30/06/2004

O que Mozart tem a ver com Kartismo?

À primeira vista, para o mundo em geral, absolutamente nada. Na época do compositor sequer se poderia imaginar que algum dia um americano meio louco transformasse seu cortador de grama em um aparato para disputar corridas com amigos a uns 3 cm do solo.

Mas aqui, no âmbito de nossa cidadela familiar, que já passou por várias fases, inclusive a kartiana (não confundir com cartesiana), houve uma relação, ainda que meramente nominal e restrita, entre o gênio musical e o kartismo (não confundir com kantismo).

Meu filho, aos 11 anos de idade, era piloto de kart. Foi campeão da Copa Balestro e do Campeonato Citadino e vice-campeão da Copa Cidade de Porto Alegre, em 1995.



Acabou conquistando um prêmio excepcional: um Fiat Uno, doado pela revendedora Zen, de Lajeado, pela Copa Balestro.

Sua categoria era a hoje extinta Cadete, de 85 cc, condizente com sua faixa etária, e não tão potente quanto a de 125 cc, dos marmanjos (na qual ele chegou a competir, no ano seguinte, e foi novamente campeão citadino e vice-campeão do Campeonato da Serra, na subcategoria novatos).

Tínhamos dois motores, um para treinos leves e outro para corridas.

O que usávamos nos treinos, batizamos de Haydn. O das corridas era o Mozart, em homenagem ao compositor austríaco, cujas obras sempre foram por nós muito apreciadas. Era um motor afinado, suave e harmonioso, mas despejava seus rompantes estritamente necessários e eficientes quando as circunstâncias o exigiam.



Depois que um piloto da subcategoria graduados perdeu a falange distal do indicador da mão esquerda numa corrida em Farroupilha, meu filho, que já estudava piano havia uns três anos, aos poucos foi pendurando as chuteiras, digo, o capacete, as luvas e o macacão.
Com isto foi-se a esperança de que poderia vir a ser um bem sucedido piloto de Fórmula 1 e enriquecer a família inteira e mais alguns agregados.

O kart e o motor Mozart continuam na garagem. A fase kartiana passou, para alívio da Ieda, que sofria muito, principalmente após um acidente formidável (nos sentidos moderno e obsoleto), mas sem conseqüências graves. Ficou naquele limite tênue e acinzentado entre a vídeo-cassetada e a tragédia.

Meu filho ainda estuda piano, na Faculdade de Música da UFRGS. Talvez não enriqueça a família nem aparentados. Mas ninguém retira de um pai o orgulho e o prazer indescritível que é ouvir uma obra desconhecida pela primeira vez ao vivo e não através da frieza de uma gravação eletrônica. E, o que é mais importante, interpretada pelo próprio filho.

Mozart, portanto, continua em nossa cidadela, só que agora com muito maior pertinência.

25/06/2004

PIACO - Poesia de Cordel

Publicada no Caderno de Literatura n.º 9, do Projeto DivulgaArte, da AJURIS, em agosto de 2001.

A derradeira passagem do bandido Piaco no baile de pixurum de Amândio Alves de Jesus,apóstolo santo.

Com o perdão dos nordestinos, um sulino pede permissão para, no estilo da literatura de cordel, contar a história.

Ou, como uma bala de revólver saiu e entrou pelo cano.

E o metido a poeta mata a cobra e mostra o pau, ainda que meio desconfiado.


Este caso aconteceu
há muitos anos atrás
numa cidade pequena
no interior de Goiás.
Vou contar o que eu vi,
nem de menos nem de mais:
um bandido arrebatado
por homem de boa paz.

Disse que foi em Goiás
por uma questão de rima.
O Estado em que sucedeu
não foi no mapa lá em cima,
foi mais para baixo, aqui,
perto, em Santa Catarina.
(O nome é grande demais,
melhor que fora em Goiás).

Num baile de pixurum
– chamam também de arrelia –
na casa do Amândio Alves,
de Jesus, José e Maria,
surgiu Piaco bandido
– té a alma me arrepia.
O baile quase acabou,
tanto o gaiteiro tremia.

Daí por diante as mocinhas
só dançavam meio tortas
evitando olhar Piaco
– olhar de bandido corta –
e o povo todo queria
dançar mais perto da porta.
Até dona Joana Papuda
se aquietou surda-muda.

Piaco era valentão,
perigoso e destemido,
dormia longe do povo
pelos capões escondido,
não tinha medo de nada
nem vivia arrependido.
Nem muriçoca o picava
– sangue azedo o de bandido.

Matara quarenta e quatro
até uma semana antes,
depois é difícil dizer,
não fiz as contas bastante,
muita água em sete dias
rola debaixo da ponte.
Até delegado matou,
depois despiu e capou.

Era metido a valente
mas também era covarde
porque em Pouso Redondo
num domingo, pela tarde,
acabou com uma missa
aos tiros, fazendo alarde:
tirou as roupas das freiras
e a batina do padre.

Pai João Maria dissera
que no baile ia dar morte,
por isto a Velha-da-Foice
foi afiando seu corte:
ia morrer o mais fraco,
porém morreu o mais forte.
Nunca se viu na colheita
uma coisa mais bem feita

Também disseram que a morte
fora mesmo encomendada
por uma questão de terra
nem hoje bem explicada:
o João Safado queria
do Amândio uma invernada,
uma légua de sesmaria
lá perto do fim da estrada.

E nestas coisas de posses
quem muito tem mais petisca
e o João Safado, esse um,
tinha a se perder de vista,
mas queria mais um naco
para aumentar sua crista:
prá quem é dono de tudo
não custa embolsar o mundo.

Piaco trazia na cinta
um canhão de cano grosso,
um trinta-e-oito medonho
limpinho que era um colosso;
também tinha a Santa Cruz
pendurada no pescoço.
Vinha bem apetrechado
prá fazer nó em caroço.

Amândio, coitado, esse um,
quase sem nenhuma tença,
tinha um canivete na mão
e uma marca de nascença
e um trinta-e-doizinho de bosta
sem a mínima presença,
só servia, sujo e gasto,
prá matar grilo no pasto.

Se encostou pela porta
trabalhando um empalhado,
o trinta-e-dois num dos bolsos
do paletó ensebado
cuidando do movimento,
muito desassossegado.
Mais sério e desconfiado
do que cabrito embarcado

Lá pelo meio do baile
Piaco veio gritando:
"É hoje! É hoje! É hoje!"
e do canhão foi puxando.
O povo saiu num raio,
a mulherada berrando.
Só João Mudo não gritava
porque não dava, não dava!

Amândio deu só dois tiros
com o trinta-e-doizinho de bosta:
o segundo pegou na veia
Piaco tombou de costa,
nunca mais se levantou,
nunca mais fez uma aposta,
nunca mais fez mira fina,
nunca mais fez mira grossa.

É meio difícil explicar
o rumo do tiro primeiro.
Já passei por mentiroso,
afetado e balaqueiro,
mas juro que vou contar
aquilo que é verdadeiro.
Quem não credita em visão
que busque outra conclusão.

A bala do trinta-e-dois,
pequena mas de tutano,
zumbiu abelhuda e feia,
um corisco de bom plano,
e foi se ajeitar no revólver
do Piaco, bem no cano.
O trinta-e-oito medonho,
morreu ele e mais o dono.

Eu sei que é muito difícil
de cristão acreditar
nesta história que contei
sem receio de enganar.
Mas pode crer, é verdade,
e se não se conformar,
vá no Fórum de Taió
que a bala deve estar lá.

A bala do trinta-e-dois
está bem encavalada
naquela que ia ser
a solução da enrolada,
por causa daquela terra
lá perto do fim da estrada.
Dizem que o João Safado
pagou o caixão do finado.

O Amândio enfrentou júri:
sete a zero, absolvido,
com baita elogio do Juiz,
um exemplo a ser seguido.
Era tempo de eleição
no meu Estado querido;
permitam que eu quebre o verso
e o escreva mais comprido,
para caber o final
deste caso desconfiado:
num jeito muito sabido
o governador do Estado
nomeou o Amândio Alves
como nosso Delegado.

23/06/2004

O auto da NAU CATARINETA

Extraído do site RITMOS DO NORDESTE DANÇAS FOLCLÓRICAS


NAU CATARINETA

A Nau Catarineta é um episódio épico que lembra a Odisséia. É uma ode romanceada que pelo fascínio do seu enredo dramático e pelos mirabolantes efeitos pictóricos da coreografia, se transforma em um bailado. A história desenvolve-se a bordo de um navio que parte do Recife para Lisboa, na época das conquistas marítimas (1565), e que depois de cruentos combates e lutas dolorosas, chega, afinal, a um porto seguro.
Indumentária: característica de navegadores.

Coreografia: O auto da Nau Catarineta divide-se em três partes:

1.ª parte: Surge um navio sobre rodas, arrastado pelos marujos. Formam-se em filas, de braços dados, e balançam o corpo, como se estivessem a bordo. O Comandante da nau avista o emissário do navio dos mouros, que lhe traz intimação para que se renda. Recusa-se. Travam-se combate entre os dois navios. Vencem os cristãos e exigem que o filho do Sultão se converta ao Catolicismo, sob pena de morte. Ele, para não morrer, concorda em mudar de religião. Eis que chega o sultão e desespera-se ao saber que o filho se converteu. Amaldiçoa-o e suicida-se em seguida. Seu corpo é atirado ao mar.

2.ª parte: Esgotam-se os víveres da Nau Catarineta e grassa a fome entre a tripulação. O Capitão resolve tirar a sorte para decidir quem deverá ser comido, e o seu próprio nome é sorteado. Preparam-se para a execução e o Capitão manda o gajeiro, (que é o diabo, em figura de gente), ver se avista terra. O gajeiro galga o mastro, mas da primeira vez só avista sete espadas para matar o seu superior; este insiste, e finalmente o gajeiro informa:

"Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!
Também vejo três meninas
Debaixo dum laranjal."

O comandante declara que são as suas próprias filhas e as oferece a ele se se salvar. O gajeiro entretanto, exige como recompensa a Nau Catarineta. O outro responde que lhe dá todas as 3 filhas, suas terras, todo o seu ouro e prata, menos a Nau, demonstrando que é uma parte de si mesmo, como se fosse sua alma. Então, o gajeiro exige sua alma para levar para o inferno. O Comandante diz que sua alma pertence a Deus, e atira-se ao mar. Três anjos o salvam.

3.ª parte: Os marujos consertam as velas e realizam outras tarefas normais de bordo, enquanto cantam melodias ligadas às suas vidas aventureiras, de almas errantes. Sobrevem uma tempestade e a Nau quase vai a pique, mas é salva pela arrojada tripulação. Trava-se uma discussão entre o capitão e o piloto, lutam, e o último ferido, desfalece. Pedem a prisão do responsável. Mas, quando o Capelão vem para ministrar os sacramentos grita que ele ainda vive. A viagem continua e, afinal, a Nau Catarineta alcança seu destino. No desembarque, descobrem um contrabando dos guardas-marinhas que são presos e a mercadoria apreendida. Os marinheiros cantam alegres e felizes, com o fim da jornada, depois das peripécias, nas quais a vida parecia chegar ao fim.


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22/06/2004

UM ANJO

Esta poesia foi homenagem à minha querida blogueira ANJA AZUL.



Anjos, eu vi alguns,
de asas brancas ou multicores;
sempre na minha infância,
nos meus delírios,
nos meus amores.
De olhos verdes, azuis celestes,
jabuticabas, ou cor de mel
(como os olhos do amor primeiro
quando era puro e virginal).
Conheci anjos de pés descalços,
bundas de fora, rosadas, frias,
asas quebradas, sem pinto ou xota,
velando nichos de santos velhos,
de olhar caído e desanimado:
deve ser triste um anjo assim,
recém-nascido... e já castrado.
Existe um anjo que eu não conheço,
asas azuis, setas certeiras.
Todas as noites passo por ela
de olhar trocista, que não me vê:
sei lá, passei, passou, não sei...
decerto é um anjo a vingar um outro,
que algum dia, por desencontro,
em algum canto a chorar deixei.

Zagallo e o nº 13

(Crônica escrita em 25/06/2005)


Ontem vi o Zagallo dando uma entrevista após receber alta do hospital em que se submeteu a uma cirurgia de reconstituição do estômago.

Mais magro, depauperado, não deixou de avocar o n.º 13 como sendo seu número de sorte. O nome do médico que o operou, José de Ribamar, é formado por 13 letras – fez questão de ressaltar.

Estou cansado de ver o Zagallo fazer essa relação com o n.º 13 como se ele fosse dotado poderes mágicos. Não sou cabalista nem supersticioso e acho que os números não têm influência nenhuma sobre nossa vida – me perdoem os que acreditam.

O n.º 13 é comumente relacionado ao azar e há prédios nos Estados Unidos em que ele não existe: do 12 passa-se diretamente ao 14, o que é o cúmulo da imbecilidade. O andar n.º 13 existe fisicamente, só que é apelidado de 14. Ou 12-A.

Lembra a história, corrente nos meios jurídicos, do cara que atingiu a maioridade e quis trocar de nome porque não gostava dele. Nem poderia gostar: chamava-se João Bosta. Foi falar com o Promotor – naquele tempo os promotores podiam ajuizar determinados tipos de ação – e expôs a situação. Anotados os fatos para justificar o pedido, o promotor perguntou o nome que João Bosta queria adotar. Ele foi rápido: Pedro Bosta. Quer dizer, o problema não era o sobrenome era o prenome. No caso do edifício o problema não é a colocação física do andar, mas o indicativo numeral de sua (falsa) posição.

Eu não acredito que o n.º 13 dê azar embora esteja digitando, agora, só com a mão esquerda (é difícil digitar com a direita quando se faz figa com ela).

Pelo contrário, embora sem lhe dar maior importância da que dou a outros números, gosto dele: foi num dia 13 que nasceu minha filha. Tenho um irmão que nasceu também num dia 13. E a minha sogra, idem. Ops! Se vocês a conhecessem não estariam com esse sorriso de ironia na cara (pelo menos não na frente dela)... O único prêmio que ganhei numa rifa até hoje foi com o n.º 13, numa festa de igreja: uma daquelas bolas de vidro com água e uma rosa de plástico vermelha no interior. Como era muito grande para jogar boco, e além disto tinha um pedestal e não rolava direito, dei para minha mãe.

Mas com respeito ao Zagallo, se o n.º 13 lhe fosse tão dadivoso, a copa de 1974 seria nossa. Ele, o 13, não teria jogado do lado do adversário, como jogou.

O Brasil foi desclassificado pela Holanda por um gol marcado por Neeskens, o n.º 13 deles, aos 6 minutos do primeiro tempo e outro por Cruiyff, aos 20 minutos do segundo tempo. Seis mais 20 = 26. Foram dois gols. Então, 26 ÷ 2 = 13. Neskeens foi substituído por Israel aos 39 minutos do segundo tempo. Como já usamos o 2 da divisão anterior, vamos implementá-lo de um, pois foi apenas uma divisão: 39 ÷ 3 = 13. As seis letras de BRASIL e as sete de HOLANDA – uma comparação que o Zagallo gosta muito de fazer – somam 13.

Então, se você quiser, e com um pouco de esforço de pesquisa e paciência para cotejar e relacionar dados vai encontrar muita coisa a seu redor relacionada ao n.º 13. Ou ao 12. Ou ao 20. Ou a qualquer um. Basta se dispor a coletar dados e fazer continhas simples.

Essa mania do Zagallo só demonstra que muitas de nossas conquistas futebolísticas, na ótica de alguns técnicos, repousam mais no empirismo supersticioso do que em princípios táticos e estratégicos do esporte.
Em suma: a grande maioria dos técnicos é enganadora mesmo e os nossos louros se devem principalmente à excelência dos jogadores.

Não sei se você reparou, mas o título deste post tem 13 sinais gráficos...

ANISTIA - Poesia

A poesia abaixo talvez não tenha valor como arte. O tema, em si, é difícil de ser tratado em forma poética. Mas reflete um modo de encarar esse tipo de infâmia. Foi publicada no Caderno de Literatura n.º 3, do Projeto DivulgaArte, da AJURIS, de agosto de 1998.



ANISTIA

Eu entendo a dor dos torturados,
mas não a motivação intrínseca
do torturador.
A necessidade de mostrar que é macho?
a vontade de mostrar que é forte?
ou a fraqueza de sua própria dor?

Qual a dignidade dos que ferem
quem está dominado
e não tem meios reagir?
A obediência ao superior hierárquico?
A visão de um mundo (de que?) libertado?
A coação irresistível do dever a cumprir?

Que coragem é esta de matar um morto,
de castigar alguém que é menos que uma criança?
É mesmo coragem,
É mesmo dignidade,
ou o mais lídimo exemplo da desesperança?

Tu, que torturaste há 30 anos,
o que estás sentindo agora?
A morte cada vez mais perto,
a vida caminhando embora.

Tens pelo menos a capacidade do remorso?
Mas como terás a consciência calma?
A anistia que recebeste um dia
Não alforria a tua própria alma!

A FILHA PREFERIDA - Conto

(Publicado na ANTOLOGIA DE CONTOS DA ASES - Associação dos Escritores de Bragança Paulista SP) - em 1999

Nem mais no espelho se olha, o tão coitadinho, des que lá dentro viu o próprio diabo vomitando sangue e fogo de gelo misturados, arrepiante e retorcido. Medão sentiu, que cristão se encagaça quando vê a consciência.

De muita aflição o caso desse um, Zé Cristóvão vulgo, de completa assinatura José Cristóvão de Jesus. Não lhe condiz o sobrenome, é coisa séria. Se precavera, sim, mas quem é mais forte, o bem ou o mal?

Foi a filha primeira, depois sete mais se seguiram, conta verdadeira do mentiroso. O nome Rosa escolheu, existe então neste mundo mais bonito nome? Transtornou-se a sogra, nome de gente não é Rosa, que gente não é flor, nome de gente é Adelaide. Adelaide, querença mais tansa. Mais foi a valia: Adelaide Cristóvão de Jesus, assim batizada por Padre Januário.

Mas não ficou aí a embirração da sogra, pois nunca. Viu que Adelaide vingava linda de se ver, coisa rica e preferida, e para criá-la reclamou a menina. Pois onde é que se já viu? Não era aleijado, saúde tinha e vontade também e era o pai. Quem melhor poderia criá-la? Pelo mundo não ia seus filhos jogar por ser pobre. Sem esperneio nem discussão nem muita prosa que fosse a sogra arranjar filho nas capoeiras. De Adelaide, só o nome não era dele...

Entesou-se a cobra, embrabou e rogou praga: “Vai acontecer coisa triste prá essa menina, pode esperar”. Nas fuças dela riu Zé e a mandou tomar nas pregas. Medo de nada tinha. Praticante católico, São Bom Jesus o guardaria – tirava o chapéu e se benzia.

Medo de nada de boca afora só. Por dentro se encagaçava pela fama da velha. Ameaços ela fizera, era respeitada bruxa e coisa ruim fazia melhor que o demo. Então não vira na barriga de um sapo ela costurar uma fotografia do seu Júlio? E quando o sapo morreu, dias depois, e quando o retrato feneceu, não saiu seu Júlio de mão com a Velha-da-Foice? Se cuidassem com ela que rosas costuradas com linha preta, cabeças de cobra, ratos de couro e outros mistérios fazia aparecer nos travesseiros. Só para trás iria na vida com quem acontecesse isto.

Baita preocupação. Mas se tinha precatado: São Bom Jesus – benzia-se – era mais forte do que coisa feita. E também pai João Maria, santo milagreiro, fora contratado para o serviço desmanchar. Desenvolvia-se bem a rapariga, influída no trabalho, educadinha. Muito engraçadinha, também, pena que seu nome não era Rosa.

Pai João Maria tinha providências tomado. Homem bom, santo, honesto, feitiços não fazia: só trabalhos para quebrá-los. Zeca Avelino disse que também pai João Maria embruxava no duro, não era lá essas coisas. Mas Zeca Avelino, sabe como é: queimador de campo com chuva, velhaco, borrachão e ainda burro por cima. Até chegou a dizer que os americanos já foram prá lua. Coisa besta esta. Pois se o homem chegar na lua ela vai vivar uma sangueira só e findou-se o mundo. A lua vai despencar do céu, vai dar guerra e muita morte. Zeca Avelino tinha ido prá cidade e lá eles tinham pregado uma baita conversa nele. Ninguém mandou ser burro!

Precavido contra as sujeiras da sogra tratou com pai João Maria trabalho bom, coisa bastante, nem direito ele entendia. Mal a Adelaide, rapaz que fizesse, três dias depois iria perder o instrumento de orgulho, de podre caído. Já pior desgraça se viu? Doenças, mau olhado, desastres, contra tudo quanto é desgraça investira o milagreiro.

Sofria assim mesmo Zé Cristóvão, com pensão na praga. Aquilo não saía nunca da cabeça. Nunca. Contrapensava: feitiço para pai João Maria é coisa pouca e São Bom Jesus – benzia-se – era um bom ajutório.

Velha desgraçada! Bruxa ruim! Tem no inferno lugar prá ela. Sempre no inferno tem um lugar prá quem ao próximo malfaz, Padre Januário falou no sermão. Ele culpa não tinha nem antes teve qualquer desejo. Jura que foi a primeira vez e de supetão. Muito da filha gostava, prá lá de muito, mal nunca iria lhe fazer. Foi puro feitiço, pois nem a mulher e os filhos outros se guardavam em casa naquele desgracento dia – só ele, o nenê e Adelaide. Só eles. Isto então não é coisa preparada?

Adelaide achegou o nenê no caixote para dormir, o barriguinha-de-bicha. Abaixou-se ela e ele viu as coxas grossas de fora, da cor do porongo curtido, firmes como tarumã e duma lindeza cabocla. A mão passou-lhe, arrepiou-se Adelaide que nem galinha despenada... os peitos desbicados de menina-moça anjo ainda... o sexo inocente, novinho quase-sem-pêlo... tenro cabaço de 13 anos tal mais madura cortiça... cabelo perfumado de flor de marcela... No chão, ali mesmo, quarto-cozinha-sala, a filha desgraçou: “Não pai, não pai, não pai!” – mas cada vez mais gostosura, nunca sentiram, nem ele nem ela. Gozou só ele, ela não, pobrezinha. E se abraçaram depois, chorando – dois loucos desesperados – mais o nenê que chorava também – um trio de vozes danadas... Que mais fazer que chorar?

Condena braba pegou Zé Cristóvão. Contou tudinho ao juiz, honesto e direito, mas quem acredita em pobre? Sua sogra nem foi chamada à Justiça – ela sim que devia ser processada. A culpa não foi dela então ao rogar a praga?

Na cadeia cismando a tristeza. Ingrato São Bom Jesus – nem mais se benzia. Pai João Maria – se lembrava de seus feitos e para seu próprio pau de podre cair rezava, castigo mais merecido... Pai João Maria, esse um milagreiro à-toa, de bonito se desculpara: certinho fizera tudo, menos contra Zé Cristóvão, da menina o pai. Nem santo pode imaginar que o próprio pai desgrace a filha.

BEETHOVEN - Música

BEETHOVEN, UM GÊNIO BRINCANDO


Um dia o gênio cansou-se de compor coisas pesadas e foi brincar.
E compôs a 8.ª Sinfonia.
Para mostrar como é que um velho surdo sabe ensinar como se faz uma bela orquestração.
Como se combina os sons.
Como se brinca com os metais, com os sopros e com os violinos.
Os uníssonos e as progressões abusadas do primeiro movimento.
Os violinos e o pizzicatto dos violoncelos no segundo.
O pungente trio do minueto.
Um dia o gênio bravo e ranzinza deixou de trabalhar sério.
E brincou com a música.
Afinal, se Mozart, nas suas amarguras, compunha músicas alegres, porque ele não poderia fazer o mesmo?
E ensinou orquestração.
E chutou a bola para longe.
E desagradou aos críticos.
Ainda bem!
Foram cruéis com suas línguas de chicote.
Não perderam por esperar.
Daí veio a Nona e eles ficaram calados para sempre.
Ninguém nem sabe mais quem são.

NAU CATARINETA - INTRODUÇÃO (Tradicional)

Nau Catarineta - Romance

Conforme gravação de Teca Calazans, no CD Firoliu (Kuarup, 1997, KCD-088).


Bela nau Catarineta
Dela vos venho contar
Sete anos e um dia
Oh! tolinda
Por sobre as ondas do mar

Já não tinha o que beber
Nem tão pouco o que manjar
Matamos o nosso galo
Oh! tolinda
Que tinha para cantar

Vai lá pra cima, gajeiro
Meu gajeirinho real
Vê se avista bela Espanha
Oh! tolinda
Areias em Portugal
Avisto espadas de fogo
Oh! tolinda
Prontas para te cravar

Também avisto três moças
Debaixo de um parreiral
Um tecendo ouro fino
Oh! tolinda
Outra mais fino metal
A mais chiquitinha delas
Oh! tolinda
A procurar um dedal

Todas três são minhas filhas
Todas três hei de lhe dar
Uma para te vestir
Oh! tolinda
Outra para te calçar
A mais chiquitinha delas
Oh! tolinda
Para contigo casar

Eu não quero tuas filhas
Nem tu não hás de me dar
Só quero a nau Catarineta
Oh! tolinda
Para no mar navegar