2004.

11/11/2007

SAINT-EXUPÉRY, PILOTO DE GUERRA

Antoine de Saint-Exupéry foi escritor muito além do estigma de O Pequeno Príncipe, depreciado no Brasil por ser considerado o livro das misses. Garanto que é um bom livro e que vale à pena ser lido e relido.

Abaixo, trecho de Piloto de Guerra (a causa perdida da França no que ela tem de humano, de heróico e de burlesco), que escreveu durante a II Guerra Mundial, em que ele tece considerações sobre a preparação para mais uma das missões aéreas que julgava inúteis, na França dominada.

Ele era escritor e piloto consagrado e por sua idade fora aconselhado a se afastar do campo de operações, mas não lhe agradava a situação de espectador: Que sou eu se não participo?

"O Comandante Alias passa a noite em casa do General a discutir lógica pura. A lógica pura arruína a vida do espírito. Depois, uma vez na estrada, esgotou-se em intermináveis engarrafamentos. Depois encontrou, ao regressar ao Grupo, centenas de dificuldades materiais, daquelas que nos roem pouco a pouco como os inúmeros efeitos de um desmoronamento de montanha que não fôssemos capazes de conter. E, por fim, convocou-nos para nos lançar numa missão impossível. Somos objecto da incoerência geral. Não somos para ele Saint-Exupéry ou Dutertre, dotados de uma maneira particular de ver as coisas ou de não as ver, de pensar, de andar, de beber, de sorrir. Somos partes de um grande edifício cujo conjunto necessita de mais tempo, mais silêncio e mais projecção para se descobrir. Se eu padecesse de um tic, Alias só repararia no tic. E só expediria para Arras a imagem de um tic. No meio da algaraviada dos problemas postos, no meio da derrocada, dividimo-nos a nós próprios em bocados. Esta voz. Este nariz. Este tic. E os bocados não tocam no coração.

E aqui já não se trata de um Comandante Alias, mas de todos os homens. No decurso dos trabalhos de enterro, nós, que amávamos o morto, não nos sentimos em contacto com a morte. A morte é uma coisa importante. É uma nova rede de relações com as idéias, com os objectos, com os hábitos do morto. É um novo arranjo do mundo. Nada mudou na aparência, mas tudo mudou na realidade. As páginas do livro são as mesmas, mas não é o mesmo o sentido do livro. Para sentirmos a morte, precisamos de imaginar as horas em que temos necessidade do morto. É então que ele falta. Imaginar as horas em que teria tido necessidade de nós. Mas ele já não tem necessidade de nós. Imaginar a hora da visita amiga. E, descobri-la, dói. Precisamos de ver a vida com perspectiva. Mas não há perspectiva nem espaço no dia em que o enterramos. O morto está ainda em pedaços. No dia em que o enterraram, dispersamo-nos em impaciências, nas mãos de amigos verdadeiros ou falsos a apertar, em preocupações materiais. O morto só amanhã morrerá, quando houver silêncio. Só então se nos mostrará na sua plenitude, para se arrancar, na sua plenitude à nossa substância. Nessa altura, havemos de gritar que parte sem nós o podermos impedir.

Não gosto das imagens de Epinal relativas à guerra. Deparamos, aí, com um guerreiro rude, que esconde uma lágrima e dissimula a sua emoção com ditos grosseirões. Tudo isso é falso. O rude guerreiro não dissimula nada. Se deixa cair uma grosseria é porque realmente pensa numa grosseria.

A qualidade do homem não se encontra em causa. O Comandante Alias é sensível como qualquer outra pessoa. Se nós não voltarmos sofrerá talvez mais do que os outros. Com a condição de que se trate de nós e não de um somatório de pormenores diversos. Com a condição de que esta reconstituição lhe seja permitida pelo silêncio. Porque, se esta mesma noite, o meirinho que nos persegue obrigar mais uma vez o Grupo a mudar de poiso ou uma roda de um camião se avariar, na avalanche dos problemas há-de adiar para mais tarde a nossa morte. E Alias esquecer-se-á de sofrer com ela.

E é desta maneira que eu, que parto em missão, não penso na luta do Ocidente contra o nazismo. Penso pormenores imediatos, penso em como absurdo é sobrevoar Arras a setecentos metros. Na fragilidade das informações que desejam de nós. Penso ainda na lentidão com que me visto, nessa toilette que se me afigura uma toilette para o carrasco. E depois penso nas minhas luvas. Onde é que diabo vou encontrar as minhas luvas? Querem ver que perdi as luvas!

Não consigo ver a catedral onde moro.

Estou a vestir-me para o serviço de um deus morto".



Saint-Exupéry,
in Piloto de Guerra,
Editorial Aster – Lisboa, 7.ª edição, págs. 25/27.

03/11/2007

ANÃO GIGANTE EXISTE...

Em princípio, nada tenho contra as Olimpíadas. Servem, até, para quebrar a monotonia televisiva nossa de cada dia, apesar dos lugares comuns: a falta de criatividade faz com que os repórteres rebusquem coisas velhas nos seus baús e tentem nos impingir como novas.

O Arnaldo Jabor falou do Jesse Owens e da humilhação que em 1936 infligiu a Hitler, que por puro despeito teria se retirado do estádio, o que, a bem da verdade, não foi comprovado. O mundo não precisa mais dessas forçadas. Certas coisas não precisam ser sempre lembradas. As más lembranças podem induzir fatos negativos.

Ainda bem que não mostraram – pelo menos não vi – aquela alemã cambaleante, retorcida e descoordenada na linha de chegada de uma corrida como exemplo de superação. Aquilo foi a mais pura demonstração de desrespeito ao próprio corpo e à própria saúde.

Mas há a possibilidade de enriquecimento cultural. Com o Sílvio Luiz e a Magic Paula aprendi, por exemplo, que a Nova Zelândia fica na Europa... Logo em seguida eles corrigiram o erro.

Eu vi o Brasil conquistar sua primeira medalha de bronze, no judô. Foi uma luta sem graça, um agarra-agarra que não saiu da tentativa, parecia até que um estava tirando o outro para dançar mas não chegavam a um acordo sobre quem faria o papel da moça e quem o do varão. O brasileiro ganhou pelas punições que o adversário sofreu e não por algum golpe mais vistoso de sua iniciativa.

Eu fiz duas aulas de judô, no tempo da faculdade, no prédio da Medicina, situado na praça do "Kioski", que o Carlos Damião vem mostrando no seu blog. O professor era um Aducci, cujo prenome não lembro.

Experimentei então uma das minhas mais gloriosas realizações esportivas. Aquilo é que foi superação! Tinha que correr, apoiar as mãos no chão, virar, rolar, levantar e sair correndo novamente. Nunca conseguira fazê-lo antes, por isto exagerei na impulsão e cai de bunda. O choque foi tão forte que até o lustre estremeceu. E o piso era de concreto... Se o Aducci for muito persistente deve estar ainda hoje me esperando para a terceira aula.

Eu sei que é querer demais, mas preferiria que vencessem os naturalmente mais fortes. Aqueles a quem a natureza dotou de dons, força e talento superiores e não aqueles que os conseguem através de hormônios ou outras drogas. Os resultados que temos aí parecem artificializados através dessas substâncias e isto não pode servir de parâmetro para a história da fisiologia humana – se é que alguém busca algum estudo científico nas olimpíadas.

Vencem os que usam drogas cada vez mais elaboradas, recebem preparação especialíssima e são criados em viveiros com finalidade predeterminada. Como os nadadores. Li, numa reportagem sobre o Ian Thorpe, o australiano, que as drogas que tomava para reforçar sua massa muscular lhe davam aquelas feições de rosto e nariz compridos. Passei a perceber que com outros nadadores ocorre o mesmo. Daqui a uns tempos vai ser difícil distingui-los quando estiverem juntos no tablado de largada.

No final, a sensação de que foram quebrados mais recordes mas, pelos métodos empregados, que os novos limites superados foram sempre os artificiais e não os naturais do homem. Apesar de não se poder esquecer do treinamento a que se dedicam.

De resto, devo um pedido de desculpas ao meu filho. Sempre procuramos educar nossos num clima de absoluta sinceridade. Mesmo quando ele teve que tomar uma benzetacil e perguntou se ia doer eu respondi que sim, e bastante.

Quando contava com 8 ou 9 anos de idade me fez uma pergunta que só da mente infantil pode brotar:

– Pai. Existe anão gigante?

Respondi que não, que seria um contra-senso, um anão gigante seria uma pessoa adulta normal.

Mas numa prova de levantamento de pesos vi um anão gigante oriental, não sei de que país, lutando contra seus flatos para erguer os halteres. Não deve ter passado das provas preliminares, porque não mais apareceu.

Então, meu filho, segue a retificação e o meu pedido de desculpas, embora com 10 ou 11 anos de atraso: anão gigante existe.





Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 26/08/2004, tempo de Olimpíadas em Atenas, Grécia.

31/10/2007

SONHOS, de Akira Kurosawa

Há filmes mais ou menos marcantes e isto depende muito da personalidade e do sentimento de cada um.

Quando vi SONHOS, de Akira Kurosawa, meus conceitos sobre a sétima arte se alteraram profundamente e percebi, com muita clareza, que Hollywood é principalmente uma fábrica de filmes e não de cinema.

Dividido em oito episódios, nem todos guardam a mesma qualidade e um ou dois, mesmo, chegam às raias da pieguice (como Monte Fuji em Vermelho, sobre explosões nucleares tendo como fundo o Monte Fuji). Mas não deixa de ser um alerta sobre uma possibilidade chocante e, esta sim, nada piegas.

O Pomar de Pêssegos é uma instigante incursão nos mistérios da mente infantil: um menino febril segue uma menina que não existe, mas que viu na companhia de suas irmãs, e chega aos fundos da residência onde outrora existia uma plantação de pêssegos, derrubada pela família, e é julgado pelos espíritos das árvores...

É um verdadeiro achado, no capítulo Corvos, sobre Van Gogh, a justificativa do pintor sobre a extirpação da própria orelha, e que demonstra, na visão do diretor, que todo o sacrifício é válido por amor à arte.

A poesia de O Povoado dos Moinhos é comovedora e a fotografia e a própria música sobressaem — principalmente uma, singela e percussiva, que abrilhanta um funeral sereno e festivo, incompreensível para os ocidentais —, talvez superiores mesmo aos diálogos, nem por isto menos importantes. Cinema é uma arte visual e as tomadas dessa seqüência são magníficas.

Mas o episódio mais inquietante e profundo é, a meu ver, O Túnel, sobre o soldado que, a caminho do lar de seus pais, precisa ser convencido de que, com seus companheiros, foi morto numa batalha em que o único sobrevivente foi seu comandante.

Poderá haver algo mais aterrador do que alguém precisar ser convencido de que está morto?




Publicado originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 19/06/2004.

28/10/2007

DAIANE E OS CHORÕES

Noutro dia estava defronte à tv manuseando esse aparelho que, sem dúvida nenhuma, é um dos mais importantes da era da comunicação de massas: o controle remoto.

Vi o Alexandre Frota chorando. Não sei porque, pois mudei de canal. Mas imagino que tenha feito alguma coisa do mal, senão não faria sentido. O pranto, em certas fachadas, soa surrealista como a maquiagem triste na cara alegre de um palhaço.

Noutra ocasião vi o Romário lacrimejando. Também ignoro os motivos. Acho que foi por não ter sido, mais uma vez e injustamente, segundo ele, convocado para a seleção. Foi na Globo.

O Pelé é um chorão contumaz. Não pode ver um microfone que já vai se debulhando. Se eu fosse um comediante impediria o Pelé de entrar nos meus shows. Acho que até piadas lhe provocam lágrimas.

Não há nada que desabone a dignidade de um homem que chora, independentemente de sua corporatura. Mas não é preciso chorar sempre ou por ninharia. Isto desmoraliza o instituto emocional do pranto.

Já a nossa querida Daiane, que teria motivos muito mais do que os desses aí somados, não vai chorar. Não por falta de provocações. Numa entrevista ela foi tetra-assediada (veja aqui).

Acho que o assédio lacrimal, assim como o sexual, deveria ser elevado à categoria de crime. Ou, pelo menos, de contravenção – sem querer, obviamente, censurar a imprensa.

Mas ela desenganou repórteres de rapina lacrimal:

"Eu não entendo essa coisa de chorar. Claro que fiquei com raiva. Você acha que não fiquei com raiva? Não foi raiva de ninguém, mas de mim mesma: poxa, quem errou fui eu. Eu sabia que poderia ter conseguido e não consegui uma medalha. E você sabe o quanto isso é importante não só para você, mas para milhares de pessoas que estão te assistindo e milhares de pessoas que trabalharam com você. Mas, mais importante do que para todo mundo, é para você que treinou. Imagine como você se sente, se poderia ter sido campeã olímpica e não foi? Óbvio, eu poderia ter me derretido chorando, mas não, não chorei. (...) Estou com muita raiva mesmo, estou puta da cara porque não consegui, mas não vou chorar, e acho que é mais porque as pessoas querem que eu chore. E eu não vou chorar e acabou".

Ela mede só 1,45 m. Mas cresce alguns metros quando dá essas lições. Atentem: ela vai fazer escola e ser logo imitada...

Disso tudo, temo duas coisas: que o Lula edite uma medida provisória obrigando-a a chorar ou que seja colocada no limbo e não mais entrevistada. Como disse outro dia, a televisão não gosta de gente autêntica. Na busca do emocionar, emocionar e emocionar o objeto do repórter tem que derramar lágrimas.

Para evitar isto, sugiro que o próximo entrevistador a assediar a Daiane use um microfone com essência bem forte de cebola. Talvez então ela chore, ainda que não naturalmente.

Se o repórter também chorar a emoção será dobrada. Quem sabe renda pontos no ibope e abra caminho para uma nova modalidade midiática: o choro conjunto e participativo. Entrevistador e entrevistado poderiam se abraçar e chorar copiosamente.

Haja coração!

Se acatarem a idéia, dispenso os royalties. Hoje estou muito generoso e disposto a colaborar desprendidamente para o sucesso alheio.



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 28/08/2004.

25/10/2007

OUTROS terão...

[552] - 13-1-1920
Fernando Pessoa



OUTROS terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

“Que importa?”
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

“Quem tem de ser?”
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.




Fernando Pessoa
Poesias Coligidas – Inéditas (1919-1935)
in Fernando Pessoa,
Obra Poética, página 494,
Companhia José Aguilar Editora (1974).

21/10/2007

Uma História de Vida?

Eu nasci em junho e entrei na aula com seis anos. Sempre fui muito estudioso. No segundo ano do Primário tirei o 1.º lugar do colégio inteiro e recebi, como prêmios, o direito de assinar o Livro de Ouro e o livro Ben-Hur em edição condensada.

Os professores me elogiavam e os que ainda vivem devem estar frustrados com minhas realizações. Sei que esperavam muito mais. Como disse outro dia, eu poderia ter sido presidente da República, mas – e olho para as mãos – continuo com os dez dedos íntegros.

Num aspecto a vida me acostumou mal: fui, por muitos anos, sempre o aluno mais novo da turma.

Completei o 4.º ano com 10 anos e tive que cursar o 5.º, ou Admissão, porque só poderia entrar no Ginásio com 11 completos. Por sugestão de um inspetor escolar meu pai me internou no Colégio Dom Bosco, de Rio do Sul. No 1.º ano do Ginásio lá estava como o mais novo da classe.

Mas no 2.º, a decepção. Vi quando ele entrou na sala. Uma criaturazinha desprezível, pequena, cara de rato branco, raquítica. Logo pensei: é mais novo do que eu. E era. Foi a primeira frustração de minha vida. Depois descobri que ele nascera apenas 9 dias antes de mim. Certamente um prematuro. Nem fiz bem o restante do Ginásio, apenas o suficiente para passar.

Já no Magistério voltei a me aplicar, até para impressionar a Ieda, que estudava comigo. Elaborei um jornalzinho mimeografado que não passou da segunda edição porque critiquei o Prefeito Municipal que queria expulsar a ACARESC de Taió. Quase que o expulso fui eu. Até meu pai foi contra mim. Meu pai nunca quis que eu fosse advogado ou aviador. Fui advogado. Talvez tenha sido uma vingança inconsciente.

Na Faculdade de Direito era um dos mais novos. Nada demais. Lembro dos mais velhos, uns policiais federais que – comentava-se à boca pequena, mas pequena mesmo – entravam na universidade sem prestar Vestibular. Não sei se para aprimorar seus conhecimentos humanísticos ou para vigiar a política estudantil da época. No Básico estudou comigo um elemento perigosíssimo, terrorista cruel e visionário que já fora preso em Ibiúna. Depois se formou em História, foi professor da UFSC, candidato a senador e hoje é aposentado e tem casa na Barra da Lagoa. Mas, pelo que sei, não anda por lá de sunga de crochê. Acho que ele era vigiado de perto.

Formado, de volta a Taió, fui o advogado mais novo da Comarca. Mas então não considerava isto uma honra expressiva porque éramos apenas três...

Quando ingressei na Magistratura era um dos mais jovens juízes do Estado. Então algo foi mudando. Ser juiz seria a minha vida. Findou a era da provisoriedade e chegou a do definitivo. Em poucos anos havia dezenas de juízes mais novos. Comecei a envelhecer.

Foi duro, como desembargador, descobrir que, depois de algum tempo, não passava de uma mera expectativa de vaga para os que vinham depois.

Mas o pior sinal desse processo inexorável foi quando, em Santa Catarina, encontrei uma moça conhecida e fui cumprimentá-la efusivamente, com o peito inchado de euforia, e descobri que ela era filha daquela que eu pensava estar cumprimentando...

Semana passada mais um golpe: recebi um convite para participar do programa do jornalista Joabel Pereira, o “Justiça Gaúcha: Histórias de Vida”. O nome dispensa explicações. Geralmente eles convidam pensando: “Vamos fazer logo antes que o cara, aquele, morra”.

Quis desconversar, disse que fui um juiz comum, sempre afastado da mídia, que inventei até uma viagem ao Recife, em 1986, para driblar o Lauro Quadros que queria uma entrevista sobre a sentença do beijo – ele foi mais obstinado que cavalo de padeiro e aguardou o meu falso retorno – mas não adiantou! A Marta, a simpática assessora do Joabel, me convenceu.

Afinal – pensei conformado – quem conta com 35 anos de idade tem alguma coisa a dizer. Senão não estaria escrevendo este blog.





Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi, em 10/09/2004.

18/10/2007

Aniversário do Francisco


Um dia, há exatos 20 anos(*), um ET baixou em nossa casa, fazendo alarde, a cavalo num cagaço que a Medicina pregou no pai: problemas anestésicos provocaram uma parada respiratória na Ieda e o guri quase que nasceu órfão.

Por algumas horas, eu me senti viúvo. Fugi para telefonar para o meu amigo Tonico Raymundi, médico de Taió, que me tranqüilizou. Na maternidade só me assustavam. Mas tudo se resolveu de forma boa.

O nome era para ser Tito Lívio. Mas na última hora, pela emoção, foi decidido que homenagearíamos os dois avós. E ficou tudo isso aí, que ele já abreviou.

O piá foi crescendo mas não se alimentava direito. A Ieda se animava quando ele comia pelo menos uma colher de papinha. Prevíamos que seria nanico e magrela. Quando dissemos ao Dr. Renato, pediatra, que o achávamos exageradamente magro, ele apontou uma foto de seus filhos sobre a mesa e fomos obrigados a nos conformar. Hoje é o maior da família: mede 1,76 m, o que não é muita vantagem. Não é o mais gordo porque este privilégio é do pai como o foi, por algum tempo, o de usar os cabelos mais compridos. O passar dos anos e a inadaptação a perucas fulminou esse direito.

Enviei, depois, uma carta ao mesmo médico Raymundi, que é gaúcho, dizendo: “Nossa vida mudou muito depois que nasceu o piá. Todos os nossos conceitos e princípios sobre educação de filhos foram por água abaixo. Mas acho que a culpa é minha. Ninguém mandou botar tantos “ff” no nome dele. F.F.F.D. É f(*)da”.

Nasceu meio de guampa torta, como diz o gaúcho querendo expressar destemor, pois se mostrou desafiador. Certo dia, em 1987, eu estava no escritório brigando com o meu primeiro micro, um Expert MSX da Gradiente, daqueles que nem disquete possuía.

Eu gravava uma sentença enorme numa fita K-7 – alguém lembra desse sofrimento? – e isto demorava um século. Acho que estava de joelhos, rezando para que não travasse. Mas a luz oscilou, o micro desligou e perdi a sentença. Dei uma porrada na mesa, disse um palavrão, e abaixei a cabeça, desanimado. Teria que começar tudo de novo.

Percebi um arrastar de chinelos se aproximando e na porta surgiu ele. Com a autoridade de seus 3 anos, calçando meus chinelos, e me olhando de cenho franzido (ele já nasceu de cenho franzido), indagou:

– Pu quê que tu pode dizê fidaputa e eu não?

Liberei geral:

– Podes dizer quando tu quiseres também e pronto!

Saiu de fininho.

Em tudo o que se meteu foi bem sucedido. Venceu torneios de karatê (quebrou a quina de uma parede de alvenaria e uma janela para mostrar seus progressos) e foi campeão de kart (de prêmio, ganhou um Fiat Uno que amenizou os gastos do paitrocinador). Sofreu um acidente sério, mas aqui também foi só um susto: o capacete rachou mas a cabeça permaneceu íntegra. Depois elegeu o piano, alçou-o à categoria de sua projeção profissional, e tem sido muito elogiado. Sobre isto sou suspeito e não falo. Há coisas que pertencem ao Futuro.

Recebeu apoio integral quando se dedicou à Música. Fiz comparações sobre a vida de um juiz, que lida com aquilo que há de socialmente pior, e a de um artista, que sobrevoa essas misérias e se fixa num patamar moralmente superior, longe da degradação dos homens.

Não é bem assim. Descobri que há indignidade no mundo artístico também. Por exemplo: colocar lâminas de gilete entre as teclas do piano para prejudicar um candidato em concurso...

Cuida, filho, com as pedras e as giletes do caminho, mas siga em frente.

Quando estás sentado ao piano, tocando, tu te envolves apenas com transcendências e o mundo é teu. O resto é circunstancial.




Texto publicado originalmente no Jus Sperniandi, em 18/10/2004.


(*) Hoje o Francisco está completando 23 anos.

13/10/2007

Meu Descanso Semanal

Deus é onipotente, mas descansou no sétimo dia.

Desconfio que não foi bem isto: os editores da Bíblia, que a publicaram milhares de anos mais tarde, deram uma arreglada aí e escreveram algo diferente. Nada indica que naquele tempo os patrões da grande imprensa fossem diferentes dos de hoje.

Acho que Deus estava tão entretido com suas criações que resolveu parar um pouco, pensativo. No dia anterior criara o Homem e, por sua onisciência, percebeu que fizera uma divina besteira. Tanto que logo expulsou suas criaturas do Paraíso. A primeira coisa que o casal fez, quando a sós, foi inventar o Mal e jogar a culpa numa cobra, como fazem muitos atletas — exceto a Daiane e poucos outros — e principalmente os políticos.

Deus cochilou quando criou o Homem. Imaginem a Terra sem ele: Sete Quedas ainda estariam intactas, as florestas exuberantes, os animais se digladiariam em lutas necessárias apenas à própria sobrevivência sem interesses econômicos e sem a exibição repetitiva e sádica do National Geographic ou do Discovery.

Se Deus parasse um dia antes evitaria, por exemplo, que lá pelo ano de 1947 nascesse, na Irlanda, um bebê inocente e querido pelos pais como toda criança, que estudaria Teologia, deixaria a batina, se transformaria num imbecil, e no domingo, no fecho das Olimpíadas de Atenas, tiraria a possibilidade da medalha de ouro na maratona do nosso Vanderlei Cordeiro de Lima.

Bem, mas o que eu queria dizer é que Deus, mesmo onipotente, descansou no sétimo dia.

Eu, que sou fraco, tenho fibromialgia, gastrite, dermatite seborreica, unha encravada e preguiça, sinto-me no direito de fazer o mesmo.

Não estou me comparando a Ele. Deus me livre! Mas já que o padre Afonso insiste que fui criado à Sua imagem e semelhança, vou descansar sempre aos domingos e não postar nada. Por isto não escrevi ontem. Claro que ninguém percebeu, até porque, pelo que notei no contador, nos finais de semana, os meus leitores se reduzem em pelo menos 50%: passam de oito para quatro.

Acho que são os meus irmãos e nem todos. Porque o Damião entrou. Mas o Damião é um gentleman de primeira.

Nem meus cunhados, depois que falei da mãe deles, têm acessado o blog. Não reclamaram, mas há silêncios que soam mais alto que os berros do Datena transmitindo vôlei em final de Olimpíadas.

Ela continua aqui. Eles não se preocupam porque sabem que está bem cuidada. Pela filha. Mas estou retirando o que disse para que possam acessar o blog de novo. Afinal, por parte dos Feuser-Fernandes, são os meus melhores cunhados.



Croniqueta publicada, originalmente, no Jus Sperniandi,
em 30/08/2004, aqui.

10/10/2007

VOZES DA LAGOA

Três excertos do livro Vozes da Lagoa,
Bebel Orofino,
com belas fotos de Suzete Sandin









O VISIONÁRIO

Manoel Agostinho – Barra da Lagoa

Não dá pra registrar o que eu sou, ou o que eu já fui.
Ninguém entende.
Eu conheço de longe as pessoas.
Quando passa alguém aqui, eu digo como ela é,
se tem a idade comprida, se tem a idade curta...
Eu enxergo o sujeito daqui, da minha janela.


CRIANÇAS PELO UMBIGO

José Agostinho – Barra da Lagoa

As parteiras diziam que as crianças vinham de avião.
E eu, um menino de quatorze, quinze anos, pensava que era assim
mesmo. Ninguém sabia, as mães não contavam nada.
Um dia a Juvelina disse pra ir no mato.
Era pra ver de onde nasciam as crianças.
Mas descobriram o umbigo.
Ela e as amigas pensavam que as famílias vinham pelo umbigo.
Acharam que era por ali que vinham as crianças.
O povo era tolo.


DELEGADO LADRÃO


José Simão – Caieira

O João Sobrinho plantava muita melancia.
Uma noite ele me disse assim:
– Zé, vai dar uma volta com o Manoel Matias
e rouba uma melancia pra nós.
Ele, como delegado, não podia mandar fazer isso, mas nós fomos.
Fomos na roça do delegado, escolhemos a melancia
mais bonita e trouxemos.
Quando voltamos ele perguntou:
– Arranjaram a melancia?
Ele não sabia que a melancia era de sua roça.
Partimos a melancia, muito bonita, e comemos.
O Manoel Matias ria muito, mas não podia contar porque ria tanto.
O delegado ainda disse:
– Vou levar essas sementes pra plantar. Uma melancia dessas eu nunca comi.
Mas um empregado dele, o Zé Belina, contou que alguém tinha roubado melancia.
Foi aí que ele descobriu, mas não podia fazer nada,
ele era delegado:
– Vocês dois são uns istepô. Disseram que tinham roubado da roça do Bonifácio e foi da minha que roubaram. O pior é que eu, um delegado de polícia, ainda mandei roubar dos outros.




Leia aqui algumas considerações sobre o livro.

07/10/2007

A Culpa é dos Americanos


Nenhum fato social acontece sem que alguém tenha culpa. Essa é uma regra válida para todos os que habitam nesta terra. E o culpado é, geralmente, o outro. Esta a segunda regra.
Desculpem os dirigentes da República da Panákia se, porventura, eu estiver dizendo alguma heresia que contrarie a Constituição daquele país.
Eu não sou adepto da teoria das conspirações (o plural é de propósito), mas acho que os americanos são culpados de todo o mal que ocorre no mundo. Desde a peste suína que varreu o Brasil, se não me engano no tempo do Geisel, venho pesquisando a respeito e já descobri, de fonte segura, que no Norte do Estado do Oregon há uma cidade subterrânea habitada por famílias que vivem num regime de deliberada reclusão.
Completamente auto-suficiente, seus membros encontram nela de tudo o que precisam para uma vida saudável e abastada. Homens e mulheres que se destacaram na vida acadêmica vivem ali regiamente pagos pelo Governo com o objetivo principal de sabotar os países em desenvolvimento.
Descobri o nome da cidade: Ambush. Não adianta procurar no mapa. Os mapas são deficientes e confeccionados em papel e não permitem a inclusão de uma cidade subterrânea. Seria uma exigência absurda pretender que um mapa indicasse uma cidade sob a terra: ela estaria sob o mapa e não poderia ser vista. Elementar!
Minha mãe era tricoteira de primeira. Antigamente, na minha infância, se fabricava uma lã de excelente qualidade, daquelas que, com o uso, não criavam bolinhas. Depois de algum tempo todas elas passaram a ser de qualidade inferior e criar bolinhas. Por quê? Porque uma fábrica americana inventou um aparelho de extrair bolinhas de lã e precisava vender seu produto. As cabeças pensantes de Ambush descobriram um hormônio especial e o inocularam nas sementes das gramíneas que alimentam os animais tosquiáveis que vai refletir na lã produzida e o disseminaram pelo mundo. Desde então você pode comprar a melhor blusa do mercado que vai ter que comprar o aparelho de podar as bolinhas se quiser mantê-la sempre bonita e vistosa.
Ambush tem ligação direta com a estação polar americana no Pólo Sul, aí embaixo, perto de nós, e implementou um sistema que lhe permite influenciar no clima da região, criar frentes frias, ciclones, tufões e furacões.
Lembram do furacão Catarina? Foi a primeira experiência bem sucedida deles de exportar esse tipo de fenômeno climático para o Brasil que é, ou pelo menos era, um país livre dessas inclemências. Depois vieram mini-furacões em Criciúma e, mais recentemente, em Indaiatuba, São Paulo. Então, nesses casos, não adianta querer colocar a culpa no Lula, ou no PT, porque eles são completamente inocentes.
E há previsão de que outros ocorram no decorrer deste Inverno, mas isto ainda não é certo. Lidar com o clima é, até para os estudiosos de Ambush, muito difícil. O clima é instável. Mas eles, em cooperação com a estação polar, já estão começando a dominá-lo com alguma intimidade e dentro de alguns anos os furacões que agora assolam os EUA serão desviados para o Sul do Mundo sem que tenhamos que pagar qualquer taxa de importação.
Isto é só um exemplo. Há coisas mais graves que os americanos fazem contra nós, mas como a postagem deste blog é limitada a um determinado número de caracteres – coisa de americano! – sou obrigado a parar por aqui.
Se sou paranoico? Eu não. Nunca tive medo de ser perseguido.
Desde que voltei de Santa Catarina, há uns vinte dias, vivo no interior de uma sala secreta, à prova de furacões e outras ameaças, no porão de minha casa, com acesso à Internet (outra coisa que os americanos criaram para nos dominar). Ela é dotada de banheiro e de um certo conforto, é claro. Tem uma abertura por onde a dona Estela – nossa personal home – me serve o café da manhã, almoço e janta.
Assim protegido, como é que vou ter medo de perseguição? Estou mais seguro aqui do que vocês aí fora, vivendo perigosamente no descalabro desse mundo, ouvindo mentiras e lendo bobagens...



Publicada originalmente no blog Jus Sperniandi,
em 21/06/2005.

02/10/2007

LIRA DO POVO

Quem aprecia uma boa música, brasileira, de raiz, sem concessões comercialescas, límpida e cristalina, sem apelação, bem interpretada e extremamente agradável, não pode deixar de ouvir o cd "Lira do Povo", de Kátya Teixeira (seu site está entre os meus indicados desde o início do blog). Adquiri e ouvi. Várias vezes.

Ele não é só música. É um documento histórico importante e comovente, com manifestações populares e folclóricas de extremo bom gosto e sensibilidade. É universal no canto de várias aldeias – inclusive do primevo habitante desta terra – e há lugar garantido para ele em nosso meio cultural.

Para os que estão saturados de tchans, pagodes e de outras manifestações efêmeras da pseudomúsica em que se valoriza mais a bunda das dançarinas acompanhantes do que a qualidade da obra de arte, é uma alternativa sem precedentes.

A capa do cd, fora do convencional, também é primorosa: ele não vem naquelas caixinhas de plástico, mas num álbum que se desdobra em três partes, de papelão reciclado. As folhas do livreto vêm atadas artesanalmente, com vime.

Ouvi (e vi) Kátya Teixeira num programa – se não me engano Balaio Brasil, da Rede Senac – há alguns meses, e fiquei impressionado. Foi no lançamento do cd Katxerê que, infelizmente, está esgotado. Na época enviei e-mails a todos os meus contatos mais ou menos com o teor desta mensagem.

Ela esteve, há alguns anos, aqui pelo Sul recolhendo material para o disco. Só daí já se vê a seriedade do trabalho. Artistas desse naipe devem ser valorizados.

Ela esclareceu num e-mail: em minha breve passagem pela Barra da Lagoa e Lagoa da Conceição, das histórias que ouvi surgiu uma canção – Nas Teias da Renda – que está no primeiro cd, Katxerê.

No site, há faixas deste cd que podem ser ouvidas via Internet e delas é possível visualizar a qualidade da obra.

Sobre o lançamento de agora é ainda ela quem afirma: O cd Lira do Povo faz parte de uma trilogia que quero realizar, sendo que os outros dois só de cantos de trabalho e cantos religiosos e acredito que o Sul tem muito a oferecer.








Publicada originalmente no blog JUS SPERNIANDI,
em 11/07/2004, aqui.

29/09/2007

Mozart e Kartismo

O QUE MOZART TEM A VER COM KARTISMO?

À primeira vista, para o mundo em geral, absolutamente nada. Na época do compositor sequer se poderia imaginar que algum dia um americano meio louco transformasse seu cortador de grama em um aparato para disputar corridas com amigos a uns 3 cm do solo.

Mas aqui, no âmbito de nossa cidadela familiar, que já passou por várias fases, inclusive a kartiana (não confundir com cartesiana), houve uma relação, ainda que meramente nominal e restrita, entre o gênio musical e o kartismo (não confundir com kantismo).

Meu filho, aos 11 anos de idade, era piloto de kart. Foi campeão da Copa Balestro e do Campeonato Citadino e vice-campeão da Copa Cidade de Porto Alegre, em 1995.

Acabou conquistando um prêmio excepcional: um Fiat Uno, doado pela revendedora Zen, de Lajeado, pela Copa Balestro.

Sua categoria era a hoje extinta Cadete, de 85 cc, condizente com sua faixa etária, e não tão potente quanto a de 125 cc, dos marmanjos (na qual ele chegou a competir, no ano seguinte, e foi novamente campeão citadino e vice-campeão do Campeonato da Serra, na subcategoria Júnior Menor).

Tínhamos dois motores, um para treinos leves e outro para corridas.

O que usávamos nos treinos, batizamos de Haydn. O das corridas era o Mozart, em homenagem ao compositor austríaco, cujas obras sempre foram por nós muito apreciadas. Era um motor afinado, suave e harmonioso, mas despejava seus rompantes estritamente necessários e eficientes quando as circunstâncias o exigiam.

Depois que um piloto da subcategoria graduados perdeu a falange distal do indicador da mão esquerda numa corrida em Farroupilha, meu filho, que já estudava piano havia uns três anos, aos poucos foi pendurando as chuteiras, digo, o capacete, as luvas e o macacão.

Com isto foi-se a esperança de que poderia vir a ser um bem sucedido piloto de Fórmula 1 e enriquecer a família inteira e mais alguns agregados.

O kart e o motor Mozart continuam na garagem. A fase kartiana passou, para alívio da Ieda, que sofria muito, principalmente após um acidente formidável (nos sentidos moderno e obsoleto), mas sem conseqüências graves. Ficou naquele limite tênue e acinzentado entre a vídeo-cassetada e a tragédia.

Meu filho ainda estuda piano, na Faculdade de Música da UFRGS. Talvez não enriqueça a família nem aparentados. Mas ninguém retira de um pai o orgulho e o prazer indescritível que é ouvir uma obra desconhecida pela primeira vez ao vivo e não através da frieza de uma gravação eletrônica. E, o que é mais importante, interpretada pelo próprio filho.

Mozart, portanto, continua em nossa cidadela, só que agora com muito maior pertinência.

_____________________________________

Observação: meu filho, atualmente, está seguindo sua carreira musical, cursando mestrado na Faculdade de Karlsruhe, Alemanha.



Crônica publicada originalmente no blog
Jus Sperniandi,
em 29/06/2004, aqui.

26/09/2007

ESTA VIDA

Guilherme de Almeida





Um sábio me dizia: "Esta existência
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero, inventaria a morte!
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo: e vibra, e cresce,
e se desdobra, e estala num segundo...
Homem, eis o que somos neste mundo!"

Falou-me assim o sábio e eu comecei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: "Ó mocidade,és relâmpago, ao pé da Eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa...

Esta vida não vale grande cousa:
— uma mulher que chora, um berço a um canto,
o riso às vezes, quase sempre o pranto...
Depois, o mundo, a luta que intimida...

Quatro círios acesos — eis a vida!"
Isto me disse o monge e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um pobre me dizia: "Para o pobre,
a vida é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus? ... Eu não creio nessa fantasia!
Deus me dá fome e sede cada dia,
mas nunca me deu pão nem me deu água...
Nunca! Deu-me a vergonha, a eterna mágoa
de andar, de porta em porta, esfarrapado...
Deu-me esta vida: um pão envenenado!"


Disse-me isto o mendigo e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: "Vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo!
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira...
Um telhado... Um penacho de fumaça...
Cortinas muito brancas na vidraça...

Um canário que canta na gaiola...
— Que linda a vida lá por dentro rola!"


Pela primeira vez, eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver!





Guilherme de Almeida,
in Messidor,
Círculo do Livro S/A,
páginas 98/99.

22/09/2007

Os Nossos Bichos

Depois que entrei no mundo dos blogues, tenho freqüentado alguns e noto que muitos blogueiros falam orgulhosamente de seus animais de estimação — principalmente cães fofinhos e gatos espertos — exibidos em belas fotos.

Fiquei coçando a orelha. Não sabia se deveria fazer o mesmo, porque, quando lancei o JUS SPERNIANDI, me propus a escrever mais sobre coisas que se convencionou qualificar de sérias para que fizesse jus ao nome, ainda que, vejo agora, já tenha dado algumas escorregadelas.

Mas é domingo, dia de amenidades e, para mim, o pior da semana porque não se tem o que fazer. A televisão não ajuda (aqueles domingões fastidiosos e não legais não me prendem). Não consigo ver mais de dois filmes, um à tarde e um à noite, e por isto o tempo que sobra é demasiado.

Então resolvi falar dos nossos bichos.

Temos o nosso aquário, os nossos gatos, andorinhas, um beija-flor e já tivemos uma borboleta e um canário belga.

Nosso aquário é uma beleza de azul e os peixes são azuis e as algas. Nunca perguntei à Ieda, embora a convivência de mais de 33 anos, se são realmente algas, para não evidenciar minha ignorância e porque, segundo dizem, é falta de educação indagar aos artistas o que eles querem dizer em seus quadros, ainda que a gente não entenda nada.


Há quem diga que aqueles que têm aquário em sua residência e ficam apreciando os peixinhos têm menos propensão ao infarto. Uma pesquisa na A
lemanha acrescentou que não basta ter um aquário: é preciso levar uma vida saudável, regrada, não ingerir carnes gordas e vermelhas, fazer exercícios e alongamentos, controlar a obesidade, o diabetes e a pressão e não fumar. Mas esta é outra história.

O nosso aquário está pendurado numa parede, meio esquecido na churrasqueira. Para quebrar um pouco o az
ulado sugeri à Ieda que colocasse nele pelo menos uma borboleta que tínhamos, muito brilhante e colorida, mas ela não quis. Não dá para entender esses artistas.

Mais tarde, desastradamente, quando eu limpava meus cds, bati nela, que voejava imprudentemente próximo aos meus cotovelos, e a espatifei.

Já os nossos gatos são milhares. Não! Centenas. Também estão pendurados na parede e convivem muito bem com os peixes. São muito ariscos e por mais sorrateiramente
que entremos na churrasqueira, nunca os enxergamos: só vemos seus rabos e suas patas estilizadas e as pegadas que eles deixam... Não são tão higiênicos quanto apregoam que os gatos são.

Cachorros, não temos. Os vizinhos têm bastante, daqueles enormes, que nos acordam nas madrugadas frias com seus latidos tonitruantes e até estereofônicos. De manhã, bem cedinho, são soltos nas ruas do bairro para cagar pelas calçadas. A minha é de pedras e grama e, não sei porque, eles adoram defecar na grama... Não posso dizer que são mal-educados, mas seus donos, certamente, o são.

Uma vizinha tinha 28 cães e 319 gatos, mas o Departamento de Zoonose da Prefeitura mandou-a desfazer-se da metade. Agora ela tem apenas 14 cães e 159 gatos e meio...

Um beija-flor de vez em quando vem visitar nossos hibiscos. Há tempos que não o vejo. Com esse frio, os hibiscos estão se guardando para a próxima estação.

Em todas as primaveras temos andorinhas. Elas fazem ninho na lareira do escritório: descem pela chaminé e encontram algum lugar apropriado, não sei em que altura, e podemos ouvir o gorjeio dos filhotes depois de algum tempo.

Tínhamos um canário belga, também, muito bonito e canoro. Este a Ieda concordou, após muita insistência minha, em juntar aos peixes.

Mas acho que ela, de propósito, para não quebrar o cerúleo do aquário, o colocou no gatil... O canário desapareceu...




As ilustrações são de Ieda M.F. Dellandréa.
Clique sobre as imagens se quiser vê-las ampliadas.
Crônica publicada no blog Jus Sperniandi,
em 27/06/2004
.