18/07/2004

NAS ASAS DO QUETZAL - Comentário


Há algum tempo deixei de ler romances. Troquei o gênero por biografias e por relatos de fatos reais. São mais confiáveis, exceto as autobiografias: nestas, inconscientemente (ou não) os autores minimizam suas fraquezas e exaltam seus acertos.
Os romances me desencantaram, muitos por sua inverossimilhança, muitos por sua artificialidade e também por erros históricos ou do próprio entrecho.
A vida real sempre é mais interessante. Os dramas, sofrimentos, alegrias e desenganos são autênticos, sem que o autor tenha que se contorcer visando dar credibilidade a fatos psicológicos que não experimentou.
Li muito sobre compositores, principalmente Mozart, cuja vida é peculiar. Nenhum romancista, por mais imaginativo que fosse, poderia criar aquele enredo sofrido e doloroso cujo personagem, mesmo assim, nos deixou obras alegres e vivas, numa contradição psicologicamente difícil de entender. Algum dia vou me deter mais sobre o assunto.
Depois me dediquei a leituras sobre a conquista do Everest. Li inclusive as insinuações um tanto maliciosas de Jon Krakauer (No Ar Rarefeito) contra o alpinista russo Anatoly Boukreev e a resposta deste, mais convincente (A Escalada), em relação à tragédia de maio 1996. Vi o dvd Morte no Everest, baseado no livro do primeiro.
Depois me envolvi com as conquistas dos pólos e o trágico desfecho da incursão do capitão Scott, sobrepujado pelo norueguês Amundsen na chegada ao Pólo Sul, em obras baseadas em relatos dos próprios personagens e em outros. Devorei mais de 5000 páginas a respeito.
Recentemente li um livro de um porto-alegrense que refoge às características épicas desses últimos.
América Central nas asas do Quetzal, de Eduardo Soares Batista, narra as peripécias e descobertas de uma viagem de cinco meses por países da América Central (Belize, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá), quase sempre via terrestre para reforçar o contato direto com lugares e pessoas. O próprio autor sai advertindo que “o principal personagem do livro é a região, não é o viajante”.
Eduardo é um mochileiro esclarecido formado em Economia e Engenharia Química e atualmente cursa História da Unisinos. Nas suas andanças pelo mundo “já exerceu a função de engenheiro na França, foi garçom na Grécia, agricultor em Israel e professor de Inglês em Porto Alegre”.
Não se trata de um épico nem o autor saiu a subjugar píncaros ou lugares inacessíveis ou inalcançados nem quis ser um pioneiro e conquistar cidadelas inexpugnáveis. Também não o motivou o espírito “heróico” e oportunista de outros que, seguros em cápsulas e bem patrocinados, saem mundo afora estimulados pelo prazer da aventura e do desafio às vezes gratuito e sem sentido.
Antes traça um perfil sobre a incomum e peculiar civilização Maia, cujo povo se dispersou como que cumprindo um acordo tácito por motivos ainda não esclarecidos e passou, de uma forma ou de outra, a enriquecer a cultura e a formação dos países visitados.
Destes, extrai verdades históricas, geográficas, sociais e econômicas, algumas que sequer supomos pudessem existir tão relativamente perto de nós. Outras, como a pobreza, tão familiar porque comum a todos os povoeiros dessas américas que até no globo terrestre situam-se em posição inferior.
Só o contato direto e estreito, pessoal, tête-à-tête, poderia revelar alguns desses mistérios de nós desconhecidos. Pois, como adverte o autor, “as vestimentas coloridas dos indígenas podem ofuscar nossos olhos e mascarar a sua realidade que pode ser preta e cinza”.
Nessas revelações reside a força principal da obra.

17/07/2004

A IGREJA DE OURO DE TAIÓ

Em Taió tem uma igreja de ouro.

A primeira coisa que eu me lembro é que nela levei um tapa na cara de uma freira velha. Tão velha que hoje deve estar dando trompaços no Diabo, com o qual tanto nos amedrontava.

Tomei ali a primeira comunhão com um padre que depois virou bispo e curandeiro e hoje é aposentado. Mas é muito considerado, não sei se por um motivo ou por outro.

Eu passava mal nos domingos de manhã por causa do jejum de três horas. Depois reduziram para uma, mas a fome era a de uma noite inteira: quem iria se levantar uma hora mais cedo aos domingos? A missa não acabava nunca...

O padre Eduardo, que xingava mulheres e cachorros, esticava no final com mais três Ave-Marias, um Pai-Nosso e uma Salve-Rainha. Decerto pecávamos demais.

Mas as missas se tornaram mais agradáveis depois, nos sábados à noite. Eu, adolescente garboso e desajeitado – os adolescentões podem ser uma e outra coisa ao mesmo tempo –, ia ver as gurias. Uma, principalmente, que partiu e me partiu no dia 05 de junho do ano que não acabou.

Depois me recompus e, ainda estudante universitário, voltei a Taió para me casar na igreja de ouro. Sou casado até hoje. Com a mesma mulher!
Batizei lá meu primeiro afilhado, depois velei minha mãe e mais tarde batizei minha filha. Dois irmãos casaram-se nela e estão casados até hoje. Com as mesmas respectivas mulheres. Alguns de seus filhos também foram batizados naquela igreja.

Sempre, daí, o Padre Moacir, um padre com estampa de santo.
Sinto-me feliz porque tive oportunidade de lhe escrever uma carta dizendo exatamente isto. Ele não deu a mínima importância.
Mais tarde, em 1999 ele morreu, ainda moço, porque não tinha tempo de ir ao dentista. Um dia infeccionou-lhe um dente e resolveu fazer um tratamento nada ortodoxo com o próprio canivete. Septicemia. Fulminante.

No dia 25 de abril de 1984 – “diretas já!” e aniversário da Revolução Portuguesa – ali velei meu pai.

Depois, no mesmo ano, nasceu meu filho. Foi ainda o Padre Moacir que o batizou. Mas não naquela igreja.

Alguns ciclos se quebram por vontade nossa. Outros, naturalmente.


É bom, para que não se tornem viciados.



10/07/2004

A BUSCA DO TEMPO ANTERIOR - Canto III - Poesia

(Canto III: modo antico, adagio lamentoso)


Amarga é a saudade de quem espera reencontrar
quem nunca encontrou!

Sou eu a revisitar a quem nunca visitei,
a quem esqueci de esquecer e me esqueceu,
alguém que eu não perdi mas nunca achei.

Sou eu a recantar uma canção que nunca cantei,
a reescrever este verso que nunca escrevi,
a dialogar com fantasmas que exorcizei...
...a abraçar um vazio pleno de ti...

(Ah! que equação irracional
a despedida assim, sem se despedir:
partir sem sair do lugar;
ficar, e ao mesmo tempo, partir).

Saíste da minha vida sem sair
que nem sei como algum dia voltarás.

Busco em mim e só encontro a ti,
a mim procuro e não encontro nada
(não sei aonde foi que me perdi).

Talvez um dia eu encontre em ti
fragmentos da minha alma espedaçada!

02/07/2004

MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA - Filme

Hollywood é uma fábrica de filmes. De lá saem verdadeiras obras-primas e também filmecos descategorizados. A celulose que se gasta com besteiras em Los Angeles, num ano, seria suficiente para fazer cinema no Brasil durante uns dez.

Mas há bons e ótimos filmes gerados nas mentes e engenhos hollywoodianos. Afinal, sua especialidade é exatamente essa, e se não é obrigada a produzir obras-primas todos os dias também não se dá ao desleixo de lançar apenas bombas, como se dizia na minha infância.

Esta – a minha infância – me inspira a abordar um gênero prosaico e nostálgico, que apreciava então (se dissesse que não aprecio mais, estaria mentindo): o faroeste. Aliás, gosto de todo o tipo de filme, desde que seja bom, é claro. Dizer o óbvio não custa nada!

Meu Ódio Será sua Herança, de Sam Peckimpah, é imperdível para quem gosta do gênero. Diríamos, naquele tempo, que é um farvestão (embora fôssemos ao cinema mais para ver tiros, duelos e brigas do que para analisar as qualidades intrínsecas e extrínsecas da fita).


Como quase sempre, a tradução do título não foi feliz. O filme não esclarece quem herda o ódio de quem e o nome deve ter sido pensado mais como uma hipérbole mal acabada e por seu impacto sonoro do que em razão do enredo. The Wild Bunch, o original, significa algo como O Bando Selvagem, o que também não diz muito, pois imprecisamente genérico.

O filme narra a saga de um grupo de bandoleiros em fim de carreira que, no início do século XX, tenta dar um último e lucrativo golpe e se aposentar: roubar um carregamento de armas do Exército americano e contrabandeá-lo para o general mexicano Mapache. Mas tem em seu encalço implacável um ex-comparsa, anteriormente preso, do lado da lei em parte por chantagem, contratado para caçá-lo, e que vai fazer de tudo para impedir o sucesso.

O final megalômano, ao gosto americano (quatro ou cinco bandoleiros conseguem quase dizimar o exército mexicano rebelde antes de serem mortos), não compromete o resultado final.

Foi muito elogiada a estruturação inovadora, principalmente o uso de câmera lenta e do freqüente zoom circunstancial, mas este tipo de análise fica ao encargo de técnicos. Em qualquer site especializado essas inovações vêm bem explicadinhas. Para mim, o importante, são outros aspectos, que me impressionam pessoalmente e, por isto, não se deve acreditar incondicionalmente no que escrevo.

O filme evidencia preocupação com o social ao retratar um povoado mexicano de extrema pobreza, assaltado tanto por governistas quanto por rebeldes. Os homens estão na guerra e ali permanecem apenas mulheres, crianças e velhos sem ter como prover suas necessidades. É mostrada, também, a tentativa européia de estender para a região o seu imperialismo tardio, já próximo à I Guerra Mundial: o general Mapache é assessorado por integrantes do Exército Imperial Alemão na luta contra os seguidores de Pancho Villa.

Há cenas insólitas, como a da negociação do general com o bando, durante um banquete suntuoso, enquanto entre as mesas passa o cortejo fúnebre de uma mulher cujo corpo é carregado por velhas senhoras rezando em voz alta.

Uma das mais tocantes é retratada quando o bando sai do povoado, onde se refugiara após um frustrado assalto. Um dos bandoleiros é um jovem mexicano, que parte com dúplice objetivo: ajudar os demais e buscar a mulher que o abandonara para seguir o general Mapache. Depois, durante a jornada, resolve desviar parte das armas para sua vila. Estes dois fatos acabam por influir definitivamente na sorte da empreitada.

Quando os bandoleiros se retiram, a mãe do mexicano se aproxima e entrega ao filho, já montado, um embrulho, talvez com alguma provisão de última hora, daquelas que só as mães sabem que poderão fazer falta ao filho que parte, pobremente envolto em um pano branco. Antes, um americano recebera uma flor e outro um sombrero, de duas moçoilas. Enquanto isto os povoeiros, formando um corredor por onde vão passando os cavaleiros, entoam, melancolicamente, a pungente La Golondrina.

Para mim, vale o filme.